8.31.2009

Luís Gaspar

Ouvir!Ontem eu e o Francisco fomos ao INESC para falar com a Maria do Céu Viana, que só agora nos pôde atender. Como, de facto, não há nada feito para o português que tenha interesse para o nosso projecto (a não ser, talvez, a tese da Ana Isabel Mata), ela falou-nos sobretudo do tipo de anotação prosódica que estão a fazer neste momento, do ToBI, etc.

Enquanto lá estive, a coisa mais interessante que observei foi, sem dúvida, um conjunto de gravações de um locutor profissional chamado Luís Gaspar. Ele tem um registo tão grave tão grave que até faz impressão. É uma coisa verdadeiramente demoníaca. Em certos trechos, ele entra numa frequência tal que é quase como se a voz deixasse de ter harmónicos, ficando apenas um low rumbling mecânico. A Maria do Céu disse que há partes em que ele desce até aos 55 Hz, e ela já não consegue perceber se ele está a falar ou arrotar.

O seu registo fez-me lembrar sobremaneira a contribuição do Snorre E. Ruch para o último dos 3rd and the Mortal, na maravilhosa City. Fez-me lembrar também o tom psiconáutico do Thomas Haake, especialmente em faixas como a Solarization, se bem que este tenha um registo muito mais processado e artificial. Fez-me lembrar igualmente o David Foxxe, na sua contribuição para um dos álbuns do Sting, mas, agora que ouço melhor, noto que o seu timbre não é assim tão grave.

Das pessoas que falam português, aqueles que conheço, além do Luís Gaspar, que têm um registo muito grave são o Ivo Castro, o João Peres, o Miguel Oliveira e o Pinto Fernandes. O Ivo Castro tem um timbre extremamente grave, mas não é tão áspero como o do Luís Gaspar, pelo que não chega a produzir o mesmo efeito. Destes que citei, o Pinto Fernandes é provavelmente o que mais se aproxima do registo do Luís Gaspar. Das mulheres, não posso deixar de referir a Joana Isabel, que tem uma voz absolutamente assombrosa. Devo dizer que os registos muito baixos não me agradam muito nas mulheres, mas ela é um caso à parte. É a imponência encarnada.

Quando acordo, de manhã, geralmente também tenho um timbre bastante grave. De facto, gostaria de tê-lo sempre, pois agrada-me fazer prolongamentos vocálicos e hesitações nesse tipo de frequências. É pena que normalmente não dure muito.

21 de Setembro de 2002

8.30.2009

O Kerouaquiano

Hoje estive a ver os anexos da tese da Maria Lúcia Garcia Marques e encontrei uma coisa interessantíssima: um trecho sobre o que é ser kerouaquiano (na verdade, o adjectivo que lá estava escrito era kerouackiano, mas eu emendei) em Portugal, transcrito, por seu lado, de uma forma bem benvenistiana.




21 de Setembro de 2002

8.29.2009

The End

Ouvir!vou te lembrar assim
de perto
peito aberto
em vôo
ao longe
um mito
um monge
um anjo

assim como você é

sem mim

vou me esquecer
e por fim
esse
não
quem sabe
sim
melhor pra você
será
pra mim
assim

8.24.2009

Máquinas Digitais

Uma das vantagens de usar máquinas fotográficas digitais, por oposição às máquinas tradicionais, reside no facto de, com essas, ser muito mais fácil tirar fotografias inesperadas. Quando vamos no metro, por exemplo, e queremos fotografar alguém, é muito mais fácil passarmos despercebidos se usarmos uma máquina digital. Em primeiro lugar, por causa do tamanho. As máquinas digitais comuns cabem perfeitamente no bolso. Em segundo lugar, por causa do ruído. As máquinas digitais praticamente não fazem ruído. Outra das vantagens das máquinas digitais reside no facto de, com elas, ser possível regular a sensibilidade ISO de fotografia para fotografia, o que se revela muito prático por exemplo para fotografar nessa situação do metro, onde é preciso ter uma sensibilidade alta (de 800 ou 1600, pelo menos).

No entanto, aqui põe-se um problema. O tipo de máquina digital de que estou a falar é o mais convencional, correspondendo a produtos como os da linha Nikon Coolpix e Sony Mavica. Ora, este tipo de máquina normalmente não é capaz de produzir imagens de grande qualidade. Quando digo qualidade, refiro-me, entre outras coisas, à resolução final da exposição (em termos de píxeis) e à estrutura do grão. Além disso, este tipo de máquina nunca permite seleccionar uma sensibilidade muito alta, ficando-se normalmente pelo índice 400 ou 800.

Uma máquina digital de grande qualidade, como a Nikon D1x, não obstante reunir duas das principais vantagens associadas às máquinas digitais na produção deste tipo de fotografia, a ausência de ruído e possibilidade de regulação do ISO, tem um grande senão: é pesada até dizer chega. Trata-se, com efeito, de um modelo de dimensões generosas, com o qual dificilmente podemos passar despercebidos.

Posto isto, é preciso ir à procura de uma máquina que alie as vantagens normalmente associadas às máquinas digitais comuns a uma qualidade mais satisfatória. É claro que, neste âmbito, não vamos encontrar nenhuma máquina suficientemente compacta. Os modelos compactos nunca oferecem uma sensibilidade ISO superior a 800. A solução para o problema passa, assim, pela apreciação do leque de supermáquinas digitais lançadas no início do ano. Trata-se da Canon EOS-D60, da Fuji FinePix S2 Pro e da Nikon D100. Andam todas à volta dos dois mil dólares (é claro que em Portugal custam muito mais), o que até nem é muito caro, tendo em conta que são muito superiores a alguns modelos mais antigos que chegavam a custar dez vezes mais.

Passando, então, à comparação entre elas, há que dizer que, em termos de qualidade de imagem absoluta, a vencedora é a Canon EOS-D60. No entanto, tem como desvantagem ser a mais pesada do grupo, com oitocentos e cinquenta gramas. Em termos de versatilidade, quem ganha é a Nikon D100, por possibilitar ao utilizador uma sensibilidade ISO muito variável (até 6400!) e por ser a mais leve, com setecentos gramas. Quanto à Fuji FinePix S2 Pro, nem é a mais leve, nem é a mais barata, nem é que tem melhor qualidade de imagem, pelo que fica definitivamente relegada para terceiro lugar.

20 de Setembro de 2002

8.22.2009

Saturdays

Ouvir!Today I just ended
Another saturday of my life.
I don't feel worried or bruised
Or anything of that kind.

I just wanted a girl
To get laid with, you know,
Later tonight.

But I couldn't get one,
and I must say
I really didn't try.

I guess I'll save it
For another saturday, you know,
I'm still twenty three,
I guess I'll have much more to try out.

22 de Setembro de 2002

8.21.2009

Travessia da Madeira

Ouvir!Apesar de termos desistido ao fim do segundo dia, devo dizer que algumas das recordações mais fortes destas férias datam deste passeio. Na verdade, acabámos por interromper o percurso porque havia uma passagem de que eu já não me lembrava (e que era realmente muito simples). O Victor Hugo ficou muito irritado comigo, porque o caminho tinha sido terrivelmente duro até ali, e agora tínhamos de fazê-lo todo outra vez. A levada dos Balcões (o caminho interdito) é, sem dúvida, uma das experiências mais poderosas da serra da Madeira. É pena que, no seu livro, o John e a Pat Underwood se limitem a dizer que está a cair aos bocados. Pois está, mas havia certamente muito mais a dizer sobre ela.

Fizemos o caminho de volta a uma velocidade incrível, e quase sempre em silêncio, como seria natural. Foi uma situação em que vi a morte bem de perto, ali, insistentemente, sobre os abismos da Fajã da Nogueira. Pouco depois de termos iniciado o regresso, deu-se uma espécie de catarse. O Victor mudou por completo de atitude, começou a andar muito mais à vontade (agora em cima do muro de apoio da levada e não dentro dela, porque este de facto não é um percurso para fazer com medo das alturas). O ritmo era impressionante: acabámos por fazer o caminho de volta num terço do tempo que gastáramos para lá. Com isso, poderíamos perfeitamente ter rumado até à Central da Fajã da Nogueira, para depois acampar junto aos tis, conforme o plano. No entanto, o Victor Hugo confessava-se desmoralizado, estava mais numa de ir para o Funchal.

Eu também não quis insistir, porque me sentia um bocado porco (no dia seguinte, caso continuássemos o passeio, teríamos inevitavelmente de pedir um banho ao Senhor Luís; a ele ou ao fantasma, considerando que ele já não trabalha lá em cima), porque estava incomodado com aquelas duas mochilas a tiracolo (a armação não era assim tão confortável) e porque sabia que a subida da Fajã da Nogueira ao Pico Ruivo não ia ser nada fácil. Provavelmente ainda ia ser pior do que aquela que tínhamos feito de manhã, entre a Origem da Levada do Castelejo e o Chão dos Pessegueiros. Eu estava numa de chegar a casa, à noite, tomar um bom duche e depois seguir directamente para a cama. O problema é que, quando chegámos ao Ribeiro Frio, não sabíamos bem como voltar para o Funchal. A camioneta já tinha passado, e eu não conseguia falar com o meu pai. O Victor não queria ir para São Jorge, e também não estava numa de telefonar à Bárbara, a prima, porque não lhe tinha dito nada durante as férias e agora era um bocado foleiro ligar-lhe a pedir boleia. Uma hora depois, lá consegui falar com o meu pai.

