10.31.2009

Joana Isabel

Hoje eu acordei pensando na Joana Isabel. Não vá querer me cobrar o que eu tinha prometido, que estou com sono e mal-humorado. Aliás, nem dormi direito, e acho que foi o café ou a Joana Isabel, ou ambas as coisas, não sei. Ainda é quase meio-dia e já estou ouvindo aquela ópera alemã cujo nome nunca recordo. Mas eu pus pra tocar aqui em casa quando você esteve para o jantar, lembra? Pois é, aquela ópera... Assim é melhor, que não entendo muita coisa e detesto música que me ponha deprimido. Maria de Fátima das Portas do Largo do Sol, diga-me o que fazer para esquecer a Joana Isabel? Eu já não leio, a tv me enfastia, não quero ir ao cinema pela mesmíssima razão, tenho a bicicleta avariada no quarto dos fundos, o ginásio com pagamento atrasado e, para completar, a vida vazia sem a Joana Isabel. Se calhar, é melhor mesmo que eu dê um jeito nas roupas por lavar, senão amanhã não vou poder ir às aulas, e amanhã tem a aula do Padre Inaldo, naquela hora pouco ortodoxa, em que estamos apenas nós três e o Padre Inaldo. Até hoje eu me pergunto porque ninguém mais se matriculou no curso de latim. E ficamos nós três, a santíssima trindade, com o Padre Inaldo a rezar a missa. E a Joana Isabel com aquela cara de espírito santo, com a mesma expressão de sempre, aquele seu ar immutabilis. Tão virtuosa, enquanto você ri de mim e eu tento esconder a minha aflição de quem rouba impressos da Biblioteca Central e não sabe o que fazer para evitar as traduções de frases afirmativas da Enéida: varium et mutabile semper femina. Mas um dia acabo com essa vida de frases afirmativas, Maria de Fátima, e pergunto, da janela mesmo da sala de aula, onde lá está o anúncio de vermute com a foto dela sempre a mesma que jamais vai poder mudar: ó Joana Isabel, está interessada em conhecer alguém que escreve mensagens como essa para ninguém como se fosse a sério?

10.30.2009

Silence

Ouvir!

10.29.2009

Música e Silêncio

Ouvir!Gosto muito dos grupos de rock que usam as pausas de uma forma dinâmica. Existem algumas formas de música popular que também recorrem abundantemente às pausas, mas dessa área não estou muito a par.

Nas coisas que ouço, eu normalmente dou muita importância à técnica e ao experimentalismo e à forma como os músicos conjugam essas coisas. Disso resulta que a maior parte das pessoas acha que a música que eu ouço é pouco estimulante (porque pouco acessível) e aborrecida. Aliás, eu próprio às vezes ponho-me a ouvir alguns temas altamente comerciais, para quebrar um pouco essa tendência. No entanto, não é essa a música que me faz pensar.

Um dos meus grupos absolutamente favoritos chama-se Silo, e é constituído por três dinamarqueses. Eu já escrevi vários textos sobre eles, mas ainda não sei explicar exactamente porque é que gosto tanto da sua música. Se calhar é porque é uma música muito fria e hermética e que ao mesmo tempo funciona de uma forma orgânica e sedutora.

Todavia, para a maior parte das pessoas que conheço, eles têm um estilo difícil e monótono. Não é fácil encontrar pontos de interesse nos seus ritmos desconexos e na sua voz sussurrante. Há até amigos meus a quem isto provoca dores de cabeça. Eu, pelo contrário, sinto grande prazer quando ouço as suas músicas.

A K2 é uma faixa que evoca em mim uma sensação de grande conforto e descontracção. Isso deve-se a vários factores. Para já, tem a ver com a forma como o som está distribuído, que dá a ideia de uma grande profundidade de campo. O som de fundo, que é como se fosse a respiração de uma máquina (a fazer as vezes de baixo eléctrico), tem também um efeito altamente hipnótico, efeito ainda mais saliente a partir do índice 4:26, altura em que deixa de ser uma vibração e passa a ser apenas uma presença, uma camada suplementar na textura da música. Outro elemento muito importante é a serenidade da voz e a espuma electrónica que parece rodeá-la, quando os restantes instrumentos a deixam sozinha. No seu aparente minimalismo, a K2 encerra em si uma subtileza e uma originalidade de dimensões desconcertantes.

10.28.2009

Sinceridade e Silêncio

Sinceridade é uma palavra muito interessante. Eu estive a ler algumas coisas sobre a sua etimologia, e encontrei duas opiniões divergentes: alguns acham que sincerus resulta da concatenação do radical sin- (que está presente na palavra singular, por exemplo) com o radical cer- (que está relacionado com o verbo crescer), significando 'que cresceu de uma só proveniência, puro'; outros acham que resulta da lexicalização do sintagma sine cera, aplicando-se originalmente, no tempo do império romano, ao mármore cujas imperfeições não tinham sido tapadas com cera, isto é, ao mármore genuíno. É claro que esta segunda é muito mais engraçada, principalmente se pensarmos na especialização de significado entretanto havida. Nesse aspecto, a palavra sinceridade tem uma relação muito interessante com polidez. Uma pessoa pode tentar polir o mármore até que ele fique sem imperfeições, dessa forma evitando recorrer à cera.

Agora deixando as metáforas de lado (é curioso reparar como o significado supostamente original das palavras tem agora de ser considerado uma metáfora), eu acho que não sou uma pessoa muito sincera. Pois é, porque o silêncio também serve para cobrir aquilo que não pretendemos dizer. Não sou muito sincero nem tenho a intenção de sê-lo, porque há sempre coisas que eu quero guardar para mim mesmo. Há coisas que eu quero guardar para pensar depois, coisas a que eu não quero ter de responder. Nesse sentido, eu sinto-me um pouco infantil, e é uma coisa que me agrada. Eu sei que é uma coisa que pode levar a que as pessoas não gostem de mim, mas normalmente não faço nenhum esforço para mudá-lo. Seja como for, não o faço por desprezo, e também tento evitar esse pensamento quando os outros o fazem a mim.

Por outro lado, é bom que se diga que ninguém diz tudo o que lhe vem à cabeça. Nesse aspecto, penso que o valor do silêncio é universal. É como na Teoria da Optimidade. Nós temos o Gen e depois o Eval. O som desta segunda palavra também pode ter umas certas conotações diabólicas, e nem sequer é preciso pôr as letras ao contrário. Dependendo da qualidade dos filtros, podemos ter pessoas mais ou menos sinceras, mais ou menos honestas. O silêncio é também um filtro, e é provavelmente o mais básico e o mais forte de todos. Se uma pessoa recorrer muitas vezes ao silêncio, provavelmente não é sincera. No entanto, se não recorrer quase nunca ao silêncio, também não é garantido que seja uma pessoa sincera.

10.27.2009

Não Sou Eu

Querida Maria de Fátima,

Quando abri a janela, olhei estupefacto para as coisas, sob a manhã cheia de sol, como se elas estivessem loucas. Todos os dias tenho acordado com os gritos das crianças daqui ao lado. É uma escola, uma creche, nunca percebi esse pátio de piso vermelho. O curioso é que o número de crianças que vejo através da cortina diáfana não justifica o barulho que sempre me desperta, como um desses relógios precisos e frios. Não há nada mais aborrecido do que ser acordado assim, sem trégua.

Eu tenho essa idéia desde sempre. Lembro-me particularmente do cachorro que me acordava todos os dias, quando eu morava com a Maria. Eu saía da cama tão ensadecido que prometia jogar veneno. Depois foi um passarinho. Quis comprar um bodoque. Acontece que no decorrer do dia, esquecia-me quão desagradável tinha sido o despertar, e todos os planos homicidas eram desfeitos. Até a manhã seguinte.

