«Hoje vamos à lagoa do cais», ele anunciou entre uma ameixa e outra. «A lagoa do cais?», quis saber Tia Valentina, quase assustada, um tanto quanto incrédula, o açucareiro na mão. «Não brinques com aquilo, ó Angelus», disse ela depois do breve silêncio esperado. Sebastião riu disfarçadamente. Tio Genaro fechou a cara sobrecenho. Fiquei sem saber ao certo a quem ou em função de que o gesto de reproche. Eu comia umas broas de canela cheio de vergonha. O que queria dizer o espanto de Tia Valentina?
«Não te esqueças dos calções de banho», Angelus gritou quando me viu subindo as escadas em direção ao quarto. O tom era de súbita alegria. Continuei a subir agora cheio de ânimo. No meio do corredor, parei ofuscado com a luz que vinha da última sala, sempre fechada. É que por trás da porta que dava acesso à sala, havia uma janela que estava posicionada para o nascente, de sorte que a luz toda do sol era refletida nos vidros encarnados que ornamentavam a porta. Aquela tinha sido a casa dos avós de Angelus; era uma casa antiga, muito antiga, cheia de móveis pesados, cortinas minuciosamente bordadas, quadros com fotografias de outros tempos pendurados nas paredes. Ali, por exemplo, perto do meu quarto, estava uma fotografia de família: os avós, os tios, Sebastião, a tia, a prima, Angelus e um braço de criança que se recusa a aparecer em fotografias. Eu não pude deixar de rir ao ver a cara de Angelus há provavelmente dezessete anos atrás.
Chegamos ao Calhau por volta das dez. Estava um dia ensolarado. Angelus tirava fotografias de tempo a tempo. Sebastião seguia a frente com a segurança de quem conhece o caminho. Eu uma ou outra vez fazia perguntas, com medo do silêncio. Angelus respondia desinteressadamente. Sebastião ria a cada resposta.
Para chegar à lagoa do cais, é necessário percorrer uma trilha bastante perigosa. Perigosa sobretudo porque há rochas caindo com frequência. Então é preciso seguir sempre em frente, com a esperança de que não vai ser agora. Como tenho certa vertigem, procurei olhar para o chão todo o tempo, e não para o precipício ao lado. Depois, é preciso subir uma corda quase apodrecida de tão velha, e seguir o percurso numas tábuas desajeitadamente enfiadas nas rochas. Penso que essa seja a razão de haver tão pouca gente, quase ninguém na lagoa. Ou talvez o fato de o acesso continuar difícil seja mesmo para impedir – ou ao menos dificultar – a visita de estranhos. Em todo caso, lá estávamos, enfim, ao pé da lagoa do cais.
Segundo a tradição oral dos moradores de São Jorge, a lagoa do cais dá passagem para os medonhos abismos subterrâneos. Lá habitam seres jamais sonhados, encantamentos, tesouros e o próprio tinhoso. Há notícias de quem tenha se arriscado tomar banho naquelas águas e jamais ter voltado para contar o que viu. Angelus foi o primeiro a tirar a roupa. Só estávamos os três ali, e aparentemente não chegaria mais ninguém, muito embora fosse um sábado. Sebastião ria de uma forma debochada.
O primeiro a entrar na água foi mesmo o Angelus. Não hesitou: deu um salto e desapareceu por uns instantes. Ficamos os dois, eu e o Sebastião, olhando. Quando ele voltou à superfície, ria como se tivesse visto lá de dentro a minha cara de preocupação. Subiu as rochas e postou-se ao sol, calado. Então o Sebastião olhou para mim, como quem pergunta: «vai?» Eu fiz um gesto: «faça o favor». Ele então tirou a única peça de roupa que lhe restava, e mergulhou sabendo o que sucederia.
8.06.2009
A Lagoa do Cais
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