Estava-se muito bem, no Ribeiro Frio, àquela hora e com perspectivas de voltar para casa. O meu pai chegou, e fomos comer uma açorda ao Poiso. A açorda estava óptima. Chegámos ao Funchal por volta das onze e meia.

Pois é, acabámos por fazer apenas meia travessia da Madeira (ou talvez nem tanto), mas ficou a promessa de fazermos todo o percurso para o ano, desde que o traçado esteja devidamente acautelado. Na verdade, o Victor até queria fazê-lo de imediato, mas eu não achei a ideia muito famosa, porque tinha outras coisas a fazer.

5 de Setembro de 2002

Está programada para amanhã, dia 22 de Agosto, uma Travessia da Madeira tal como planeada pelo Angelus. A travessia tem seu ponto de partida na Ribeira de Natal (Fajã da Nogueira) e só termina três dias depois em Lamaceiros. O evento, organizado pelo Scherzan, está descrito em detalhes neste documento. A não perder.

8.20.2009

Como Fumo

Quando os mouros conquistaram aos cristãos as terras que hoje constituem a Espanha e Portugal, nove bispos partiram de barco em direção ao ocidente numa viagem que durou bastante tempo. Ao encontrarem uma ilha que lhes pareceu habitável, aportaram e, sendo conhecedores das artes mágicas, encantaram o lugar para que não fosse descoberto enquanto os mouros não tivessem sido expulsos da Península Ibérica. Daí em diante, os mouros diziam que para o ocidente havia tanta escuridão que era impossível seguir além. Se algum marinheiro chegava perto da ilha dos nove bispos, levado pelo acaso, não conseguia mais do que entrevê-la, pois logo um vento irresistível o atirava na direção contrária, um nevoeiro se interpunha ou simplesmente a ilha se desvanecia como fumo.

Encontramos Pedro e Tia Eva na Praia das Palmeiras, onde tomamos café e discutimos o Saramago. Estava vento. Tia Eva decidiu fazer um almoço de despedida. Seria milho - uma espécie de papa quente, bastante grossa, feita à base de milho branco - e peixe espada preto para acompanhar. Paramos numa horticultura para comprar vegetais frescos e, já de caminho para casa, Angelus mostrou-me o sítio onde as pessoas costumavam ir, no Funchal, quando queriam se suicidar.

Depois do almoço que a Tia Eva preparara tão amorosamente, Angelus sugeriu que déssemos mais uma volta ao Funchal. Achei ótima a idéia, sobretudo porque queria rever a orla marítima, e tomar Brisa Maracujá na Praça do Anfiteatro. O passeio foi longo e conversamos todo o tempo sobre coisas tão triviais quanto o que eu fazia aos sábados, durante a noite, quando tinha dezoito anos. Encontramos no caminho uns amigos de infância do Angelus, e ele parecia tão feliz em poder revê-los... Os bares fechados traduziam já melancolia. Aquilo tudo ia-me fazer falta, decididamente. Afastei a garrafinha de Brisa Maracujá e perguntei, quase como quem dispensa um devaneio: «vamos?»

Desci com as malas e ficamos no terraço, esperando Pedro. Angelus foi à adega e trouxe uma das garrafas de vinho madeira de safra especial, que me ofereceu como se fosse algo que fizesse habitualmente. Eu não sabia como agradecer, e somente balbuciei algumas palavras formais. Mas era todo contentamento. No carro, a caminho do aeroporto, eram os olhos da Felippa, as mãos retas e firmes de Tia Eva, o cabelo em chamas de Sara, o sorriso da Paulinha, a presteza de Pedro, o corpo esguio de Sebastião, os cadernos de André, a simplicidade de Tio Genaro, a beleza de Tia Valentina, o transtorno de Angelus: a ilha, a ilha.

O vento soprava com bastante força, e eu temia que talvez o vôo fosse cancelado. E se fosse cancelado para sempre? Dentro do túnel, pensei que podia gritar. Não conseguia ouvir o que Pedro estava tentando dizer. Ele gesticulava como se explicando a razão de qualquer coisa. Eu queria gritar, por um motivo qualquer que já não recordo. Talvez quisesse pedir que voltassem, que tinha esquecido... os bilhetes, por exemplo. Eu olhava para Angelus, olhava para Pedro quase com aflição. Mas havia luz logo adiante, e o avião partiu na hora certa.

Fechei a cortina, e recostei-me na cadeira, de olhos fechados. A última coisa de que me recordo é a imagem da ilha se desvanecendo.

8.19.2009

Absinto

«Como assim avançados?» Angelus parecia incrédulo, ultrajado, furioso. «Acha que não vamos pagar?» O motorista de taxi nem se deu muito ao trabalho de responder, apenas repetiu o que tinha dito, como se já tivesse acostumado com o tipo de reação: «Para ir à Câmara de Lobos são dez contos avançados.» Aquela tensão ali dentro do taxi. «Raspem-se,» ordenou Angelus, gesticulando para que saíssemos do carro o mais depressa possível. Paula tinha um sorriso desenhado nos lábios, insinuando que já esperava aquilo. Felippa fez um comentário qualquer acerca da indelicadeza dos taxistas no Funchal. Paula, com as mãos nos bolsos, o ombro encolhido, o meio-sorriso ainda na cara, queria saber como íamos fazer agora. «Então, por exemplo, podíamos tomar um autocarro.»

Chegamos à Câmara de Lobos por volta de onze. Havia muito pouca gente nas ruas. Como aparentemente íamos a um lugar certo, caminhávamos com a naturalidade de quem volta para casa. Felippa falava muito timidamente acerca de Oscar Niemeyer, por quem nutria grande respeito, etc. Paulinha queria saber se ela conhecia alguma outra coisa do "Oscar" que não aquele prédio no centro do Funchal. «O Angelus, por exemplo, já esteve em Brasília. Não esteve, Angelus?» Eu não sabia muito bem como fazer para sugerir que podiam falar do Taveira, se lhes apetecessem, porque eu mesmo pouco sabia a respeito do Oscar e jamais pisara em Brasília, por exemplo. Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, já estávamos sentados, pedindo quatro ponchas de absinto.

O absinto teria sido inventado nos idos de 1792 por um médico francês chamado Pierre Ordinaire. Era comercializado como um desses compostos que serviam para curar de um tudo, tendo, por conta disso, passado a ser conhecido como a fada verde (devido à sua tonalidade esverdeada). Destilados, seus ingredientes compõem-se de anis e de uma diversidade de ervas, em que se destaca o artemisian absynthum, uma substância alucinógena. Por causa disso, a bebida foi banida de toda França em 1915. A medida se estendeu a vários outros países e ainda hoje vigora na maioria deles. Sua venda na Europa está liberada apenas em Portugal e na República Checa.

Angelus assistia à televisão com um certo interesse no filme que a Felippa recomendara. Felippa comentava algumas das cenas, mas não queria soar convincente. Paula falava do Cronemberg. Felippa levava o copo aos lábios, sorria vagamente, tomava mais um pouco, os olhos escuros que não evidenciavam entusiasmo. Paula tomava a poncha de meu copo e perguntava se não íamos pedir mais. Angelus parecia não perceber o que quer que a Felippa estivesse sugerindo. Paula olhava ora para o meu copo vazio, ora para mim, ora para a Felippa; pedia mais uma poncha. Felippa passava o dedo na borda do copo, completamente absorta no esforço que Angelus fazia para perceber um possível sentido naquilo tudo. E uma mão na minha perna. Os olhos da Paula agora eram o dedo da Felippa na boca. Angelus queria desistir, queria outra poncha. Felippa sorria vagamente. Paula segurava o copo. Umas pernas sob a mesa, uma alegria esfumarada e a hora de o bar fechar as portas.

Quando saímos, Paula era evidentemente a mais cambaleante de todos. Entretanto, parecia estar absolutamente à vontade. Angelus comentava o filme, Paula dependurou-se no meu pescoço para confidenciar que detestava aquele filme, embora gostasse muito da Felippa. Felippa não parecia ter respostas para as perguntas que o Angelus sugeria.

"Não há taxis," anunciou Angelus ao fim de alguns minutos de espera ali na rua vazia. Paula ria como rira quando Angelus nos tinha feito sair do taxi naquela mesma noite. Os ônibus também já não circulavam. Paulinha, os ombros encolhidos, queria saber como íamos fazer agora. Logo adiante, um letreiro luminoso: Hotel Belle Époque.

8.18.2009

O Paul da Serra

O almoço tinha sido gaiado seco, que Pedro faz muito bem, pão de pedra e batatas cozidas à moda da Madeira. A salada sabia ao frescor da horta que víamos através da janela. Tia Eva parecia cheia de disposição para ir à Lagoa do Vento: seria a sua primeira vez, apesar de ter quase sempre vivido na ilha. Eu segurava a batata na mão com o pânico de quem come umbu-cajá sem saber exatamente como e acompanhava os comentários ora de Tia Eva ora de Pedro acerca da culinária madeirense. Sara comia uma porção mínima de salada, quase como um pintassilgo. Angelus pegava mais gaiado e parecia desinteressado no que quer que Pedro tinha a dizer acerca das tradições de cada povo da ilha no que respeita à alimentação.

Apesar da inisistência, Paula e Felippa não quiseram almoçar conosco, e ficaram nos esperando do lado de fora da casa. Partimos por volta das três da tarde; o dia estava ensolarado e bom. Íamos no jipe de Pedro: Felippa, Paula, eu e Angelus atrás; Tia Eva e Sara à frente. Paula sentou-se ao meu lado e conversava todo o tempo, muito lampeira. Felippa olhava qualquer coisa na máquina fotográfica que trouxera. Enquanto fingia ouvir o que Paula tinha a dizer, eu observava os movimentos redondos e inexperientes de Felippa com a sua máquina fotográfica.