Ora, quando se tem, afinal, uma Smith&Wesson modelo 15, calibre .38, de ação dupla, com capacidade de 6 tiros e miras ajustáveis, a coisa muda um bocadinho de figura. O James apresentou-me o Carlos, e a arma saiu por um preço bastante acessível. Não me parece ser nova, mas se estamos lidando com a ilegalidade, também não tenho autorização para porte de arma.

Há aqui perto da Freguesia de Nossa Senhora de Fátima um desses lugares que só se conhece através de gente como o Carlos. Os caras te ensinam o que é preciso saber, tipo como segurar a arma: é uma extensão de teu braço, como num filme. O importante é que lá tem aqueles corredores escuros em que podemos praticar tiro ao alvo. Uma hora por sessão é suficiente. Pago, escondo a arma, e saio com a sensação de inevitabilidade.

O sangue que sai dali pode ser de que cor? Em que quantidade? A bala entra e perfura o que exatamente? Queima? Deixa a pele chamuscada? Na cabeça, ouvi dizer, ainda tem o cérebro que se espalha em pequenos pedaços vermelho-acizentados por toda a parte. E depois? Se é na cabeça, quanto tempo até a morte? Tempo suficiente para falar? Onde produz a menor sujeira sendo, ao mesmo tempo, eficaz, rápido? Eles respondem com o fastio de quem embrulha pães. Sabem tudo, não olham pra tua cara, porque têm a certeza do que vais fazer. Mas já habituados, não olham.

Existem coisas que precisam ficar adormecidas, e aquelas criancinhas ali fora gritam pra caralho. A Smith&Wesson fica na cabeceira, num armário muito pequeno, quase escondido, ao lado da cama. Hoje, quando acordei e olhei através da cortina, tive a certeza de que não sou eu. As criancinhas ficam para depois. Primeiro vai ser o Tiago.

Beijos.

Lisboa, 27 de Outubro de 2002, 18:33h

10.26.2009

Some More on Silence

Também na adolescência eu gostava de ler alguns autores muito misantrópicos. As linhas que se seguem são de um italiano chamado Roberto Mamarella:

Silence is my PERFECT Partner
I Feel IT, in my daily Actions
I Remove all the Past ILLUSIONS
that GRIP away from my mouth

My Carnal Shape is COMPLETE and Strong
and this is the PURE Human form
the Sounds of Words and Thoughts
are NOTHING but the Uncertainty
of ALL that is supposed to be Known

The LIMBO is the Dry Season I BEG for
it Bleeds out my dreamy Soul, ALONE and lifeless
Sands cover the last CARESS of Life
no PAIN is concerned to help the REBORN through my shroud

Hanging in the BALANCE of a perfect Mind
and in the Truth of a NON-SENSE RELIGION
once I fed my HEAD now I BETRAY my Body
it's all I have, the LIES carry an entire Existence

The SEPARATION from every New Day
engulfs the Misery of me that still Kills
my SPIRITUAL MOVEMENTS
and the SUPREME desire to be one with the Infinity
have Swallowed not only my PRIDE to live
but the Indifference will rule in my World
THE BLIND MASS CAN'T GET ME

Quando tinha dezasseis anos, eu gostava tanto disto que até cheguei a fazer algumas traduções. É claro que agora já não têm a mesma graça.

10.25.2009

Argumentum e Silentio

Seria muito bonito se o meu silêncio correspondesse a uma necessidade interna de silêncio, mas não é isso que acontece. As pessoas (pelo menos na sociedade portuguesa) não reagem muito bem ao silêncio, e isso é algo que vamos aprendendo com o crescimento. Entre outras coisas, o silêncio é encarado como um sinal de imaturidade. Na verdade, não pode haver argumentum e silentio, a não ser em casos muito especiais. O mais frequente é o silêncio acontecer pelas piores razões (quando não sabemos a resposta a uma pergunta e não queremos mostrar a nossa ignorância, por exemplo). Bom, é claro que essa é também uma forma comunicativa de usar o silêncio, mas eu gostaria mais que o usássemos em outros contextos. É pena que o silêncio esteja mais conotado com a falta de interesse e com o embaraço do que com a cumplicidade, por exemplo. Mesmo quando implica cumplicidade, o silêncio é encarado de um modo negativo, e a epítome desse sentimento é o provérbio (muito popular em Portugal, não sei se assim tão popular no Brasil) "quem cala consente".

Quanto ao facto de eu às vezes parecer cansado ou pouco cooperativo, isso deve-se provavelmente a o meu output social ser inconstante e desajeitado (é a melhor tradução que me ocorre para o tal adjectivo awkward). É também por isso que eu gosto de escrever, porque aqui posso ser constante e elaborado, seguindo um fio de pensamento mais livre e transparente. Feliz ou infelizmente, parece que estas características estão associadas ao meu nome.

10.24.2009

Algo Assim, Homem

Querido Marcos,

Agora vou falar do Andrea, um outro: o Andrea Zanetti. É verdade que conheço dois, mas a mensagem é sobre o mais novo deles.

Como deves saber, o nome Andrea deriva do grego «aner», homem. Ademais, como é amplamente divulgado, foi André o discípulo que, de acordo com a lenda, teria morrido numa cruz em forma de X. Detalhes que podem não revelar absolutamente nada, mas que também não precisam ser necessariamente descartados como irrelevantes. O Andrea que conheço tem o ar de querer ser algo assim, homem. Mas num sentido quase metafísico: o homem que olha para além do abismo, como se de fato estivesse olhando para si próprio, a velha história...

É possível que seja essa a razão para manter-se quase sempre recuado, aquela postura quase sempre pétrea. O Andrea vive num mundo que criou para si, em que ele é o homem e nada além disso poderia interessá-lo. Como é tarefa particularmente difícil manter uma postura assim grandiosa, ele prefere então não dizer absolutamente nada acerca do que pensa. Outro dia, por exemplo, a Adelina quis saber o que ele tinha achado do filme que tínhamos acabado de ver, e o Andrea retrucou com a mesma pergunta. É assim a típica reação do Andrea. Eu vejo e me divirto, é verdade, porque agora o conheço bem. E é bem possível que seja mesmo esse o motivo de seu ódio mais recente.

O que importa mesmo ao Andrea é estar numa posição em que a sua fragilidade não seja exposta. Assim, por exemplo, usa a mais trivial das estratégias que é a de se envolver com mulheres pouco inteligentes. Ou, ao menos, mulheres que não tenham respostas para as perguntas que ele mesmo não sabe responder. Não é difícil concluir, então, que o Andrea calcula cautelosamente cada um de seus passos; evita os passos em falso - ou o que quer que para ele isso queira significar.

Orgulho, egocentrismo, maldade, frieza: é por trás de qualidades tão infantis que o Andrea procura esconder a mais profunda beleza. Teima em permanecer numa adolescência disparatada com igual fervor com que insiste em tocar o mesmo tipo de música que ouvia aos quatorze anos. Autodenomina-se misantropo e profere, sempre que tem oportunidade, ser incapaz de beijar alguém aos lábios. Ora, os misantropos não oferecem oportunidade ao diálogo e o diálogo, afinal, é bastante perigoso para quem precisa ocultar-se.

Tudo muito interessante se o limite entre o que quer transparecer e o que de fato é não fosse assim tão tênue. O Andreas vê-se então no mais desagradável dilema, e por conta disso é que não consegue escapar ao patético.

É um jogo muito perigoso esse o que o Andreas costuma jogar, porque envolve os que o rodeiam. Muito ambicioso, ele traça o futuro com o interesse com que quer manter a imagem que julga a mais apropriada. Concentra-se no trabalho, julgando-o muito mais [politicamente] interessante que os amigos, uma festa, uma namorada. O que há para se saber acerca de quem quer que seja? Quem para que precisa de ajuda? Isso, é verdade, pouco interessa ao Andreas como Andreas quer.

Quando estava para ser crucificado por pregar o evangelho, o apóstolo André recusou-se a morrer da mesma forma que o seu líder espiritual. Prontamente ataram-no numa cruz em forma de X. Desde então, a cruz em forma de X passou a ser símbolo da humildade e do sacrifício. O Andrea, está claro, não vai poder chegar aí.

