8.16.2009

Paula

A discussão começou antes mesmo de terminarmos o jantar. Cortando com uma precisão quase calculada a pizza de alicci, Angelus argumentava a favor do silêncio como uma forma de evitar os que ele chamava “passos em falso.” Não entendia nada daquilo. O meu posicionamento é obviamente muito mais latino. Mas o debate correu de uma maneira absolutamente européia. Ou seja, não chegamos a lugar nenhum.

Subíamos e descíamos as ruas do Funchal, desviando-nos de um ou outro carro, ainda seguindo: quais os limites da mediocridade e o que significava exatamente ultrapassá-los? A cerveja estava relativamente boa no Jota naquele dia, embora a música continuasse fraca. Era tempo de irmos ao Latino, um bar de estudantes, todos apinhados no balcão, sacudindo uns dedos, gritando uma imperial se faz favor. Com a imperial ganhamos uma peça de quebra-cabeças e, porque acertamos onde iam as nossas peças, recebemos cada um uma prenda das raparigas cheias de batom e sorriso e lantejoulas na cara. O que havíamos de fazer com um relógio e uma bolsa? O relógio dizia que estava quase na hora do show da Felippa. Então nos dirigimos ao Monge.

Havia muito pouca gente interessada na música, mas eram educados o suficiente para não conversarem. Felippa, sentada num banquinho de madeira, uma mão sobre o colo, a outra segurando languidamente o microfone, os olhos fechados, uma roupa muito sóbria, os cabelos soltos, quase despenteados, cobrindo-lhe às vezes o rosto, cantava num inglês muitíssimo bom. Angelus não parecia impressionado: foi buscar uma vodka ao balcão. Voltou com o seu copo já pela metade. Entregou-me o meu ainda buscando qualquer coisa. Eu procurava disfarçar o incômodo que a voz de Felippa e aquela música me causavam.

Quando terminou, saiu do banco com uma naturalidade de quem ainda continua a cantar, e foi trocar umas palavras com o rapaz do violão, absolutamente alheia às poucas palmas de polidez. Terá sido a minha insistência que fez com que ela, afinal, virasse o rosto em minha direção, sorrisse, acenasse a mão, voltasse a conversar com o rapaz de longos cabelos desalinhados e me deixasse vermelho de constrangimento? «Acho que a Felippa gostou de te ver,» murmurou o Angelus, ainda procurando a Paula. Em pouco tempo, eu já estava com um segundo copo de vodka na mão.

Não sabia muito bem se devia tecer algum comentário, dizer que tinha gostado, etc. Não queria soar polido como as palmas. Eu tinha gostado bastante, de fato, mas temia não parecer verdadeiro, ou antes: não desejava colocá-la numa situação pouco cômoda. O que quer que fosse, decidi apenas falar sobre o tempo. Ela respondia, fazia perguntas, ria e evidenciava naturalidade. Estudava, sim, canto lírico. Mas não julgava que fosse seguir carreira: o seu registro de voz era bastante limitado. Então cantava porque o Fausto precisava de alguém, tinha umas composições, tinha o espaço no Monge... Morava em Lisboa, sim, morava. Mas era da Madeira. Voltava sempre nas férias de verão. «É a Paula!»

Sempre imaginei como seria a Paula pessoalmente, mas nada do que eu tivesse imaginado correspondia àquela aparição. A Paula é quase uma aparição, quase irradia, mas de uma maneira diferente. Não chegava a chamar atenção. Na verdade, pouco chamava atenção sobre si. Entretanto, quem desse pelo fato, ficava com a mesma alegria de quem vê uma estrela cadente. A Paula é uma estrela cadente. Após as devidas apresentações, ela quis saber o que estávamos bebendo, e Angelus imediatamente se ofereceu para ir buscar uma vodka. Ela agradeu, muito simpática, rindo, olhando para uma mesa adjacente. Podia ter ido cumprimentar o amigo da mesa ao lado, mas quis saber o que eu estava achando da Madeira.

Conversamos ainda por cerca de uma hora sobre assustos variados, mas muito triviais. Angelus pouco participava; parecia inquieto. Ao fim de algum tempo, Paula levantou da cadeira e quis saber se queríamos acompanhá-la. Ia dançar, estava a fim de dançar. Sim, claro, boa idéia – juntávamos os copos, um pouco sem saber exatamente o que fazer com o resto de vodka – mas para onde? «Olha, por exemplo o Copacabana.» O Copacabana, ótimo.

Chegamos ao Copacabana por volta das três da madrugada, mas as pessoas estavam frescas e animadas como se ainda fosse meia-noite. Eu não sabia ao certo por onde começar, e portanto fui com o Angelus buscar mais uma vodka. Quando voltamos, Felippa e Paula dançavam como que sozinhas em casa. Tentamos, um tanto quanto desastradamente, acompanhá-las. Ao fim de algum tempo, estávamos dançando tão sem pudor como dançara Sebastião naquele sábado em São Jorge.

O Copacabana, infelizmente, fecha às quatro da madrugada, de sorte que tivemos de abandonar a pista justamente quando achávamos que enfim tínhamos encontrado o passo certo. Então a saideira. Paramos num bar que ficava perto do cais, bastante simpático, e pedimos uma sangria para cada. Já não tínhamos muito o que dizer um para o outro. E assim estava ótimo.

Já em casa, Angelus fechou a porta com um ar muito sério. Olhou para mim um tanto trágico, e não pôde aguentar por muito tempo a vontade de rir. Olhava para mim, ria, e eu também ria muito, ainda sem que soubesse exatamente porquê. Somente depois do abraço é que eu percebi tudo.

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