A temperatura ficava cada vez mais fria à medida que subíamos a serra que ia dar ao Paul. Valentina, Genaro e Sebastião nos esperavam num restaurante temático, lá em cima, com cobras, elefantes e papagaios de espuma e plástico por todo o lado. O lugar estava vazio, a não ser pelos três, que tomavam refrigerante de tomate com alguma melancolia. Tia Valentina abriu um sorriso largo quando nos viu chegar, e se aproximou já cheia de queixas: por que havíamos demorado tanto? Tia Eva pediu uma garrafa de Brisa Maracujá e, depois, seguimos para o ponto de partida da caminhada que nos leva até a Lagoa do Vento.

Paula continuava falando e Felippa estava mais e mais concentrada no que quer que fosse. Angelus procurava participar da conversa, mas desistiu quando o óbvio não pôde sê-lo ainda mais: Paula estava muito pouco interessada em ouvir o que já sabia acerca do posicionamento de tudo o que Angelus tivesse a dizer sobre o que ela falava, embora eu já não recorde exatamente o quê. «Podíamos ir hoje à noite à Câmara de Lobos, Angelus, para o Miguel conhecer a poncha de absinto.» Foi tudo acertado. Paula prometia uma expiriência única, a poncha de absinto.

Quando chegamos à lagoa, já tínhamos caminhado por cerca de uma hora. Sebastião parecia indisposto e sequer tirou a roupa. Deitou-se numa pedra e lá ficou até decidirmos voltar. Paula foi a primeira a despir-se. Queria tomar banho: soltava os cabelos, tirava cada peça de roupa, ria e não parava de falar. Insistiu que Felippa também tinha de entrar com ela na água, que não ia só. Depois de alguns gritinhos e uns passos muito cautelosos, as duas nadavam no meio da lagoa gelada. Angelus entrou cheio de coragem.

Como estivesse ficando tarde, não demoramos muito. Subir de volta ao ponto de origem demorou cerca de meia hora além dos esperados sessenta minutos. Dessa vez caminhamos em silêncio. Já no carro, Paulinha voltou a falar. Angelus escolheu sentar-se ao meu lado. O frio era quase insuportável porque, ao contrário das paulas e felippas, trazíamos apenas camisas de algodão. Para além do frio, o jipe andava aos solavancos, Felippa continuava séria (mas absolutamente confortável em sua discrição) e Paula falava sobre como tinha sido bom o passeio. Pedimos que Pedro parasse um pouco o carro (ainda estávamos no planalto) porque Angelus estava evidentemente mal. «É só um enjôo rápido, é a estrada,» dizia, balançando a mão, como se fosse um nada. O céu ali no deserto do Paul era de um azul desmaiado.

8.17.2009

A Flor do Mal

Quinta-feira. Aquele seria o penúltimo dia na ilha e eu já estava começando a pensar no que ainda não tinha feito. Assim, por exemplo: não tivemos tempo de ir ao Jardim Botânico. Quando saí do quarto, quase guiado pela música do Lully, Angelus anunciou que o pequeno almoço já estava servido. Tia Eva tinha decidido fazer uma surpresa e, além de um jarro com três massarocos em flor, colhidos ao jardim da casa de Angelus, tinha disposto na mesa da varanda um cesto de pão fresco, algumas anonas e geléias variadas que ela mesma tinha feito. O bilhetinho por baixo do cesto de pão era de Pedro, e dizia que logo mais à tarde iríamos todos à Lagoa do Vento. Sugeri a Angelus que convidássemos a Paula e a Felippa.

O Jardim Botânico ficava perto de onde estávamos. Originalmente idealizado pelo britânico J.R. Theodor Vogel em 1841, mas somente levado adiante pelo alemão Frederico Welwitsch em 1852, e finalmente concluído sob a coordenação do naturalista português Barão Castello de Paiva em 1855, o Jardim Botânico da Madeira possui hoje mais de 2000 plantas exóticas, oriundas de todos os Continentes, e organizadas de modo bastante criterioso em seus 35 000 m2. Uma das preciosidades de seu acervo é mesmo a estranhíssima Amorphophallus titanum, que em português recebe o nome bastante sugestivo de flor do mal. Originária das florestas tropicais da Indonésia, essa é uma raríssima espécie que pode atingir até 5 metros de altura e 3 de comprimento. Descoberta em 1879 pelo botânico italiano Odoardo Beccari, a flor do mal é assim conhecida por emitir um intolerável odor de carne em putrefação. O odor serve para atrair insetos, que a polinizam. Curiosamente, apesar de levar até sete dias para desabrochar por completo, depois de totalmente aberta a flor vive por um período de no máximo 24 horas.

Sentamo-nos ao pé de um jacarandá e perguntei a Angelus se ele conhecia os
versos: enquanto os sapatos/ descansam/ em baixo da cama é o sol/ por sobre as cobertas/ azuis da cor de manhã/... vazia a garrafa/ de água e sede/ vazia de sede e sede/ de copo/ vazio de planta/... em cima da cama/ e das prateleiras e/ mais prateleiras e/ mesa e sofá/ repousam descansam/ os livros vazios/ de discos vazios um/... enquanto lá fora/ o pano que seca/ o sol que insiste... Não lembrava do poema por completo, e ia soltando os versos como o vento que trazia as folhas secas do jacarandá.

Por um instante pensei que talvez tivesse arruinado os últimos dias das férias. Angelus respirava tal qual uma Amorphophallus titanum desabrochando. Buscava uma maneira adequada de abordar o assunto. Eu teria o direito de ter feito o que fiz? Agora estava feito e já não valia a pena fazer conjecturas éticas. Entretanto, ele parecia pronto para discutir o inevitável. Seria aquela a primeira e muito provavelmente a última vez que Angelus mencionaria o André. Ele me encarou como se permitisse perguntar o que quer que eu intencionasse saber. A minha curiosidade irmã das cotovias...

A série de patamares que compõe o Jardim Botânico está distribuída de acordo com afinidades geográficas e/ou familiares das espécies que ali se encontram. Já na entrada estão as plantas exclusivas da Macaronésia, com um mostruário da flora endémica da Madeira, única em todo o mundo, incluindo as árvores mais representativas da sua floresta natural, a Laurisilva. Descendo um nível, o cenário muda por completo: é a vegetação do deserto, composta por xerófitas, tais como os cactos e as bromélias. Logo abaixo, a vegetação das florestas tropicais e semi-tropicais. Era onde estava o nosso jacarandá, que só vai voltar a florir em Março. Um pouco mais adiante, a estufa com a famosa flor do mal. Embora a espécie ainda estivesse em fase embrionária, havia uma fila imensa para observá-la. A promessa da administração do Jardim Botânico era de que a flor podia começar a abrir a qualquer instante.

8.16.2009

Paula

A discussão começou antes mesmo de terminarmos o jantar. Cortando com uma precisão quase calculada a pizza de alicci, Angelus argumentava a favor do silêncio como uma forma de evitar os que ele chamava “passos em falso.” Não entendia nada daquilo. O meu posicionamento é obviamente muito mais latino. Mas o debate correu de uma maneira absolutamente européia. Ou seja, não chegamos a lugar nenhum.

Subíamos e descíamos as ruas do Funchal, desviando-nos de um ou outro carro, ainda seguindo: quais os limites da mediocridade e o que significava exatamente ultrapassá-los? A cerveja estava relativamente boa no Jota naquele dia, embora a música continuasse fraca. Era tempo de irmos ao Latino, um bar de estudantes, todos apinhados no balcão, sacudindo uns dedos, gritando uma imperial se faz favor. Com a imperial ganhamos uma peça de quebra-cabeças e, porque acertamos onde iam as nossas peças, recebemos cada um uma prenda das raparigas cheias de batom e sorriso e lantejoulas na cara. O que havíamos de fazer com um relógio e uma bolsa? O relógio dizia que estava quase na hora do show da Felippa. Então nos dirigimos ao Monge.

Havia muito pouca gente interessada na música, mas eram educados o suficiente para não conversarem. Felippa, sentada num banquinho de madeira, uma mão sobre o colo, a outra segurando languidamente o microfone, os olhos fechados, uma roupa muito sóbria, os cabelos soltos, quase despenteados, cobrindo-lhe às vezes o rosto, cantava num inglês muitíssimo bom. Angelus não parecia impressionado: foi buscar uma vodka ao balcão. Voltou com o seu copo já pela metade. Entregou-me o meu ainda buscando qualquer coisa. Eu procurava disfarçar o incômodo que a voz de Felippa e aquela música me causavam.

Quando terminou, saiu do banco com uma naturalidade de quem ainda continua a cantar, e foi trocar umas palavras com o rapaz do violão, absolutamente alheia às poucas palmas de polidez. Terá sido a minha insistência que fez com que ela, afinal, virasse o rosto em minha direção, sorrisse, acenasse a mão, voltasse a conversar com o rapaz de longos cabelos desalinhados e me deixasse vermelho de constrangimento? «Acho que a Felippa gostou de te ver,» murmurou o Angelus, ainda procurando a Paula. Em pouco tempo, eu já estava com um segundo copo de vodka na mão.