Um beijo.

Lisboa, 24 de Outubro de 2002, 9:01h

10.23.2009

Ricardo Reis: As Rosas

From: Angelus
Subject: Ricardo Reis: As Rosas
Date: 23 October 2002 19:17:16 GMT-03:00
To: Joana Serrado; Saavedra

10.22.2009

Ian Hamilton

From: Angelus
Subject: Ian Hamilton
Date: 12 May 2002 20:55:25 GMT-03:00
To: Saavedra

Curfew

It's midnight
And our silent house is listening
To the last sounds of people going home.
We lie beside our curtained window
Wondering
What makes them do it.

Poderás encontrar este e outros poemas num livro que deixei em cima da tua secretária e que te ofereço. Foi um livro que me marcou muito na adolescência.

Um abraço,

10.21.2009

Ringing Tune

Ouvir!This is supposed to be the bass-snare answer to Eva's telephone ringing tune. There are some minor changes, though, which I introduced in order to make it odd time (and a bit more colourful because of that).

10-2002

10.20.2009

Ending

Ouvir!This is intended as an ending for a Meshuggah song. As you can hear, it is heavily inspired by the final part of Straws Pulled at Random, specially because of the bass drum cadence, and it features some of the group's most prominent trademarks: stable-then-broken crash cymbal phrasing, displaced bass-snare note groupings and an exquisite taste for bar resolve. Maybe I'll send it over to them, to see what they think about it.

10-2002

10.19.2009

Ser Feliz É Para Se Conseguir O Quê?

Caríssimo Manuel,

Pois é exatamente assim. Para início de conversa, agora estou morto. Porque se estivesse, dava na mesma. O frio, lá fora, o frio: um frio que nem um café di roma, nada. Mas há de ser uma dessas ondas que vêm do norte. Os eskimós têm tantos nomes para coisas que desconhecemos. Como deve ser morar num igloo, Manuel?

[Eu nunca pensei que a Ella Fitzgerald tivesse alguma vez gravado You´ve Got A Friend. É ela quem está cantando agora, a propósito de nada. Pelo menos tenho a música, e a Ella Fitzgerald].

Não queira saber porque não fui à tal academia travar conversa com quem não me inspira absolutamente nada. Eu não/ A pena não me interessa. É por isso que desci e fui comprar um pacote de comida congelada e um vinho, um bom vinho de mesa. Não quero, não vou, não quero. Tem uma música do Cartola assim, mais ou menos assim, eu acho.

Como eu disse no início, agora estou morto. É favor não mandar flores, porque elas só me interessariam antes disso. Nunca recebi flores e não vai ser a propósito disso que eu vá querer/ O hiato pode ter sugerido mesmo alguma coisa, mas de nada serviu, a não se para constatar que o dia pode/ o dia arrasta-se quando queremos apenas que chegue o sábado, por uma razão que desconheço.

Lembro-me bem do episódio em sala de aula, quando a professora terminou a história com o implacável foram felizes para sempre. E depois, o que é que se consegue quando se fica feliz? A professora, é claro, não queria acreditar: não ouvi muito bem... O que vem depois? Depois que se é feliz? O que acontece? Que idéia! A professora ajeitava o cabelo, pensava numa saída. Repita a pergunta com outras palavras. Eu, obstinado: ser feliz é para se conseguir o quê? A professora então ficou vermelha. Nunca percebi muito bem porque enrubescia assim, sem propósito. Na hora do recreio, chamou-me à parte. Miguel, o que quer ser quando for grande? Não sei, disse-lhe. E ela corou mais uma vez. Eu tive uma idéia. Escreva num pedaço de papel a pergunta que me fez hoje e guarde-o por muito tempo. Quando for grande, abra, leia. Quem sabe? Talvez um dia você mesmo possa respondê-la... Perdeu o ar sério, corou. Ou... Ou ou talvez isso não tenha importância e pelo menos você se divertirá com... Não, interrompi, incrédulo de estar tendo aquela conversa. Não o quê? A professora parecia assustada. Não gosto de me divertir. Ela então ficou rosada mais uma vez e mandou-me de volta ao folguedo. Quando eu já estava a meio do caminho, chamou-me de novo e, dessa vez corada até o pescoço, os olhos baixos, remexendo papéis sobre a mesa: você não achou... engraçado eu mandar você escrever a pergunta para guardar? Não, respondi e voltei ao parque.

Um abraço.

Lisboa, 23 de Outubro de 2002, 11:45h

10.18.2009

Um Forte Sabor de Anonas Frescas

Caro José Lourenço,

A Síndrome de Aabye-Haufniensis é um possível distúrbio do cérebro, que, de acordo com a literatura, causaria o deterioramento progressivo das células, resultando na irreversível degeneração dos neurônios. Tem descrição relativamente recente, e é ainda alvo de acirrado debate e muita controvérsia. Dois médicos dinamarqueses - Dr. F.C. Sibbern e Dr. Poul Martin Møller -, trabalhando de forma independente, fizeram as primeiras descrições do mal em 1979. Entretanto, somente dez anos depois é que puderam apresentar à comunidade científica dados suficientemente plausíveis para validar o achado de 1979. O artigo "Aabye-Haufniensis Syndrome: further evidence of autosomal recessive inheritance", publicado no Danish Journal of Medical Sciences (30:234-236), causou furor entre os especialistas em genética disfuncional, gerando uma série de respostas em formas de artigos publicados nos mais renomados jornais acadêmicos, entre os quais o Clinical Genetics, o Schweiz med Wschr e o Klin-Monatsbl-Augenheilkd.

Uma entre as várias controvérsias consiste na validade dos casos estudados. Segundo os geneticistas K. Van den Abeele e M. Craen, os procedimentos utilizados por Sibbern e Martin Møller para a descrição da síndrome são questionáveis, por razões de ordem metodológica (os detalhes, aqui irrelevantes, podem ser consultados no jornal Medizinische Klinik 92: 175-178). Dr. Weichenhain, por outro lado, e para exemplificar a multiplicidade das críticas geradas a partir dos estudos de Sibbern e Martin Møller, sugere que muitas das características da síndome listadas pelos médicos dinamarqueses são, na verdade, sintomas de distúrbios psíquicos já amplamente documentados. O fato dos sintomas serem acompanhados por uma degeneração de células não querem significar absolutamente outra coisa senão uma possível coincidência, sugere Dr. Weichenhain. O grande problema nos estudos até agora publicados no que concerne a Síndrome de Aabye-Haufniensis é sobretudo o número de elementos estudados. Desde os primeiros casos até os dias de hoje, somente 17 pessoas teriam desenvolvido os sintomas que Sibbern e Martin Møller relacionam à Síndrome de Aabye-Haufniensis. Não bastasse isso, todos os indivíduos considerados tiveram mortes súbitas e absolutamente inesperadas, que em nada se relacionaram com a possível doença que lhes acometia. Em outras palavras, nenhum dos pacientes estudados por Sibbern e Martin Møller chegou a desenvolver plenamente os sintomas da Síndrome de Aabye-Haufniensis. Assim, tudo não passaria de especulações.

A Síndrome é descrita como uma doença progressiva, apresentando alterações significativas da memória recente, do aqui agora e, mais tarde, outras alterações, entre as quais destacam-se:

- Incapacidade de raciocinar, de compreender, de fazer juízo das coisas.
- Dificuldade de percepção dos órgãos dos sentidos. Dificuldade motora.
- Agressividade e alterações de personalidade, com distúrbios de conduta.
- Dificuldade em reconhecer os próprios familiares e até a si próprios, quando colocados frente a um espelho.
- Gradual ou súbita diminuição da habilidade de entender e usar a linguagem falada (os pacientes costumam confudir o que pensam com o que de fato chegam a pronunciar).
- Alucinações, auditivas, visuais, tácteis, olfatórias, gustativas, cenestésicas e cinestésica.
- Distorção da realidade factual. É possível que os pacientes passem a encarar a realidade de um modo paralelo ou virtual.
- Subversão de valores morais e éticos vigentes, que, muitas vezes, vem acompanhada do quadro crônico típico da esquizofrenia, geralmente conhecido por «Sofrimento Moral».

