Hoje é a data de lançamento oficial do novo álbum dos Meshuggah (maluquice em ídiche, que, como se pode ver por estas semelhanças, é uma língua muito parecida com a nossa), o que para muitos constitui particular motivo de celebração e regozijo. Até pensei ir ao Pingo Doce comprar uma garrafa de Moet & Chandon, e ainda sou bem capaz de fazê-lo. Talvez possa abri-la efusivamente no próximo dia 11, que é a data oficial de lançamento do álbum nos Estados Unidos.
Pois é, pá, não é todos os anos que os rapazes lançam um álbum, nem sequer de dois em dois anos, e muito menos uma coisa deste calibre. Mas afinal de contas, quem é que não é preguiçoso?
Em 2005 haviam-nos dado a sofrível Malha33, que no fundo era a progressão lógica do [ai], que como sabem em inglês tanto pode significar 'olho' como 'eu'. Digo progressão lógica porque de facto não posso dizer muito mais, e não fomos poucos os que ficaram com aquela sensação que já deu um célebre refrão do Sérgio Godinho.
A Malha33 terá, enfim, pelo menos o mérito de ter um grande título, eventualmente o melhor de que os Meshuggah já se lembraram (ah, mas não esqueçamos a Fútil Máquina de Fazer o Pão como versão acústica desse outro hino do metal contemporâneo que dá pelo nome de Fútil Máquina de Fazer Bebés - provavelmente já em 1997 os Meshuggah previam a proliferação destas máquinas de panificação domésticas). Embora aquilo que aqui me traga hoje seja o obZeno, eu não resisto a dizer algumas palavrinhas mais sobre a designação Malha33. É difícil falar disto em português, visto que obviamente se trata de uma brincadeira linguística em torno da expressão americana 'catch 22', expressão que ouvi pela primeira vez da boca do Chuck Shuldiner, esse outro grande guitarrista do metal moderno, que Deus o tenha. Mas a interpretação que eu na altura fiz do título Malha33 dos Meshuggah prendia-se obviamente, por um lado, com a fixação que o Sr. Thordendal (discípulo de Thor, reparem) tem com o número 33 e com o gosto que o grupo em geral alimenta por levar as coisas um passo adiante, e por outro lado com a complicada relação que eles tinham com a editora Nuclear Blast, e que também poderá ter estado na origem de outros títulos desse álbum como o erudito mas igualmente bonito Personae Non Gratae. O título Malha33 encerra uma concepção profunda e que tem tudo a ver com a forma de ser e de estar dos Meshuggah. Assim, se a expressão 'catch22' poderia eventualmente ser traduzida pelo nosso 'preso por ter cão e por não ter', já 'catch33' não terá tradução possível a não ser a pouco mais que aleatória Malha33. E o engraçado é que os Meshuggah, não obstante os títulos, decidiram mesmo renovar contrato pela Nuclear Blast.
E é então com essa chancela que nos chega este obZeno. Como disseram alguns, esta história de brincar com a capitalização dos títulos já os Korn (massaroKa) a têm há muito tempo, e não é para todos os gostos. Mas eu devo dizer que não tenho assim tanto ódio ao chamado metal nouvo, e a verdade é que uma das minhas canções preferidas dos Meshuggah é mesmo a Espasmo, ali com a voz laringalizada do Tomás Haake a marcar muitos pontos sobre a malha minimalista (e que, convenhamos, é massaroKinha chapada) do Sr. Thordendal. Sim, e também não vamos esquecer a grande grande remistura que este fez dos Rammstein, da música que se chama Benzina.
Mas enfim, estaríamos muito longe da verdade se disséssemos que este obZeno é um opúsculo de metal nouvo. Será sem sombra de dúvida novo metal, e conceptualmente estará anos-luz à frente de qualquer obra parida nos últimos tempos sob os auspícios do género. E devo dizer a todos os cépticos que, do ponto de vista técnico (ou teórico, se quiserem, do ponto de vista da teoria musical), será muito fácil provar esta afirmação.
Mas não estamos aqui para embarcar em desinteressantes considerandos teóricos, e a verdade é que até agora ainda ninguém me mandou uma transcrição do solo da Concatenação, não obstante eu oferecer mais de cento e cinquenta euros em troca, pelo que o melhor será falar do valor desta nova obra do Frederico e amigos em termos artísticos. Alguns hão-de espantar-se com as cinco estrelas, hão-de achar demasiado, e eu dou a mão à palmatória àqueles poucos que eventualmente terão o privilégio de conhecer os rapazes da maluquice melhor do eu. Para mim, este é de facto o melhor álbum que eles fizeram desde o Destrói Apaga Melhora.
Não é um salto criativo tão grande como o que deram nesse álbum (que aliás, na prática, havia sido dado do Colapso das Contradições para o Nenhum, a grande semente concentradora do modelo de trashalhada contemporânea dos Meshuggah), e na verdade funciona mais, como os próprios já têm vindo a dizer, como um apanhado dos vários momentos e estilos que eles têm vindo a cultivar desde 1995.