Não sabia muito bem se devia tecer algum comentário, dizer que tinha gostado, etc. Não queria soar polido como as palmas. Eu tinha gostado bastante, de fato, mas temia não parecer verdadeiro, ou antes: não desejava colocá-la numa situação pouco cômoda. O que quer que fosse, decidi apenas falar sobre o tempo. Ela respondia, fazia perguntas, ria e evidenciava naturalidade. Estudava, sim, canto lírico. Mas não julgava que fosse seguir carreira: o seu registro de voz era bastante limitado. Então cantava porque o Fausto precisava de alguém, tinha umas composições, tinha o espaço no Monge... Morava em Lisboa, sim, morava. Mas era da Madeira. Voltava sempre nas férias de verão. «É a Paula!»

Sempre imaginei como seria a Paula pessoalmente, mas nada do que eu tivesse imaginado correspondia àquela aparição. A Paula é quase uma aparição, quase irradia, mas de uma maneira diferente. Não chegava a chamar atenção. Na verdade, pouco chamava atenção sobre si. Entretanto, quem desse pelo fato, ficava com a mesma alegria de quem vê uma estrela cadente. A Paula é uma estrela cadente. Após as devidas apresentações, ela quis saber o que estávamos bebendo, e Angelus imediatamente se ofereceu para ir buscar uma vodka. Ela agradeu, muito simpática, rindo, olhando para uma mesa adjacente. Podia ter ido cumprimentar o amigo da mesa ao lado, mas quis saber o que eu estava achando da Madeira.

Conversamos ainda por cerca de uma hora sobre assustos variados, mas muito triviais. Angelus pouco participava; parecia inquieto. Ao fim de algum tempo, Paula levantou da cadeira e quis saber se queríamos acompanhá-la. Ia dançar, estava a fim de dançar. Sim, claro, boa idéia – juntávamos os copos, um pouco sem saber exatamente o que fazer com o resto de vodka – mas para onde? «Olha, por exemplo o Copacabana.» O Copacabana, ótimo.

Chegamos ao Copacabana por volta das três da madrugada, mas as pessoas estavam frescas e animadas como se ainda fosse meia-noite. Eu não sabia ao certo por onde começar, e portanto fui com o Angelus buscar mais uma vodka. Quando voltamos, Felippa e Paula dançavam como que sozinhas em casa. Tentamos, um tanto quanto desastradamente, acompanhá-las. Ao fim de algum tempo, estávamos dançando tão sem pudor como dançara Sebastião naquele sábado em São Jorge.

O Copacabana, infelizmente, fecha às quatro da madrugada, de sorte que tivemos de abandonar a pista justamente quando achávamos que enfim tínhamos encontrado o passo certo. Então a saideira. Paramos num bar que ficava perto do cais, bastante simpático, e pedimos uma sangria para cada. Já não tínhamos muito o que dizer um para o outro. E assim estava ótimo.

Já em casa, Angelus fechou a porta com um ar muito sério. Olhou para mim um tanto trágico, e não pôde aguentar por muito tempo a vontade de rir. Olhava para mim, ria, e eu também ria muito, ainda sem que soubesse exatamente porquê. Somente depois do abraço é que eu percebi tudo.

8.15.2009

O Miradouro do Radar

Localizada no extremo este da ilha da Madeira, está a Ponta de São Lourenço, península com cerca de 9 km de comprimento e 2 km de largura, que, devido a sua fauna, flora e herança geológica peculiares, foi, em 1982, declarada Reserva Natural Nacional. O conjunto daquela parte da ilha é completamente diverso do que eu já tinha, até então, presenciado. A começar pelas cores: a terra quase rubra, mas escura: marrom. E uma vegetação rasteira, constituída quase que exclusivamente por matorral xerofítico do litoral, mas muito degradado. A impressão que se tem ao final de algum tempo de caminhada é a de que o lugar foi completamente devastado por um incêndio. Sara ia à nossa frente, muitíssimo desinteressada em o que quer que estivéssemos falando.

Nos idos da colonização da Madeira, o excesso de arvoredo que havia na região trouxe problemas para a agricultura. A única maneira que encontraram para resolver a questão foi deitar fogo ao mato, que ardeu num braseiro incontrolável: conseguiram-se clareiras, mas durante sete anos houve focos de incêndio na ilha que ninguém conseguia dominar. Quando soprava o vento do norte, as gentes do Funchal tinham de fugir para os barcos e fazer-se ao largo, de tal maneira era o calor insuportável.

Na saída da reserva natural, encontramo-nos todos: Pedro, Tia Eva, Sara, Tio Genaro, Tia Valentina, Sebastião, Angelus e eu: queríamos ainda parar um instante na Prainha da Ponta de São Lourenço, a única praia da Madeira feita de areia (ainda que escura). O dia não estava muito propício para banhos, e como estivéssemos todos com fome, só mesmo restou a lembrança daquela paisagem árida, pintada de amarelos, castanhos e laranjas, bastante longe dos verdes que a ilha habitualmente oferece. Eu estava particularmente excitado ante a perspectiva de experimentar as tais famosas castanhetas, tão prometidas por Angelus. As melhores estão na vila do Caniçal, ali mesmo perto.

Reservamos uma mesa comprida o suficiente para nós os oito, mas Sara desaparecera. Primeiro vieram os caracóis marinhos, que sabem a nada que não ao mar mesmo. Quando os alfinetes já estavam perdidos pelos quatro cantos, chegaram as lapas, deliciosamente bem preparadas, e o pão caseiro. A cerveja era farta. Tio Genaro ria o tempo todo, e a alegria era também evidente no rosto de Tia Valentina. Os dois encarnavam o deleite. A seguir, as castanhetas.

A castanheta, cientificamente conhecida por Chromis luridius, é um pequeno peixe de apenas 15 cm de comprimento no máximo, que habita substratos marinhos rochosos, tais como as zonas de calhaus. Dadas as pequenas dimensões e a sua especial susceptibilidade, tem-se feito um grande esforço para evitar a sua pesca. Entretanto, é ainda possível comer um bom prato de castanhetas fritas na vila do Caniçal. Eu nunca provei em toda a minha vida peixe mais saboroso, embora tenha de admitir que o conhecimento da possibilidade de extinção dessa espécie talvez é o que lhe confere, enfim, o sabor especial. Come-se com a mão, como tantos outros pratos da ilha.

Mais cerveja. Sebastião propositadamente derruba o copo de Tio Genaro, e a preocupação momentânea substitui a alegria: a roupa molhada, um copo partido, os guardanapos de papel por todo o lado, a satisfação de Sebastião. O próximo e último prato seria de pargos.

Sara nos esperava no carro. Parecia cansada. Sem planos de explicar o que quer que tinha feito enquanto comíamos, massageava ritmicamente as pernas. Todos iríamos agora no carro de Pedro, primeiro para a Baía de Abra, depois para o Miradouro do Radar. Angelus segurava a máquina e fazia fotos ininterruptamente. Tia Eva e Tia Valentina pareciam muito pouco à vontade.

Não estávamos suficientemente interessados na Baía de Abra com os seus banhistas sonolentos para que lá ficássemos mais do que alguns poucos minutos. Partimos em direção ao Miradouro do Radar, onde, segundo Pedro, poderíamos ter uma das mais belas visões da Ponta de São Lourenço. A estrada era bastante irregular, de sorte que os que estávamos atrás do jipe tínhamos de nos segurar bastante bem para que não fossemos arremessados para fora.

O lugar, tal como Pedro prometera, era impressionante. Descemos todos e cada um foi para seu lado no miradouro, como se buscássemos qualquer coisa: o ângulo mais privilegiado, uma surpresa, a razão de termos feito todo aquele caminho no desconforto. De repente, por um motivo que já agora não recordo (se é que ali mesmo tenha sabido), todos começamos a rir. Tio Genaro abriu os braços: o vento era selvagem. Angelus registrava tudo, mas depois pareceu se perguntar: o que de fato registrara?

8.14.2009

Nume

Ouvir!Nume: ser ou potência divina, divindade, deidade, espírito sobrenatural que protege e ilumina os homens, inspiração poética, sentimento íntimo, afeiçoamento. Em latim, a palavra quis significar ao mesmo tempo movimento de cabeça, assentimento e poder divino.

A vida, a minha vida é um desentendimento fluido: uma média alegre entre a grandeza que não há e a felicidade que não pode haver. Nenhuma simpatia violenta desperto. Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Não posso ser nada e tudo: sou a ponte de passagem. Por que escrevo então? Por saber que aqui resulto fútil, falhado e incerto.

como quem nada nihil rien de quelque
chose


Geralmente...

sub sole buscasse senão
prazer


procuro estudar a impressão que causo nos outros, tirando conclusões.

no rosto de quem

quase um chamado
pode ouvir?


Em geral, sou uma criatura com quem os outros simpatizam, com quem simpatizam, mesmo, com um vago e curioso respeito.

um chama
do banho que se quer
para sempre


Mas nenhuma simpatia violenta desperto. Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar.