O caso-estudo clássico, citado no artigo de 1992 "Klinischer Beitrag zum Aabye-Haufniensis Syndrom", de J. Schrezenmeir, é o da alemã Berta Hochstrasser. Acordou numa manhã de doze de junho julgando estar apaixonada pelo irmão mais novo, embora não quisesse reconhecer a possibilidade de que aquele sempre fora o seu irmão. De início, usava argumentos absolutamente lógicos e subversivos para convencer a quem quer que fosse que a sua paixão nada tinha de condenável. Em pouco menos de dois anos, passou a ter alucinações frequentes, seguidas de delírio, vômito, perda de cosciência e débil locomoção motora. Entre os relatos de alucinações, estava o de que era perseguida por estranha e rútila aparições, acompanhadas quase sempre por um forte sabor de anonas frescas e o doce tilintar de chaves. Em pouco tempo passou a falar por parábolas. Depois usava palavras soltas e aparentemente desconexas. Por fim, era toda reticências. Causava grande impressão o fato de que, em frações de tempo, pudesse ela migrar do mais incômodo sofrimento até as raias da felicidade absoluta. Foi o mesmo irmão de Berta, depois de ter lido uma nota bastante pequena num jornal de circulação local acerca da Síndrome de Aabye-Haufniensis, que resolveu levá-la até o Hospital Universitário de Mühlhausen, onde trabalhava o Dr. J. Schrezenmeir, pioneiro nas investigações desse mal na Alemanha. Antes de fazer os testes genéticos que confirmariam a suspeita do Dr. J. Schrezenmeir, Berta Hochstrasser jogou-se da varanda de seu apartamento, porque estava certa de que podia voar. De fato, voou. Mas esse foi o fim de um estudo que poria termo a toda a controvérsia acerca da sanidade do mundo em que vivem os outros.

Um abraço.

Lisboa, 15 de outubro de 2002, 11:55h

10.17.2009

Mais Uma Estatística de Janela em Noite de Outono

Caro Júlio,

Há provavelmente 372 janelas acesas; é possível ver daqui cada uma delas. Se computarmos o número médio de habitantes por casa em Lisboa, que gira em torno de 2.7, isso há de perfazer um total de aproximadamente 1.004 almas. O que um número tão grande de pessoas pode estar a fazer numa noite de outono como agora é algo que não me interessa em absoluto. Os números nos tornam indiferentes.

Pela insistência da música que sai do telefone, não foi difícil supor que o Isidoro estava precisando falar. Os cobertores começam a ficar pesados de novo, com o frio por trás das janelas de vidro. Os meus gestos são, desse modo, mais lentos. «Miguel?» «Isidoro, quem podia ser?» Silêncio. Esfrego os olhos e sento-me encostado ao espelho da cama, esperando.

«Não quer ir ao Bairro Alto?» «Mas são quase cinco da manhã!» «Não quer ir?» «Isidoro, é assim...» «Está bem. Adeus.» Eu preciso ter mais paciência com toda essa gente de 1979. Agora resta-me fazer um café, porque sei que ele vai ligar dentro de poucos minutos. «Isidoro, qual é o problema?» É uma pergunta retórica. Hoje a Margarita olhou através de meus ombros com o mesmo olhar que o Isidoro teria lançado para mim naquele instante.

Contou-me tudo acerca da impopularidade que lhe é característica desde sempre. Se é um chato? Deve ser um chato. Isidoro tem esses ataques de autocomiseração desde que começou a visitar aquele amigo no hospital. Ninguém o convida para absolutamente nada, nada. O telefone nunca toca; a campainha. Não há mensagens eletrônicas, nada. É mais uma estatística de janela em noite de outono. «Percebe, Miguel? Eu sou sempre aquele que organiza tudo. Se espero, nada acontece. Ninguém blá-blá-blá.» O cheiro do café atravessa a porta do quarto. «Isidoro, não exagere.» Mas de fato jamais pensei em convidá-lo para uma imperial no Bairro Alto. É que a conversa de Isidoro às vezes é demasiado fastidiosa. Não há trivialidades, não há graça. Ele é sempre muito sério e pesado. Acho que as pessoas têm medo do Isidoro. Eu não tenho, para ser franco. Entretanto, nunca me passou pela cabeça convidá-lo para uma cerveja na Trindade, eis o que é.

Quando perguntei à Margarita se estava tudo bem, ela pousou a tosta no prato e falou, com o rosto vermelho, que sim. Mas olhava para a vitrine, através de meus ombros. Depois a Rita quis saber se podia me ligar logo mais à noite. Eu achei estranho que me fizesse essa pergunta; passara o dia num silêncio incomum. «Claro, não precisa pedir permissão.» E eu sei muito bem porque a M. Helena não quis ver o filme sobre o romance de Duras com aquele rapaz judeu.

Não vai terminar o que tem a dizer, eu começo a conhecer o Isidoro. Carrego um xícara de café fumegante entre as mãos e vejo ali mesmo perto da porta o molho de chaves. Se você tivesse uma cópia da chave da casa de Isidoro, Júlio, o que faria?

Um abraço.

Lisboa, 15 de outubro de 2002, 23:55h

10.16.2009

Por Baixo da Minha Camisa

Querida Irene,

Ontem tudo saiu errado, como havia de ser. A entrada, que estava fadada a ser insípida, estava. O salmão foi servido antes da hora: ensopado em vinho branco. Não é assim. E, bem, a história... a história não era exatamente aquela. O João deve ter desconfiado, mas foi a versão que eu julguei ter sido apropriada. Vê? Eu me preocupo com a satisfação do cliente. Embora esteja seguro de que não cozinho bem.

«Como não têm livro de reclamações?» «O supermercado não é obrigado a ter um,» foi a resposta cínica da mulher com cara de personagem num conto de Torga. Eu sei muito bem o que ela vai fazer com aquele papelzinho que jurou entregar ao gerente. Hipócritas. Se não têm um produto registrado no sistema, é bom que não o ofereça nas prateleiras. Saí furioso, embora tenha passado quase meia hora ao caixa, esperando que descobrissem o valor da massa que ia ser usada na entrada do jantar, logo mais à noite. Ontem foi um dia de letargia. Hoje não há de ser diferente. É que a Ana me contou tudo acerca das tartaruguinhas da Califórnia que continuam muito pequenininhas se hibernarem.

Obviamente ela notou o que se passava, e nunca olhou para mim. Ana tem medo – já percebi – tem medo de encarar de frente o sofrimento. Deve ter sido por conta disso que viveu tanto tempo ao lado do António Maria. Ontem estava muito bonita, com aqueles óculos giros de lentes azuis, que lhe dão um ar glacial de sueca. Dirigia e contava dos romances que acabam. As pequenas paixões são como as velas: a brisa mais suave é capaz de extingui-las. As grandes paixões, essas são como as fogueiras: os vendavais têm exclusivamente o poder de ateá-las. «Hoje eu o vejo e já não sinto absolutamente nada, Miguel. Nada».

Eu acho estranho que ele tenha sabido de minha ida à Costa da Caparica e de como a Maria Helena foi lá ter comigo. Não há mais privacidade, é um conceito que deixou de existir. E para quê? A Rita, por exemplo. Mas o João/ É preciso ter cuidado. Alguém teria visto, por exemplo, naquele dia, às três da madrugada, na varanda de meu apartamento, o que se passou? Eu estou salvo, é verdade. Mas a verdade é o que está por baixo da minha camisa, aquilo que o João não viu. A verdade, ele nunca chegou/ Estava escuro, e a história tinha de ser mesmo aquela.