As referências são óbvias: a Combustão é uma composição de thrashalhada linear, com um crescimento guitarrístico superfertilizado, à moda daquelas faixas mais curtas do Destrói Apaga Melhora (e reparem, tem também algumas semelhanças estruturais com a Nem Me Digas Nada, uma canção que sempre apreciei das Faixas Raras). Uma descarga de batimentos-relâmpago (enfim, condesçam, foi a melhor tradução que arranjei para 'blast beat') à moda da Festa do Horror também não teria ficado mal nesta música, mas assim acho que está muito bem. Creio que a única vez que usaram batimentos-relâmpago numa música foi quando fizeram a homenagem aos trinta anos do Frederico, e esses nem saíram das mãos do Tomás.
2. O Vermelho Eléctrico traz à memória a Escamação e a Exótica Maquinaria de Tortura, com um crescimento baseado numa frase de timbalões.
3. A Sangra, enfim, já toda a gente sabe o que é, e nem vale a pena gastarmos tempo em conversas sobre isso. É claramente uma música em relação à qual as palavras não podem expressar muito. Atenção, quem me mandar uma transcrição do solo que o Frederico faz nesta música, entre os índices 4:45 e 5:53, poderá também receber um exemplar original do Sol Negro por Dentro. Mas para tornar a tarefa ainda mais difícil (porque na verdade o que eu quero ver em pauta é o solo da Concatenação), neste caso terão de fazer a transcrição indicando em linhas paralelas o alinhamento do solo com a base rítmica da música, a tal imparável frase de fusas-semicolcheia-fusas. Ah, só preciso que indiquem os batimentos do pedal duplo, não se cansem com as notas dos pratos-de-choque e da tarola. O primeiro ou primeira a enviar-me a transcrição disto ou do solo da Concatenação para o meu correio eléctrico receberá, então, um exemplar original do Sol Negro por Dentro versão três ponto trinta e três, que já todos sabem quanto vale.
4. A Letárgica, como o próprio nome indica, é uma piscadela de olhos aos momentos mais meditativos do Nada: é a Obsidiana chapadinha em todo o seu esplendor negro.
5. O obZeno é como se fosse uma reformatação das Palhinhas Tiradas ao Calhas, mas sem aquela inesquecível catarse final que ainda hoje é capaz de tirar o sono a alguns, e portanto sem grandes elementos que o redimam.
6. Esta Serpente Cheia de Peçonha é uma espécie de mistura entre as cenas que fizeram no Nada e depois na Malha33, mas com um solo mais à moda da Esfera do Caos. Nada de especial.
7. A Óptica da Glande Pineal é um trabalho interessante pelo facto de explorar aqueles rifes industriais que o Frederico tanto gostava de fazer na Esfera do Caos. Tem também um solo curioso, exercido sobre uma base parecida com aquelas bases loucamente sincopadas (oh que saudades!) que eles faziam no [ai].
8. A Pravus é, bem se vê, uma depravação à maneira de algumas cenas que já nos tinham feito na Esfera do Caos, pensando por exemplo na Bocarra que Lambe o que Vós Haveis Sangrado... com o bónus de ter umas frenéticas cordas sujinhas só para enganar os fiéis.
9. E a Dançarinos Dançando sobre um Sistema Discordante já toda a gente conhece, é uma loucura de música que vai buscar as melhores cordas limpas do [ai] e da Malha33 e impinge sobre elas uma descarga total. A resolução estrutural provavelmente não será a melhor (oh, e como poderiam eles conseguir ultrapassar a Sangra?), mas o solo e o dedilhado final à moda do metal negro redimem a cena por completo. Contendo ainda algumas frases a belíssima voz de serpente recitante do Tomás, poder-se-ia dizer que esta música é na verdade uma espécie de compilação dentro da compilação que o obZeno constitui só por si.
De facto a única coisa de que continuo a ter saudades é mesmo de uma malhas supersincopadas como as que ouvimos no [ai] índices 3:35-4:51 e 12:01-14:07. Mas se calhar já estão reservadas para os próximos álbuns. Aí o trabalho da secção rítmica é tão louco tão louco que às vezes até dá vontade de chorar... e fará chorar certamente o aprendiz de baterista que tentar reproduzir ou sequer transcrever a pedalada do Tomás no primeiro dos segmentos.
Lia um dia destes numa destas críticas da internet que os Meshuggah são uma daquelas bandas que ou se ama ou se odeia. Pois eu só tenho pena, agora que anda tanta gente por aí a amar a massaroKa e a Marilina Manson, daqueles que não sentem nada ao ouvir estas colossais paredes de guitarra eléctrica, da mesma maneira que eu antes ouvia uma ópera como a Traviata e não sentia nada.
3.07.2008
Meshuggah, obZeno, 5*
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