à noite é que vou me acordar

Perco-me, por isso, às vezes, numa imaginação fútil de que espécie de gente serei para os que me vêem, como é a minha voz, que tipo de figura deixo escrita na memória involuntária dos outros, de que maneira os meus gestos, as minhas palavras, a minha vida aparente, se gravam nas retinas da interpretação alheia.

ao som das chaves e a porta
e os passos e a alegria de
acordar de sobressalto


Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou a inofensividade encarnada. Mas não sou mais do que isso, não posso ser mais do que isso. Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um carinho da inteligência – nada no coração. Não tenho fé em nada, esperança em nada, caridade para nada. Abomino com náusea e pasmo os sinceros de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos. A fadiga de ser amado!

enquanto branco rompe
desce ao longe um temporal

e antes é a imagem que
o fogo que expulsa e devora


Tudo é complexo, ou eu que o sou. Mas, de qualquer modo, não importa porque, de qualquer modo, nada importa... Se sonho, parece que me escrevem. Se sinto, parece que me pintam. Se quero, parece que me põem num veículo, como a mercadoria que se envia, e que sigo com um movimento que julgo próprio para onde não quis que fosse senão depois de lá estar.

um vulcão a boca a larva
um olhar sobressaltado


ao som da água que pinga... mente, o quanto é mais do que oco o lugar... não pertenço, desejo, sou nada... caído sentiente virado para... lágrimas rítmicas... farto de tudo, e do tudo de tudo... secas que continuam vivas nos meus sonhos... maria, maria, maria, maria...

e antes é a mão: grande
treme cinge circunde

e antes a imagem: noite
branca janela inerte

mas a força em tudo que
o olhar que penetra e foge


Hoje é o que penso: o há-de-ser-feito, o movimento, o mundo? Na loja de discos e a banda e o grupo e a cátia e o não saber dizer resposta inteligente, nada disso sou tudo isso e muito: o nume. Não vêm? Um dia vai ler então é melhor: o silêncio. Cada um de meus discos, as revistas empilhadas e mais páginas... Seria feliz se pudesse dormir. A noite é um peso por detrás do afogar-me com o cobertor mudo do que sonho. Tenho uma indigestão na alma.

e a mão que irrompe e
fecha afasta fria grande

enquanto o grito branco
na noite a casa: vazio


O mundo, hoje? O meu desejo é fugir. Fugir ao que conheço, fugir ao que é meu, fugir ao que amo. Desejo partir - não para as Índias impossíveis, ou para as grandes ilhas do Sul de tudo, mas para o lugar qualquer - aldeia ou ermo - que tenha em si o não ser este lugar. Quero não mais ver estes rostos, estes hábitos e estes dias. Quero repousar, alheio, do meu fingimento orgânico. Quero sentir o sono chegar como vida, e não como repouso. Uma cabana à beira-mar, uma caverna, até, no socalco rugoso de uma serra, me pode dar isto. Infelizmente, só a minha vontade mo não pode dar. Se apenas amamos, podemos?

Sempre, depois de depois, virá o dia, mas será tarde, como sempre.

8.13.2009

O Vinho de Volta

O propósito do Infante D. Henrique ao enviar navios à Sicília, na Itália e à Ilha de Creta, na Grécia, logo após o início da colonização da Madeira, foi o de obter para Portugal o comércio de açúcar, por um lado, e, por outro, o de vinhos doces, que até então tinha sido privilégio dos genoveses e venezianos. Como o clima e o solo da recém-descoberta ilha pareciam propícios para a plantação de determinadas castas nobres usadas no fabrico do vinho doce, o Infante decidiu entrar na concorrência com os italianos, sob os auspícios da Inglaterra. Primeiro vieram cepas de malvasia. Mais tarde plantaram-se outras castas: sercial, boal e verdelho. Todas com bastante sucesso.

A produção de vinho na ilha da Madeira começou então a ser feita em larga escala, de forma a atender não apenas o mercado inglês, mas também o de outras terras. Embora a exportação, em geral, fosse bastante bem-sucedida, nem todo o produto final era necessariamente vendido. Muitas das naus que se dirigiam para Oriente repletas de vinho, regressavam ao Funchal intactas. Notou-se então que algo de curioso acontecia com os vinhos que regressavam dessas empreitadas desafortunadas: por conta das altas temperatura a que eram submetidos durante a viagem, o processo de envelhecimento dava-se de maneira suave, o que resultava num vinho com uma qualidade muito superior. Este vinho, que passou a ser conhecido como "Vinho de Volta" ou de "Roda da Índia" ou simplesmente "Vinho de Roda" ou ainda "Vinho de Torna Viagem", passou a ser disputado no comércio, e eram comercializados a peso de ouro. Essa é a origem do hoje célebre Vinho Madeira.

Célebre, célebre. O vinho era tão apreciado no Século XV, que chegou a ser usado como perfume para os lenços das damas da corte. Pois não foi o Falstaff, ademais, que, na peça "Henrique IV" de Shakespeare, vendeu a alma ao diabo em troca de um pedaço de capão frio e um cálice de "madeira"? Contam ainda que em nos idos de 1478, o Duque de Clarence, da Inglaterra, tendo sido condenado à pena capital pela Câmara Alta, e tendo se lhe dado à escolha o gênero de morte que preferia ter, acabou optando por afogar-se num tonel de vinho madeira, o que efetivamente ocorreu.

Tudo isso serve para dizer que se não saímos naquela noite de terça-feira, como havíamos combinado, foi por uma causa nobre. Como estivesse muito tarde, e a música fosse tão boa, resolvemos que ficaríamos em casa mesmo. Mas a verdadeira razão para a mudança de planos foi mesmo o vinho madeira. Angelus decidiu abrir uma das garrafas de safra especial que guardava na adega para que eu conhecesse o sabor autêntico da bebida. Conversávamos sobre o passado e acabamos por abrir uns álbuns de fotografia antigos. As histórias que estavam associadas a algumas daquelas fotos eram contadas ora com desinteresse, ora com renovada alegria. Em pouco tempo, era como se eu o conhecesse já há pelo menos vinte anos.

Depois da terceira ou quarta rodada de madeira, o assunto, que tinha percorrido os caminhos da literatura, da crítica de arte, da música, das trivialidades e da culinária, tomou outro rumo. Evidentemente que ele se propunha a encontrar possíveis respostas para questões pouco novas, mas eu não me importava em tentar seguir os seus passos. Quando cheguei à conclusão de que talvez fosse bom pararmos por ali, Angelus já estava vomitando pelas escadas...

Fui levá-lo ao quarto. «Tens a certeza de que estás bem?» Ele olhava para mim, lívido, envergonhado. «Eu posso ficar aqui um pouco, se quiseres.» Permanecia calado. Nesse momento, olhei para o quarto com atenção, pela segunda vez desde que chegara ali. Os livros, os objetos, as roupas espalhadas pelo chão, os sapatos, a bolsa suspeita... «Queres que eu saia?» Sem tirar os olhos da parede, respondeu, quase entredentes: «Prefiro.» Fechei a porta com cuidado, sem dizer palavra.

Talvez tenha sido esse espisódio que justificou aquilo que eu faria a seguir.

8.12.2009

O Bailinho da Madeira

Na descida do Pico do Areeiro há um famoso bar chamado Meio, onde fazem a não menos célebre misturada. Paramos e cada um de nós serviu-se de uma porção. Estava fresco o dia lá fora, e havia névoa naquela zona. Pedro explicava a razão do nome do bar: antes da construção da Via Azul, aquela estrada era quase a única opção para quem quisesse se deslocar do norte para o sul da Madeira. Como aquele ponto ficasse quase ao meio do caminho, e o percurso era bastante mais longo, as pessoas costumavam parar ali para descansar. Em se considerando a relativa altitude do lugar, o clima em geral era mais para o fresco durante todo o ano. Daí a razão da misturada: metade poncha, metade café. Ora, quem prefere a poncha pura, não precisa ir mais longe. Mas a misturada vinha mesmo a propósito. Afinal, era suposto que as pessoas depois se sentissem sóbrias o suficiente para voltar à estrada. A misturada só pode mesmo ser encontrada em toda a ilha ali, no Meio. Já a poncha não.

A poncha, uma bebida associada no passado aos pescadores, homens das montanhas e outros ilhéus que tais, é hoje tão popular na Madeira quanto os bordados e o bolo de mel, sobre os quais não intenciono falar. A receita é muito simples: pegue uma boa medida de aguardente de cana sacarina, junte-lhe mel também de cana e sumo de limão. Misture bem com o pauzinho apropriado, chamado pau-da-poncha, que se faz rolar, rapidamente, entre as palmas das mãos, e já está! Obviamente o resultado pode variar de acordo com a mão que rola o pau. Há também medidas exatas para tudo, e isso é um fator determinante para o resultado final da bebida. A melhor poncha que tomei na Madeira foi mesmo a que Pedro fez. Mas se lá o Pedro não estiver, pode-se ir também à Câmara de Lobos, onde se faz, para além da poncha tradicional, excelente, uma série de variantes, entre as quais a poncha de absinto, cuja história a ela associada logo se saberá.

Esperamos que a conversa entre Angelus e o tal homem de cabelos longos, branco, ainda mais branco que Pedro, barbas ainda mais longas que os cabelos e tatuagens por todo o lado, enfim, chegasse a um termo. E partimos para Machico.

Antes é preciso dizer que existe no caminho entre o Pico do Areeiro e o tal bar onde paramos para a misturada uma casinha de pedra muito parecida com um iglu. Em tempos passados, aquela casinha era usada para armazenar neve! Como não existisse na Madeira energia elétrica, e muito menos refrigeradores, dali vinha todo o gelo que precisassem no hospital para manter certos medicamentos conservados durante o verão. Eu achei essa uma história tão engraçada!...

Quando saímos de casa em direção a Machico já era perto das dez da noite. Tínhamos usado o resto da tarde para fazer algumas fotografias, ali mesmo em casa do Angelus. Pedro, sempre pontual, chegou na hora que prometera, e lá fomos experimentar o gaiado na Feira Gastronómica de Machico.