Um beijo.

Lisboa, 12 de Outubro de 2002, 04:12h

10.15.2009

Venha Me Buscar

Ilka Querida,

Ontem decidi que queria voltar à Costa da Caparica, mas estava um dia escuro e frio. Juntei algumas roupas na mochila, tomei o walkman que tenho, com aquele CD da Zizi Possi, um que diz: «o mundo acabou pra recomeçar em outro lugar»... Eu nem sabia exatamente por onde começar, de sorte que fui à Praça de Espanha. Há um ônibus que parte dali para a Caparica, eu sei. No caminho, terminei de ler o Ensaio Sobre a Cegueira.

Quando cheguei ao Centro da Caparica, tinha de fazer qualquer coisa mesmo, porque não era definitivamente ali que eu queria estar. Há em meu telefone celular todos esses números suspeitos. A Cândida há de saber o bar onde é possível encontrar/ Mas agora é só tomar o espelho. Antes é preciso entrar num desses banheiros públicos e onde está o isqueiro agora? O isqueiro? Merda! Onde está a porra do isqueiro?

O meu nariz agora vive sangrando, mas isso realmente não interessa mais. Para quem eu escreveria por exemplo antes de vir à Costa da Caparica? Querida Maggie, o meu nariz anda sagrando muito, portanto resolvi ir para a Costa da Caparica. Diga a todos que eu os amo muito, etc. Não ia funcionar assim. E nunca soube de um bilhete desse tipo eletrônico. Não, nesse aspecto ainda sou um bocado tradicional.

Eu confesso que aquele homem, o desconhecido do bar na noite da terça-feira passada impressionou-me bastante. Ademais, eu detesto chorar em frente a um espelho. Isso revela coisas absolutamente indesejáveis já agora, e autocomiseração, o que só faz piorar mais ainda as coisas. Eu pelo menos/ Se calhar, não devia ter dado ouvidos à Cândida, não devia. Essa minha mania de querer escutar as pessoas. Isso precisa acabar já agora na Costa da Caparica.

Esse homem com cara de bicha velha vai parar o carro, estou certo de que vai. Era mesmo só o que me faltava. Agradeço e entro, sabendo que aquele riso quer significar muito mais do que pura cortesia. Vou até a Fonte da Telha. Não retribuo sorriso nenhum, e mesmo assim ele vem e põe a mão enrugada em minha perna. Tudo bem, eu já escrevi sobre isso. Faça ele o que bem quiser, desde que me ponha em Fonte da Telha. O meu nariz começa a sangrar e ele oferece um lenço de papel. Agora tem medo e dirige em silêncio.

Já é quase noite, devo dizer. E faz frio. Eu não quero mais essas coisas. Não quero nada. Não quero essa roupa, eu não quero essa bolsa, não quero esse walkman, nem a música da Zizi Possi. É assim que vou me desfazendo de tudo o que havia trazido. A água está muito muito fria e não há absolutamente ninguém na praia. O que é que eu estou fazendo, Ilka? Em algum lugar no meio dessa praia está o telefone celular, eu sei. Peço à Maria Helena que, por favor, venha me buscar.

Beijos.

Lisboa, 10 de Outubro de 2002, 20:36h

10.14.2009

There Are So Many Things

Querido Frank Henne,

Eu tinha hoje sugerido que acho mesmo ter tudo isso começado quando aceitei a oferta de Virgínia e fui a Frankfurt. Talvez nunca/ Mas isso é bastante contraditório, porque eu sou aquele que apoia, vai às ruas e proclama a importância da experiência. Go experience! I mean, there are so many things out there since Shakespeare... Entretanto, se ontem decidi que estou ao lado dos que pedem socorro, é porque talvez seja tempo de buscar uma clínica de reabilitação, como fez a Nan Goldin.

Que é que é a beleza, afinal? Aquela que o Vinícius proclamou como fundamental? Assim, por exemplo, por que é que você pensa que eu sou bonito? Por que é, por exemplo, que a Felippa não me dá a menor atenção? É dessa beleza que eu quero falar, por exemplo. Vejamos. Ilka uma vez foi parada no meio da rua e ouviu um comentário bastante desagradável: «tu és muito feia». Quero dizer, por que alguém se daria ao trabalho de/ Nunca ouvi um comentário que tal, embora esteticamente não me classificaria bonito. Mas então por que a Margarita outro dia... Ou, mais recentemente, por que a Rita...? Acha que as pessoas gostam de ser agradáveis?

Não acho que/ Eu fico bastante incomodado quando dizem que alguém é feio. Como assim, feio? Eu sei dizer, por exemplo, quando alguém é bonito porque chama-me a atenção. Entretanto, sou absolutamente distraído para ver os feios, se é que eles existem. Será por que/ Eu admito, por exemplo, que o Tiago não ache ela bonita, como me disse na Madeira. Eu acho. Mas também não sei porque dizem a mim que o Tiago é um susto. Com isso eu não posso concordar. É que as pessoas ignoram, por exemplo, os ângulos. Eu sou muito mais atento aos detalhes. E as fotografias não revelam absolutamente nada, justamente por conta disso.

Assim, por exemplo, veja a Rita. Ou a Elisabete. Veja a Susana. Ou a Mafalda. Verônica, veja a Paula. Assim, por exemplo, veja a Margarita. Ou a Ana. Veja a Maria Helena e a Eduarda. Elas todas são absolutamente bonitas por razões diferentes. Eu as acho tão bonitas todas... Sou incapaz de dizer que/ Isso de classificar as pessoas não faz mesmo o meu gênero e me deixa muito deprimido. Não quero andar com quem me diz aquele ali é feio. Feio?!

Sabe a razão porque penso ter sido a viagem a Frankfurt que me fez criar expectativas? Foram todos aqueles olhos. Não os olhos do Recife, se é que me faço compreender. Esses já são outros. O que há de mal, por exemplo, que eu tire uma fotografia daquela rapariga no ônibus com a capa preta? A Maria hoje veio com uma conversa bastante lugar-comum de que todas as raparigas do ILTEC/ Estamos tendo muitos problemas recentemente com essa história de simpatias, eu acho. Ninguém está preparado para pensar que/ Mas sobre isso falei ontem. E antes de ontem. Já começo a ficar repetitivo.

Apetece-me agora falar sobre o Martin Parr.

Beijos.

Lisboa, 09 de Outubro de 2002, 20:41h

10.13.2009

Na Água da Retrete

Querida Florance Mont´Alverne,

O passeio que fiz ontem à noite não me revelou absolutamente nada. Saí daqui do ILTEC por volta das dez e meia e veja lá: o Bairro Alto não me parece afinal assim tão boêmio quanto sugerem. Mas talvez porque na segunda-feira o papa-açorda esteja fechado, eu não sei. O que ocorre é que eu não posso entrar nesse bar agora, porque estou só e se há algo que eu não suporto é ver a cara dessas pessoas todas olhando para quem quer que entre num bar numa segunda-feira à noite como se acompanhado de um réquiem. Verônica falou-me outro dia de uns bilhetes que podem ser distribuídos na rua, como se em época de campanha política. Um, sugere, pode ter algo do tipo "foda-se". O outro/ Já não recordo. Ah, está olhando para mim? Tome aqui um "foda-se".

Isso evidentemente aplica-se a mim também. Tem o episódio que a Rita contou-nos no jantar da quinta-feira passada que envolvia a Maria Helena. Ela entrou certo dia na sala de aula, pegou os cadernos dos que estavam na frente da sala de aula e verificou que ninguém trabalhara no problema que ela havia proposto na aula anterior. Ficou furiosa, pegou os livros todos que trouxera, jogou-os ao chão e pisou, completamente desvairada, em cima de cada um deles, gritando que assim não podia ser. Parece que teria ficado ensandecida para sempre. Saiu em transe. Poucos minutos depois voltou com um sorriso na cara que ignorava o que quer que havia ocorrido.

Mas tomei coragem, é preciso tomar coragem, e entrei no bar. Obviamente não esperava encontrar absolutamente ninguém ali, porque o Jack está viajando. Foi a Amsterdam visitar a Odileiz. Pouco importa. Afinal não estava mesmo procurando companhia; só mesmo um bom martini. Ou um martini honesto, como diz aquela senhora que visitou a antiga casa da Gal Costa e ficou encantada com o desjejum.

Não sei se já lhe falei, mas o martini lembra-me muito bem um outro tópico que tenho procurado evitar todo esse tempo. Dê-me cá os bilhetinhos de volta. Como diz aquele senhor que se levanta embriagado da cadeira e confessa o que ninguém quer saber: não há problemas em confundir os anjos com as crianças. Ele entra no banheiro e vai vomitar a noite inteira, se eu não decido intervir. Então olha para mim desesperado e enxuga as lágrimas com as costas das mãos: "o problema é que eu não sei o que fazer com todo esse amor." A cara refletida na água da retrete pode parecer engraçada, mas eu bato-lhe o ombro como quem sugere empatia.

Agora diga-me, Florance, há algo que eu não tenha percebido muito bem?

Beijos.

Lisboa, 08 de Outubro de 2002, 17:31h

10.12.2009

O Medo de Que Já Havia Falado

Caro Fernando,

É só apertar o botão onde diz FAST FORWARD, achou? Let´s fast forward to a few weeks later. É a Tânia, mas não/ Quero dizer, ainda não contei absolutamente nada, como havia prometido. Hoje à noite a Tânia vem jantar aqui em casa, e tem luz de velas e todas as coisas de que a Tânia gosta. Vamos ver se dessa vez vai tudo sair certo porque já estou farto de saber as coisas/ Estou farto desse Requin au Four que nunca sai como quero. Vejamos.

Primeiro é preciso que/ A Maria já recusou duas vezes, agora que está ocupada com os lápis de cor e o compasso. Mas não é porque tenha recusado a Maria que eu/ Let´s fast forward, porque agora é da Tânia que devemos falar. Não é? A Tânia, naquele dia, no taxi, contou-me o que tinha se passado com ela e o Pedro na Madeira quando foram tomar uma poncha de absinto ao pé de Câmara de Lobos. Então riu como se quisesse dizer exatamente o que tinha sugerido um pouco antes no karaokê.

Olha, ela faz mesmo o gênero de quem vai gostar do novo album da Alanis. Embora eu acredite que talvez deva impingir aquele da Josefine, o que ganhei de presente já há bastante tempo do Jack. Está bem, está bem. Não precisa ser um jantar romântico. Eu até tenho medo de todo esse romantismo, porque todo mundo tem. Se não tivessem, talvez tudo fosse menos complicado. Quero dizer: o problema é mesmo ter de falar. Por que é que a gente precisa/ Nesse tocante, eu acho que o James tem toda a razão. Mas por favor! Avancemos no tempo. Já é hora de pensar na Tânia. Dentro em breve ela vai estar abrindo aquela porta e/ Eu sei muito bem, não devia/ Agora está feito.

O *meu* medo é enfim ter de falar no que havia prometido silenciar por pura falta de assunto. É assim que acontece sempre. A Tânia vai esgotar todo o assunto e lá vamos nós. É assim, Tânia: se não fosse por sua imaturidade, nada disso teria acontecido. Mas ele sabia exatamente a confusão em que estava se metendo, embora preferisse ignorar. Agora - aposto - deve estar contando meia-verdades para quem quiser ouvir, como quem põe pó por sobre o tapete. Tânia (eu provavelmente também não devia) não devia ter tomado tanto vinho, e vai já devolver-me a chave. É o medo de que já havia falado.

Enquanto isso, o presente é muito menos engraçado.

Beijos.

Lisboa, 07 de Outubro de 2002, 22:22h

10.11.2009

A Mais Cândida Demonstração de Afeto

Querida Ester Mirian Scarpa,

É preciso que eu diga: nada, absolutamente nada me impressionou no Porto mais do que ouvir a Joana Isabel cantando aquela música do Velvet Underground. Hás de saber a razão.

Quando, no centro comercial/ Quero dizer, até a Rita percebeu tudo. Ela olhou para o Tiago e, depois da francesinha, veio me dizer muito honestamente/ A Rita é uma das pessoas mais bonitas que eu conheço, mas também isso eu já havia dito. Até com as caras que faz, até ao telemóvel, ou falando ao primeiro desconhecido/ A Rita me comove. Mas olhe, estávamos no Centro Comercial. Tânia também havia pedido uma francesinha, como eu, das simples, aquela sem enchidos, sem bife nem ovo. Tânia, o nome era Tânia. Não interessa. Quando voltamos/ Ele nunca me disse o que tinha feito o resto do dia, nem para onde tinha ido naquela noite em que/

A Mafalda tinha me ligado e íamos sair juntos para jantar. «No Centro Comercial de novo?» Eu objetei. Já tínhamos comido ali ao almoço... Tiago chegou e eu já estava na recepção, pronto para ir mesmo. «A Mafalda quer lhe falar.» Ele pega o telefone e põe-se/ Eu não percebo de onde vem toda aquela/ Nunca dou motivo para isso, creio. Sempre sei me comportar, não sei? Isso/ é preciso que isso se resolva. Eu nunca soube mesmo lidar com ciúmes, não sei. Por que é que as pessoas/ Descem todos e partimos para a Ribeira, novamente.

Porque eu já havia dito, a Ribeira é de fato o lugar mais festivo no Porto, e a escolha do restaurante teria sido mesmo da Mafalda, a nossa miss de chocolate. Veja lá se isso é possível numa mesa em que as pessoas bebem vinho e brindam à Maria? Talvez eu esteja velho demais, e a Beta não se importa com isso. No entanto, é a Beta quem vai perceber tudo, depois, tomando vinho branco frizante. Agora está ocupada ao telefone. Eu acho mesmo que o mais importante é a diversão, não achas? Portanto, é mesmo com esse espírito que convido todo mundo para um shot.

Ester, hoje vai no Cine Ávila o filme que outro dia estivemos comentando. Não sei se devo telefonar ao James e dizer que/ Ele nunca sabe quais os filmes que estão em cartaz; nunca lê jornais nem acessa a internet, agora que tem o computador avariado depois da chuva de sábado passado. Essa chuva/ Acho que foi a chuva que me fez tomar a decisão de ontem, depois de ter visto o filme do Cronemberg, o novo.

Antes é preciso voltarmos à Ribeira, porque a Tânia e a Mafalda estavam jogando Trivia Pursuit muito bem, sabem todas as respostas, embora não soubessem dizer afinal porque o Tiago/ Vá lá, ninguém é mesmo perfeito. Isso é o que atestam umas poucas horas no karaokê. Quero dizer, a Tânia e a Rita são o máximo, mas o nosso Love Boat era mesmo intragável. Pedi uma imperial, e a Tânia passou a tomar do mesmo copo; creio ter sido de propósito porque depois, no taxi/

Nada de muito importante aconteceu depois disso, a não ser, é claro, a Joana Isabel. Para o bem da verdade, nada de tão importante aconteceu naquela noite a não ser a Joana Isabel. Eu não acredito na maldade humana, aí está. O Ivo - ninguém percebeu - o Ivo suava frio. Acho que somos todos fundamentalmente bem-intencionados, Ester. Mesmo quando se organiza uma/ Talvez eu devesse ligar ao James. É preciso que se/ Por que ninguém abraçou a rapariga da Madeira que chorava tanto tanto tanto? É que já pouquíssimas pessoas vêem um gesto assim como de fato o é: a mais cândida demonstração de afeto.