Há quem prefira atribuir o nome daquele concelho de cerca 11.916 habitantes a um outro episódio talvez menos curioso. Trata-se da história de amor entre um pobre porém gracioso inglês chamado Machim e uma bela porém nobre donzela chamada Ana d’Arfet. Os pais, obviamente, descobrem tudo e, ainda mais obviamente, impedem que se vejam. Um casamento é então arranjado às pressas para a menina Ana. Machim planeja uma fuga para a França. Embarcam os dois num navio de mercadores, o qual naufraga sob uma tempestade e vai, à deriva, parar numa terra desconhecida, toda coberta de arvoredo, mas desabitada. Viveram uns poucos dias muito felizes naquela ilha, sem nunca terem topado com São Brandão ou com Landon, o terrível dragão de cem cabeças que, naquela altura, ainda não tinha sido derrotado por Jorge. Mas Ana, afeitas aos luxos da corte, morre em pouco tempo, o que deixa Machim completamente transtornado. Enterra o corpo de sua amada num vale muito frondoso da ilha e dali não sai. Com o passar do tempo, a chuva, o frio, o vento, a fome, o sol, o dia, a noite, Machim acaba por morrer. Teria sido o próprio João Gonçalves Zarco, o tal português que é considerado, juntamente com o Tristão Vaz Teixeira, o descobridor do Arquipélago da Madeira, que primeiro encontrou o túmulo onde jazia os dois amantes, e o relato da história tal como se conta aqui foi mesmo originado a partir dos pertences que revelariam a origem dos corpos. A palavra Machico é pois uma corruptela do nome do jovem inglês apaixonado.

A Feira Gastronómica de Machico tem ser tornado, gradualmente, um evento de grande porte na ilha. É para lá onde vão os habitantes sem opções numa noite de terça-feira em princípios de agosto. Embora esse não fosse o nosso caso (estávamos ali porque era mesmo caminho para o aeroporto), a visita mostrou-se de relativo interesse. Entre raparigas usando roupinhas de domingo, e rapazes fingindo desinteresse, havia também apresentações folclóricas, como o Bailinho da Madeira, tradicional manifestação de rua onde, vestidos de trajes coloridos, um grupo de pessoas canta e dança ao som do brinquinho.

O brinquinho é na realidade um conjunto de sete bonecos de pano e traje regional, portadores de castanholas e fitilhos, dispostos nas extremidade duma cana da roca, em duas séries circulares e de diâmetro desigual, uma com quatro e outra com três daqueles fantoches. Este acessório musical, animado de movimentos verticais à mão do seu portador, serve a bater compasso aos bailadores. (Na realidade, o brinquinho não é de origem madeirense e foi introduzido na ilha há menos de um século, sendo instrumento do folclore continental português e um dos mais típicos das romarias do Minho e Douro, onde se chama charola ou cana de bonecos. Ora, quem não conhece a canção? Milho verde, milho verde, ai milho verde, milho verde, ai milho verde miudinho; à sombra do milho verde, ai à sombra do milho verde, ai namorei um rapazinho...)

Mas o propósito de ir a Machico naquela altura é mesmo o de comer qualquer coisa, afinal. E opções é o que não falta: tem a sopa de trigo, a sopa de couve, a sopa de moganga, o cuscuz, o bife de atum com milho frito, o milho cozido com chicharos, ou espada ou atum fritos, o polvo de escabeche, a tripa de porco recheada, o gaiado seco, o gaiado de escabeche, o atum de escabeche, as lapas grelhadas e as lapas de escabeche, entre outros petiscos. Optamos pelo gaiado seco, especialidade do local, e o polvo de escabeche, muito bom. O gaiado, cujo nome científico é Thynnus pelamys, é um peixe da família Escombrida e é consumido geralmente depois de salgado e seco ao sol. Tem um sabor bastante acentuado, mas cai bem com a boa cerveja Coral.

Tia Eva e Sara desembarcavam às 11:45, de sorte que devíamos nos apressar. Quando lá chegamos ao aeroporto, elas já nos aguardavam na sala de recepção. Sara parecia bastante cansada, Tia Eva parecia somente melancólica. Angelus queria saber se apetecia a Sara sair logo mais à noite, e ela nem se deu ao trabalho de responder. Pedro nos deixou em casa e seguiu adiante, com as duas. Sara nunca olhou para trás, e até hoje vive muito bem.

8.11.2009

Machico

Na época em que D. Afonso Henriques andava a conquistar as terras portuguesas aos mouros, havia um nobre chamado D. João Froiaz, que vivia no Minho, num belo castelo ao pé do mar. Certa manhã partiu com os seus homens para a caça, como habitualmente fazia. Dirigiu-se para a foz de um ribeiro, na esperança de aí encontrar algum veado a matar a sede. Mas o que viu deixou-o espantado: no ponto onde as águas do mar e do rio se encontravam estava uma linda sereia, de cabelos soltos e mal coberta por um vestido de algas. Dormia tranquilamente, gozando o sossego da manhã, com a cabeça apoiada nas plantas da margem.

D. Froiaz estava decidido a apanhá-la e por isso mandou os seus homens pararem. Com pezinhos de lã dirigiu-se para a mulher, mas ela deu pela sua presença e desatou a correr para o mar. Não chegou a tempo, pois o cavaleiro agarrou-a antes. Ela esbracejava e debatia-se, mas nem uma palavra dizia. O fidalgo levou-a para o seu castelo, apaixonou-se por ela, baptizou-a com o nome de Marinha e desposou-a. Com medo que ela fugisse para o mar, levou-a para outro castelo nas montanhas, onde tiveram vários filhos.

D. Marinha, apesar da evidente afeição que tinha pelas crianças, andava sempre a suspirar com as saudades do mar. Embora o seu marido a tratasse com muito carinho e a rodeasse com delicadezas e cuidados, ela continuava a não falar. O silêncio da mulher enchia D. Froiaz de desgosto. Um dia, então, armou uma grande fogueira, pegou no filho mais novo e fingiu que o arremessava para o lume. A mãe, numa grande angústia, gritou, tentando impedir o marido: «Ai, o meu filho!». D. Froiaz, eufórico, entregou-lhe a criança e disse que tudo tinha sido um estratagema para que ela falasse. Depois disto D. Marinha ficou totalmente humana, e por isso puderam voltar para o castelo à beira-mar. Aí os filhos, os Marinhos, ocupavam grande parte do seu tempo na praia a explorar grutas e reentrâncias da costa ou a nadar pelo mar dentro.

Uma vez D. Froiaz deixou escapar por distracção o filho mais novo, que trepou a uma rocha e foi levado por uma onda, que o arrastou para longe da praia. Louco de aflição, o pai já se preparava para se atirar à água, embora não soubesse nadar, quando uma coisa extraordinária aconteceu: o mar acalmou de súbito e uma onda enorme, como uma grande mão, veio depor a criança suavemente sobre a areia.

Quanto mais cresciam mais se notava que os filhos de D. Froiaz e D. Marinha eram netos do Mar: escutavam as histórias do oceano nos grandes búzios que apanhavam na praia, ouviam e falavam com as ondas, conheciam os segredos do mar como ninguém. E, quando cresceram, ganharam fama de serem os melhores mareantes do seu tempo.

O mais novo dos Marinhos, Machico, ouvira falar das ilhas encantadas e de que numa delas encontrara São Brandão o paraíso. Aprestou uma barca de mantimentos e aparelhos e partiu com alguns companheiros. Quatro ou cinco dias depois de seguir pela rota que lhe haviam ensinado viu no horizonte nuvens que pousavam sobre o mar, sinal de terra próxima. Quanto mais se aproximavam, mais a névoa se adensava e ouviam-se estrondos enormes. Os marinheiros, cheios de medo, pensaram que ali era a entrada para o Inferno e pediram a Machico que voltasse para trás.

Mas de súbito, o nevoeiro descerrou-se e viu-se um espectáculo belíssimo: as rochas erguiam-se a pique sobre o mar; bosques de grandes e belas árvores desciam até à água; mais adiante estendiam-se montes que pareciam não acabar e um suave perfume espalhava-se no ar. Machico, perante o esplendor da ilha, convenceu-se que tinha chegado ao paraíso de São Brandão e, como a terra era toda coberta de florestas, chamou-lhe a Ilha da Madeira.

8.10.2009

O Pico Ruivo

Quando chegamos ao Pico Ruivo, as nuvens estavam, afinal, abaixo de nós. Durante todo o percurso, feito a partir da Achada do Teixeira, estávamos entretanto no meio do nevoeiro. Era no mínimo invulgar ver aquele mar nebuloso sob as nossas mãos. Não tinha sido difícil o trajeto até ali, de sorte que estávamos mesmo ansiosos para partir em direção ao Pico do Areeiro, a nossa meta. Em geral, o percurso é feito a partir do Pico do Areeiro, o segundo mais alto da ilha, até o Pico Ruivo, mas resolvemos fazer o caminho contrário, que, de acordo Angelus, é mais fácil.

Começamos por uma vereda sempre a descer, permeada por uma álea de urzes molares. As urzes, que podem atingir até três metros de altura depois de várias centenas de anos, engalfinham-se umas às outras, criando um cenário ao mesmo tempo poético e intimidante. Em pouco tempo, estaríamos novamente entrando no nevoeiro. A trilha também começaria a ficar mais difícil e arriscada. Havia precipícios por todo o lado. A certa altura, perguntei se passaríamos mesmo por aquele caminho estreito e absolutamente sem proteção logo ali adiante. Angelus olhou para mim com uma expressão quase sombria, quase trocista, à guisa de resposta.

À medida que descíamos, o cenário tornava-se mais e mais lôbrego. O sol estava sempre escondido por trás do nevoeiro. A vegetação mudava significativamente. É na Madeira onde se encontra a maior área de Laurissilva do mundo, com cerca de 15.000 hectares, considerada como Patrimônio Mundial da UNESCO. Entre as variadas espécies exóticas da flora local, uma das mais bonitas talvez seja mesmo a Echium candicans, vulgarmente conhecida como massaroco. As flores lilases dessa planta, que só aparecem no fim da primavera e princípio do verão, são de uma beleza nada trivial. Estávamos já na metade do caminho quando resolvemos comer qualquer coisa. Eram os sanduíches que a Tia Valentina tinha preparado tão gentilmente.

É preciso nesse ponto do relato dizer que Tia Valentina conhecera o Genaro quando em viagem a São Miguel. Ela, que na época morava em Barcelona e trabalhava numa loja de velas decorativas, ficou imediatamente apaixonada pela conversa despropositada, casual e, no entanto, arrebatadora do ítalo-chino-macaense, e assim não houve como escapar: o casamento se deu em menos de cinco meses. Entrementes, Tio Genaro abandonou o doutoramento em Engenharia Florestal, vendeu tudo o que tinha nos Açores e aceitou a proposta de Tia Valentina, que era morar na antiga casa dos pais dela, em São Jorge. Isso tudo quer significar que são, para mim, um dos casais mais felizes que jamais encontrei. Portanto tiveram o maior prazer em nos acolher novamente por mais uma noite, e ficaram ainda mais contentes em poder nos levar até a Achada do Teixeira, o nosso ponto de partida.

Explicados os sanduíches, voltemos agora à escarpada onde havíamos parado para almoçar. «Hoje à noite vamos ao aeroporto buscar a minha Tia Eva e a Sara.» Então eu ia, afinal, conhecê-las. «E depois podíamos fazer qualquer coisa. O que pensa?» Eu achava tudo ótimo. «A Felippa telefonou.» Talvez devêssemos retomar a caminhada? «Quer saber se gostaríamos de ir vê-la cantar amanhã à noite.» Eu achava tudo ótimo, mas talvez devêssemos retomar a caminhada. A bruma estava adiante, esperando o desafio.

Quando chegamos ao pico do Gato, com os seus 1780 metros de altitude, eu já estava cansado, e pedi que parássemos um pouco. Não faltava muito para alcançarmos o Areeiro, onde Pedro nos estaria esperando. Conversamos bastante durante todo o trajeto, e Angelus, muito experiente nesses percursos, teve paciência de me esperar, cuidado para indicar onde eu devia pisar, apreensão com a minha evidente vertigem. Acho que se não tivéssemos tido aquele debate linguístico no restaurante, pouco depois, no Pico do Areeiro, enquanto aguardávamos Pedro, o dia teria tido um remate muito mais simpático. O fato é que Angelus resolveu que não esperaria mais, e saiu andando pela estrada, descendo o Pico como quem quer fugir de uma discussão sem propósito. Obviamente não poderíamos ir muito mais adiante, porque o nevoeiro avançava à medida que descíamos, e isso incorria no perigo de sermos atropelados. Portanto paramos ao pé da estrada até que o Pedro aparecesse.

8.09.2009

O Jardim do Mar

Júlio Cortesão, escritor e historiador português do Século XVII, reuniu, numa pequena obra intitulada Romança da Ilha Encantada, crônicas baseadas em fatos históricos acerca do Arquipélago da Madeira. É nesse livro onde se encontra o relato de como São Brandão, um monge irlandês que viveu no Século VI, desembarcou pela primeira vez na Madeira, juntamente com outros setenta e cinco monges, já naquele mesmo Século VI. A fonte de tal episódio é, nas palavras de Cortesão, o livro autobiográfico Vita Sancti Brandani Abbatis, Navigatio Sancti Brandani, cujo único exemplar se encontrava na Biblioteca Nacional de Daomé, antes do incêndio criminoso de 1679 que destruiu por completo o seu acervo.

De acordo com o relato de Cortesão, São Brandão, idealista e visionário, teria se lançado numa aventura marítima com o propósito de encontrar o paraíso terrestre. Apanhado numa tempestade, fora levado por ventos misteriosos até abordar uma das ilhas do Arquipélago, na qual ficava, enfim, o éden. Lá teria escrito o seu livro de memórias, que, jogado ao mar em uma pequena embarcação aquando de sua morte (sobre a qual se falará mais adiante), fora parar em mãos de um pescador beninês.

Acordei naquela segunda-feira com a música do Lully mais alta do que o habitual. Levei algum tempo até me aprontar. Olhava as caixas no topo da estante como quem busca uma resposta para a morte de São Brandão. O livro de memórias, queimado com a Biblioteca de Daomé, jamais teria sido mencionado em outra obra que não na do historiador português. Angelus apareceu de súbito, perguntando se eu tinha alguma intenção de descer para o pequeno almoço. Tentei disfarçar o embaraço da curiosidade, e disse que já estava descendo.

Naquele dia iríamos dar uma volta pela região costeira sudoeste da Ilha, do Funchal até São Vicente. A primeira parada seria na Ribeira Brava. O entusiasmo de Angelus do sábado aparentemente tinha-se esvanecido. Era provável que a noite do dia anterior pudesse explicar aquela renovada indisposição, mas preferi abster-me de fazer qualquer tipo de comentário. Não nos demoramos na Ribeira Brava. O próximo ponto seria o Pico do Sol, assim chamado por ser a zona da Madeira onde o sol costuma incidir durante o maior número de horas. Há imensos turistas na área costeira. A praia costuma ser bastante apreciada por conta da temperatura da água do mar e da fraca ondulação. A seguir, paramos em Calheta, que é o maior concelho da Ilha.

Possuindo um conjunto de elementos paisagísticos peculiares, nomeadamente a Floresta Laurisilva, o Planalto do Paul da Serra, Rabaçal, e uma vasta extensão de orla marítima, o Concelho de Calheta ocupa uma área total de cerca de 116 km2. Está composto por oito freguesias: Arco da Velha, Calheta, Estreito da Calheta, Jardim do Mar, Paul do Mar, Prazeres, Fajã de Ovelha e Ponta do Pargo. Foi na freguesia de Jardim do Mar onde paramos para uma sessão de fotografias. Angelus sempre busca escombros. Eu regularmente fujo deles. Enquanto Angelus entretinha-se naquele celeiro abandonado, fui ao cemitério. Alguém na vila devia ter morrido há poucos dias, mas o túmulo – um amontoado de terra tão-somente – não revelava quem teria sido. Observei que havia uma certa regularidade naquilo: poucos não deixavam de ser anônimos ali.

Em seguida dirigimo-nos para Prazeres, onde almoçamos num requintado hotel muitíssimo escondido. Lá, Angelus ensaiou uma conversa sobre a Paula, que procurei acompanhar com bastante interesse. Acho que eu talvez estivesse fazendo demasiado esforço para procurar ser solícito, e isso definitivamente não funciona. Acabamos discordando num ponto, que foi encerrado com a conta. Partimos em direção às Achadas da Cruz, passando pela belíssima região de Fajã da Ovelha. Há também nessa freguesia uma rocha equilibrada que, segundo a tradição, se encontra protegida por Santo Amaro para não cair sobre o Paul do Mar. Não sei bem ao certo porque não chegamos a ir ao Paul do Mar. Entretanto, três dias depois, estivemos todos no Paul da Serra, tendo sido esse um dos melhores passeios que fiz na Madeira. Há de se saber porquê.

No meio do caminho, paramos em uma pastelaria para comer um doce típico daquela região, cujo nome esqueci. Tivemos de esperar cerca de dez minutos para que alguém aparecesse no balcão e nos atendesse. Nada de muito especial. O próximo ponto seria mesmo Porto Moniz, a zona mais a Noroeste da ilha, onde tomaríamos banho nas piscinas naturais, formadas a partir de rochas vulcânicas. Antes de lá chegarmos, paramos o carro no meio da estrada, num ponto onde podíamos ter uma belíssima visão da zona balneária de Porto Moniz.

É preciso fazer um parêntese bastante significativo aqui para dizer que a Madeira produz uma banana muitíssimo famosa no continente, por seu sabor bastante delicado e peculiar. É ligeiramente curva, tem casca fina, amarelo-clara, e polpa branca. É extremamente aromática. Não tive, durante os nove dias em que permaneci na ilha, uma única oportunidade de provar a tal famosa banana. Ali, no meio da estrada, enquanto eu pensava em coisas bana(na)is que tal, como quando, enfim, iria provar a tal famosa fruta, Angelus olhava sempre para um ponto incerto, pensando provavelmente em algo muito mais profundo.

Descemos, enfim, e descobri uma região bastante diferente das demais. Percebe-se, logo de pronto, que a freguesia tem sido constantemente modificada em função do turismo, já pela arquitetura irregular. Mas o nosso propósito era mesmo o de tomar banho nas piscinas naturais. Então seguimos para o complexo balneário, que, apesar da hora relativamente avançada, ainda estava bem cheio. Todavia, valeu mesmo a pena visitá-lo. O mar estava agradável, embora não tenhamos passado muito tempo lá dentro. Como já estivesse ficando tarde, resolvemos seguir para São Vicente, onde paramos brevemente para um café, ou o que quer que se assemelhe a isso. A pequena povoação de São Vicente, ao norte da Madeira, é bastante simpática e agradável. Um passeio que merece ser feito mais demoradamente.