Na volta, paramos na Bairrada para o famoso leitão com vinho branco frizante. Deve ter sido o vinho. Elisabete e eu cantamos muito no caminho e, depois, aquelas músicas todas de quando eu tinha quatorze anos, porque nunca escutei Pink Floyd. Veja se percebe. Quando perguntei ao Tiago o que ele queria saber, afinal, ele olhou para a estrada como quem busca a palavra exata (planning) e então olhou para mim com/ O Ivo - ninguém percebeu/ Meteu a quinta-marcha e correu como quem foge da rapariga da Madeira.

Beijinhos.

Lisboa, 07 de Outubro de 2002, 13:30h

10.10.2009

O Que De Fato As Pessoas Querem

Querida Dóris,

Quando o João Peres recebeu o telefonema da Maria Helena para informá-lo de que, afinal, o primeiro lugar do prêmio da Associação Portuguesa de Linguística tinha sido conferido a outro trabalho que não ao que ele havia submetido, ficou tão contente tão contente que esqueceu a provável decepção de não ter sido o eleito. Maria Helena conclui então que o que de fato as pessoas necessitam é de um pouco de atenção que seja.

Saímos às oito em ponto, e dessa vez o Tiago não atrasou. Elisabete sim. Não estava no sítio onde supostamente devia estar às oito mais dez, mas também não demorou muito. Chegou carregada de quatro bolsas e um telefone celular. O telefone celular seria usado com parcimônia durante a viagem, como se verá. Entretanto, eram as bolsas mesmo que/ Quando chegamos ao Porto era por volta da meia-noite. Propus que tomássemos qualquer coisa no bar em frente ao hotel, que parecia simpático por fora, o Convívio. Eu pedi uma imperial, mas pediram a Elisabete e o Tiago um refrigerante!

A noite tinha sido muito bem dormida, não obstante o fuso horário, etc. Agora é preciso acordar e tomar um banho porque afinal é a primeira vez que venho ao Porto. O homem na recepção deu-me um mapa e indicou com fastio a direção que eu devia tomar quando saísse do hotel para chegar ao centro, como eu queria. A minha primeira impressão? As pessoas no Porto são mais baixas (fisicamente) do que as de Lisboa. Mas isso já tinha me sugerido a Susana Cavadas.

Há muitos becos; eu estava na Ribeira, mas era ainda muito cedo. À noite voltaríamos ali, é só esperar, ou pular alguns parágrafos. Acho mesmo que para além dos becos, da travessia que fiz sob a Ponte Luís I, o Porto/ Tomei um ônibus para voltar ao hotel e o motorista foi muito simpático. Era a Semana dos Caloiros: há uma menina muito interessante à minha frente, com aquele fato preto que vestem os doutores para humilhar os caloiros. Ela sequer olhou para mim, mas tudo bem, porque logo mais à tarde, na cafeteria da faculdade, aquela rapariga tão bonita também resolveu dar mais atenção ao gajo no telemóvel. Devia ser um gajo. Ela fumava, e talvez deve ter sido a forma como descartava as cinzas que me chamara a atenção.

Mas antes é preciso que/ De volta ao hotel/ O Tiago chegara pouco depois, com a bolsa e tudo perguntando se o passeio tinha sido interessante. Resolvi não contar nada sobre a tal doutora no ônibus porque tem aquelas fotos da Nan Goldin que tanto me impressionaram, os auto-retratos em que ela revela que o Bruce afinal não é assim tão giro como nas fotos em que está na cama. Eu teria a coragem de revelar a violência do Tiago? Ele talvez/ Bom, ele saiu muito independente para a Faculdade, mas não quero ir agora, porque tenho sono e além disso o quarto está bastante confortável assim... Quando acordei já são horas de estarem a Eva e o Tiago apresentando qualquer coisa de fim-de-curso em cadeira de morfologia com a professora Alina, com quem jantaríamos logo mais à noite. Rio Torto não usa óculos escuros e faz observações inteligentes, desculpe.

Mais tarde, depois do café com bolo de cenoura e a cena do telefone celular, vem a Maria Helena e nos rapta a Beta e eu para o Museu Serralves. É uma exposição de fotos da Nan Goldin, de quem tanto gosto. A exposição está muito bem-arranjada e é mesmo uma pena que você não tenha podido/ A Beta assistiu comigo os slides até ao fim, porque esses valem mesmo a pena; mas a Maria Helena não tem mesmo muita pachorra para coisas demoradas no escuro. É preciso que eu compre o Ballad of Sexual Dependency novamente, porque aquele que/ o que eu tinha, ficara em Vancouver, na casa da Lorna.

Na volta do museu há uma discussão acerca de que filme deveríamos ir ver logo mais à noite, mas como a Alina insiste que a comida na Casa de Pasto da Mamuda vale mais do que o Tom Hanks... Muito bem, as lulas eram de fato muito boas (melhores do que as que tivemos na noite seguinte, como hás de saber), mas como é que é mesmo o nome dela? Esqueci-me de perguntar ao Tiago (embora tenha medo/ quero dizer, a Mafalda deverá saber). A mesa ficou mais ou menos dividida por faixa etária, ou por os que decidiram beber vinho, e os que optaram por coca-cola. Nós éramos os últimos/ nós éramos a fronteira na mesa, embora ela estivesse muito mais para a Eva do que, por exemplo, para a Beta, de novo ao tefefone celular.

Outro/ É possível que os grupos tenham se definido novamente por/ Não, há o carro e os que pedem boléia e há os que dormem cedo depois de um gelado, embora até agora não tenha percebido muito bem porque ela não concluira que a idéia de ir à Ribeira fazia muito mais o gênero de quem bebe vinho na casa de pasto da mamuda numa quarta-feira à noite. Deve ter sido por causa do/ Não importa, eu fiz a promessa assim mesmo, embora tenha a certeza de que a Celeste vai a Fátima sozinha, afinal. Nunca acreditei muito em milagres.

A não ser, é claro, o da Vodka. Depois de uma caminhada bastante longa, encontramos o tal bar que estávamos procurando, o tal dos shots. Celeste pediu um refrigerante; era a designated driver. Eu quero uma mamada e a Beta, um orgasmo. Não havia ninguém no bar, mas como era a semana dos caloiros, eis que assim bastante repentinamente há dezenas de doutores jogando dardos e tomando gato-preto-gato-branco. Quisemos convencer o garçon tão simpático que éramos afinal os responsáveis pela invasão inusitada de doutores e assim devíamos ter shots de graça. Não tivemos muitos problemas para convencê-lo, é claro. Depois, quando quisemos pagar a conta, atravessamos as capas negras dos doutores sem muitas cerimônias e, é verdade, o garçon nos ofereceu a mim e à Beta um shot, mais um shot à borla. Tomou um também, à nossa. Podemos voltar lá hoje à noite, está bem?

Beta queria cantar, por que não? O karaokê vazio era/ todos ali eram bastante aborrecidos, mas depois de três shots seguidos, quem se importa? Para já, não têm o que se pede. Então tinha de ser vodka mesmo (para o milagre). Escolhemos uma série de músicas, as que sempre escolhemos quando vamos ao karaokê. Além de nós, os três, havia apenas um casal já bastante/ E o Bob Marley, cantando a ternura dos quarenta. Pense. Pronto: dançamos, cantamos, rimos bastante e a Celeste nos levou de volta para casa, como havia prometido. A noite havia de ser muito bem dormida, não obstante/ Etc.

Beijos.

Porto, 03 de Outubro de 2002, 08:25h

10.09.2009

Aprendendo A Dormir Em Vôos Mais Demorados

Querida Ângela,

Pois acredite: dormi em meio ao maior desconforto possível. Há, eu fiquei sabendo, uma tal Síndrome da Classe Econômica nos vôos relativamente longos. Desidratação é apenas um dos sintomas desse mal que acomete os indivíduos relativamente fodidos nos vôos relativamente longos, como o de Recife para Lisboa. Entretanto eu pude dormir um pouco, o que definitivamente é um feito inusitado. Fechei os olhos mesmo sem sono, encostei o travesseiro no pescoço, reclinei a minha cadeira e enfiei o livro do Saramago na bolsa da cadeira da frente. Dormi o suficiente para estar me sentindo bem. Agora é assim.