Entretanto a hora ia avançada, de sorte que resolvemos pegar a estrada de volta para o Funchal. Uma viagem que durou cerca de quarenta minutos, feitos em absoluto silêncio. Uma ou outra vez eu olhava para a estrada, mas os meus pensamentos ora estavam na primeira noite, aquela primeira noite no Funchal, ora nas caixas amontoadas no topo da estante do quarto em que eu dormia, ora na conversa que tivemos eu e o Angelus no hotel em Prazeres, ora na história de São Brandão, ora nas flores do Jardim do Mar. Terá sido Públio Siro quem propôs que ninguém pode fugir ao amor e à morte?

8.08.2009

A Igreja de São Jorge

Quando acordei, metade do domingo já se tinha ido, e isso definitivamente me aborreceu. Ouvi um ruído distante de vozes, como numa festa que se organiza. No terraço, estavam todos reunidos, com música, mesa posta, alguma bebida e os pedaços de carne dispostos num prato para a célebre espetada madeirense. O que torna a espetada madeirense peculiar é mesmo o espeto: um pau de louro, devidamente cortado, que serve para perfumar e dar gosto à carne. Temperada unicamente com sal grosso, a carne é grelhada em fogueira sobre um toro grande em brasa. Tradicionalmente, a espetada é para ser comida em pé, ao redor da fogueira, sem garfo nem faca. Acompanha o não menos conhecido bolo de caco, também chamado em algumas zonas da ilha bolo de pedra: um tipo de pão bastante simples cozido em chapa de pedra escaldante. Pedro foi chamado para preparar a espetada, por sua fama de sempre saber o ponto certo em que a carne deve ser retirada da fogueira. Tio Genaro parecia muito contente. Tia Valentina corria de um canto a outro, o avental sempre entre as mãos: por que não comíamos nada? Que não olhassem o Sebastião, que ele tinha lá umas manias. Que comessem, por favor.

Depois do almoço, organizaram-se para um passeio. Como eu estivesse bastante cansado, decidi ficar. Todos acharam estranho que eu, o turista, não quisesse ir ver as redondezas, mas não procurei dar mais justificativas. Na verdade, o que queria mesmo era ir à igreja, desacompanhado. Pouco depois de terem saído, um tanto desconfiados, um quanto ressabiados, fui ao jardim, descansar mais um pouco. Quando resolvi dirigir-me, afinal, à igreja, já passava das cinco da tarde. Ainda assim, é possível ver o Porto Santo, lá adiante.

A Igreja de São Jorge é considerada um dos mais belos templos da Madeira. Situa-se no sítio da Achada Grande e é considerada o melhor exemplo de arquitectura barroca do espaço rural madeirense, patente no estilo rococó dos armários e do mesão. No seu interior sobressai um crucifixo pendurado no pescoço do corpo de Cristo que, com um metro de altura, é considerado uma das mais belas esculturas em madeira da Ilha. Entretanto, não foi por aquela razão estética que eu passei o resto da tarde sentado num daqueles bancos pesados, escutando, lá dentro, em algum lugar esconso da igreja, o ensaio de beatas, um ensaio desafinado, difícil de ir adiante.

Em tempos que já lá vão, um rapaz muito muito jovem, ao entrar na Igreja de São Jorge, cruzou o seu olhar com os olhos de uma jovem muito muito bonita, por quem ficou imediatamente apaixonado. Na semana seguinte, os olhares voltaram a se encontrar na missa dominical. Desta vez o rapaz evidenciou que desejava a jovem rapariga. Como é uma verdade universalmente aceita que um rapariga solteira sem dotes de nenhuma espécie deve estar precisando de um marido, a jovem beata anuiu aos sentimentos do rapaz. Depois do consentimento dos respectivos familiares, ambos passaram a se encontrar com regularidade. Como estivesse profundamente apaixonado, o jovem procurava aproveitar todo o tempo disponível para estar ao lado de sua escolhida, que, por falta de opção, não se incomodava de lhe fazer companhia. Ocorre que, com o passar dos dias, a mãe do rapaz foi-se eximindo de alimentar o filho, porque julgava que este era bem servido em casa da sua amada. Com pensamento similar, a mãe da noiva também não reservava qualquer tipo de refeição para o infeliz que, de dia para dia, ia definhando. Progressivamente o seu desfalecimento aumentava sem ninguém perceber qual a verdadeira razão. Dizem que a cada primavera nasce, em sua campa, uma única camélia.

Antes de voltarmos para o Funchal, ainda passamos muito rapidamente pelo Miradouro do Pico, pelos Miradouro e Achada da Vigia, pelo Miradouro da Boca das Voltas e pelo Miradouro das Cabanas. Já por aquela altura, eu estava mesmo cansado. Todas as coisas estão cheias de cansaço; ninguém o pode exprimir: os olhos não se fartam de ver, nem os ouvidos se enchem de ouvir. O que tem sido, isso é o que há de ser; e o que se tem feito, isso se tornará a fazer. No Funchal, recusei o convite de ir ao Monge. Fui para a cama por volta das dez e meia.

8.07.2009

Rútila Vermelhidão

Wie ein Liegender so steht er; ganz/ hingehalten von dem großen Willen./ Weitentrückt wie Mütter, wenn sie stillen,/ und in sich gebunden wie ein Kranz. A música era bastante alta para que eu pudesse ouvir o que eles estavam conversando na frente. Julguei que estivessem discutindo, mas não pude perceber nada. O carro ia mais rápido do que eu imaginei poder ser capaz naquelas curvas acentuadas, à noite. Paramos num posto de gasolina, a meio do caminho, e aproveitei para ir ao banheiro. Há sempre uma discussão na hora de pagar o combustível; dessa vez eu preferi me ausentar.

Santana, que foi recentemente elevada à categoria de cidade, está situada na costa nordeste da Madeira, entre o Calhau de S. Jorge e a Ponta do Vigário. Disposta na sucessão de montanhas entre a agreste cordilheira central e o Mar do Norte, a cidade possui uma área de 17,8 km2 , e é habitada por cerca de 4.500 pessoas. No primeiro fim-de-semana de agosto, todos os anos, a cidade abriga a famosa Festa do Santíssimo, organizada pela Câmara Municipal, com o apoio de toda a população. Entre folguedos populares e apresentações públicas, é possível nessa ocasião saborear pratos típicos locais, como as lapas grelhadas regadas com manteiga e sumo de limão, e a carne da noite.

Começamos o Angelus e eu por uma espiga de milho cozida. Sebastião não comia nada, nem parecia ter apetite. Sendo vegetariano, pouco parecia lhe agradar ali, ademais. Nem mesmo as massarocas cozidas, para as quais olhava com desdém e fastio. Depois foi a vez das lapas, que são um tipo de molusco gastrópode marinho. Vêm dispostas na mesma assadeira, ainda frigindo de quentes. Acompanham cerveja e um bom cesto de pão. Para colaborar com a visível impaciência de Sebastião, resolvemos pedir a carne da noite, com mais cerveja. Então passamos a circular pelas ruas, parando num ou noutro ponto para mais cerveja. Sebastião ficou todo excitado, deu pulinhos de alegria e bateu palmas quando viu os carrinhos automatizados. Queríamos uma volta? Queríamos, por favor.

Mas não nos restava muito por fazer ali, e havíamos apenas começado. A proposta foi que seguíssemos procurando bares abertos no Concelho. Voltamos então para São Jorge. O carro aceleradíssimo, a música ainda mais alta. Und die Pfeile kommen: jetzt und jetzt/ und als sprängen sie aus seinen Lenden,/ eisern bebend mit den freien Enden./ Doch er lächelt dunkel, unverletzt.

Naquela tarde, tínhamos ido com o Tio Genaro para ver a Pedra do Segredo, uma enorme rocha equilibrada que, segundo acreditam, inclina-se um pouco a cada dia. Quando na vila de São Jorge alguém quer provar coragem desmedida, sobe no topo da Pedra do Segredo. Pouco abaixo, há um precipício estarrecedor, e o mar. Dali seguimos novamente para a Praia do Calhau de S. Jorge. Dessa vez, como o mar estivesse muito frio, somente Angelus teve coragem de tomar banho, primeiro no mar, depois na água doce que atrai muitas famílias no verão.

Paramos num bar sonolento, e pedimos cada um uma vodka com Brisa Ananás. E antes que entrássemos no clima do bar, voltamos para o carro. Angelus então teve a idéia de ir à Foz da Ribeira do Faial, uma enseada que fica na Freguesia do Faial, também em Santana. A noite estava bastante agradável. Há ali um bar com gente o tempo inteiro, e música e dança para quem se arrisque. A visão da enseada à noite é mesmo espetacular. Conta-se que uma aurora boreal, ocorrida a 20 de Janeiro de 1957, deixou estupefactos os que ali na enseada se encontravam. Uma semi-elipse de rútila vermelhidão fixou-se, repentinamente, no céu. Como que impelida pelo vento, a mancha de tons púrpura deslocou-se lentamente na direção Norte Leste, durante meia hora... Muito pouco aconteceu naquela noite.

Voltamos para o carro cantando a última música que tínhamos ouvido no bar; já era quase dia. Estávamos mesmo bastante cansados. A viagem de volta foi feita em silêncio absoluto, exceto pela música, alta. Einmal nur wird seine Trauer groß,/ und die Augen liegen schmerzlich bloß,/ bis sie etwas leugnen, wie Geringes,/ und als liessen sie verächtlich los/ die Vernichter eines schönen Dinges. Quando chegamos, o sol já enchia o corredor dos quartos com a luz vermelha da porta daquela sala sempre fechada. Eu fui dormir lembrando os versos de Rainer Maria Rilke: Num só passo a tristeza sobrevém/ e em seus olhos desnudos se detém,/ até que a neguem, como bagatela,/ e como se poupassem com desdém/ os destrutores de uma coisa bela.