Mas para que compreenda melhor, é preciso que dê um salto no tempo. Estamos na Praia de Boa Viagem. É domingo, o último domingo antes das eleições presidenciais, e aparentemente não vai haver carreata. Sentamo-nos numa das tantas cadeirinhas coloridas que ali se oferecem a troco de uma cerveja à toa, um pacote de amendoim. A discussão gira em torno do posicionamento de Kierkgaard para com as várias instituições sociais, entre as quais o casamento, e a discussão lembrou-me então aquela que tivemos eu, Nelson e Alcidésio na quinta-feira passada. Se eu era então avesso às instituições consagradas como tais, devia ser mais cauteloso quando essas envolviam terceiros. Assim, por exemplo, há gente que cria expectativa em torno do pré-estabelecido. É? Tomei mais uma cerveja; eu sabia aonde o papo ia nos levar. Sobretudo: eu sabia exatamente o que o motivara. E foi assim que tudo foi desfeito, na praia de Boa Viagem.

Mas espere, há ainda o fondue à noite no Chateau Alpino, e o constrangimento do garçon com a garrafa de vinho na mão, fingindo não estar percebendo absolutamente nada. É verdade que eu tomei conhecimento da Síndrome da Classe Econômica somente essa noite passada, mas havia sido na noite anterior que eu conhecera uma ainda mais curiosa: a Síndrome Gabriela. Aparentemente sou acometido dessa, que consiste basicamente na imutabilidade (decerto poderia também ser chamada Síndrome Joana Isabel). Quando eu vim para esse muuundo, eu não atinava em nada... Hoje eu sou Gabriela: Gabriela êh, meus camarada. Eu nasci assim, eu cresci assim, eu vivi assim, vou ser sempre assim: Gabriela!

Eu não mudo? Então por que sou eu que tenho de mudar e não pertencer à estirpe do Kierkegaard? Mas... Se há algo que realmente me deixa paralizado é a lágrima. Claro, pode parecer indiferença, mas não é. É pânico. Muito embora, talvez, há dez anos atrás, eu provavelmente ensaiasse algum tipo de consolo. Hoje estou aprendendo a dormir em vôos mais demorados.

É possível que voltemos no tempo um pouco ainda? E agora estamos em casa de minha mãe. É domingo à tarde (à noite estaríamos comendo fondue). Há algo que naquela tarde/ Eu sei que há bolo de milho; mas para além disso, algo deve ter acontecido, porque na segunda-feira pela manhã, ontem, liga-me a mãe para um discurso que dela não é típico. Tipo conselho de mãe. Conselho de mãe?! A minha mãe nunca foi de dar conselho a ninguém! Alguma coisa muito séria, para além do bolo de milho, deve ter acontecido no domingo à tarde. Ou teria sido na tarde do sábado? Está bem, voltemos então para a tarde de sábado. Eu cheguei do dentista ainda com uma ressaca imensa, e minha mãe percebeu imediatamente tudo. O que há? Precisava visitar Reinilda uma última vez antes de/ Na volta, quando cheguei e não procurei por quem quer que devia estar em casa, isso causou estranheza em minha mãe, que depois resolveu dar conselhos. De mãe.

Não, veja: o que justifiquei foi mesmo assim. A razão pela qual penso ser desimportante chorar no aeroporto é porque simplesmente o sofrimento não vale a pena, nem mesmo para mostrar o que quer que seja. Eu preciso recorrer ao sofrimento por uma razão que seja? É melhor que/ recoste a cadeira, enfie o livro do Saramago no primeiro buraco que encontrar e tente dormir. Um dia você aprende.

Beijos.

Lisboa, 01 de Outubro de 2002, 11:12h

10.08.2009

A Alegria de Poder Aproveitar Uma Festa

Querida Ana Lúcia,

Esse assunto não me interessa. Há, na superfície das coisas mais banais, o estopim. Todas essas leis de física estão aí para explicar porque sair numa sexta-feira à noite pode desencadear uma série de acontecimentos que resultam no caos. Não se conhece ainda muito bem como os elementos, os vários elementos que cohabitam pacificamente a ordem, são lançados para espaços que em princípio - e fundamentalmente - não podem ocupar. (Está aí, talvez, o cerne de todo o questionamento). Não é afinal de contas curioso que a mesma energia usada na destruição atômica pode ser utilizada para propósitos mais, digamos, nobres?

Valter e Valdemar. Alcidésio buscou na agenda do telefone celular o número de Nelson, e acabou escutando um sermão. Mas, acostumado com o cinismo, foi lá ter com ele. Ouviu novo sermão e atuou muito bem. Naquele dia estava, coincidentemente, faltando um ensaio. Alcidésio faz teatro e está ensaiando algo chamado Um Martini Ao Luar, algo assim muitíssimo cafona. Mas espere, é preciso que eu diga que, na noite anterior/ a noite anterior seria na verdade aquela, hoje. Mas Nelson/ Acho que Nelson agiu de má-fé. É algo que eu preciso investigar. O que interessa mesmo é que, afinal, eu tinha ido. E estávamos em Igarassu, quase perto de Itapissuma. Não, bastante antes. Logo depois de Abreu e Lima.

Isso não interessa nada. Valter e Valdemar estavam lá, e era festa de Cosme e Damião. Não sei se conhece a história dos dois santos irmãos, porque essa mensagem é na verdade sobre eles, como há de percerber. Já não recordo exatamente quem faz capoieira, se o Valter ou o Valdemar. Na verdade nem mesmo sei se o nome deles é de fato grafado com V, porque em Igarassu ainda se usa o K, o Y e sobretudo o W. De todo modo, é o mais novo dos dois quem faz capoeira e tem vinte anos e doma cavalos. O mais velho, Damião, trabalha numa fábrica, à noite, e tem um dente a menos. Valter parecia cansado e mais à vontade. Valdemar era todo deslumbramento. O fato de eu apreciar a ingenuidade com que falam não tem nada a ver com aquilo ontem na TV. Na verdade, odeio quando/ Aquelas caras paulistas fazendo troça, uma troça cheia de comiseração, de nossa gente aqui do norte. Não acho isso justo, não acho. Eu ainda tenho/ Eu acredito em dignidade, essas coisas. Embora muita gente pense que/

A idéia de que rum podia ser uma boa alternativa foi de Alcidésio, porque eu tinha sugerido gim. Mas rum é um bocado mais suave. Os meninos, ademais, não iam passar mesmo de um copo, como há de se saber mais adiante. Acho que a tradição de distribuir bolsinhas com balas, pipocas e pitulitos hoje em dia se encontra restrita apenas aos bairros mais populares, tendo em conta que a religião sempre foi o apanágio/ Igarassu é uma terra ainda quase remota, considerada o berço do estado de Pernambuco. Lá, todo o Vinte e Sete de Setembro, há uma grande festa em comemoração aos Santos Cosme e Damião. Portanto, paramos no Carrefour e compramos pizza, salgadinhos em pacotes, enchidos e uma garrafa de rum. Todos iam estar lá.

Essa não foi a festa do absinto, essa é outra história. Alcidésio sabe onde estão todos os vídeos na casa de Nelson. Tem a liberdade de roubar uma fruta do cesto, abrir a geladeira na casa de Nelson. Eu ainda precisava de rum, e fui por conseguinte o barman. Cortei várias rodelinhas finas de limão, abri a soda limonada com espalhafato, verifiquei se tínhamos gelo suficiente. Alcidésio põe qualquer coisa para tocar; não é Madonna dessa vez. O ânimo não custa a subir, como acontece sempre em festas de criança. Quero dizer, estou falando sobre a inocência e a alegria de poder aproveitar uma festa de Cosme & Damião.

Eu saí muito feliz mas um tanto chapado às três da madrugada. Cantava ao volante, porque agora já não tinha companhia e precisava ficar acordado por conta das curvas da Estrada de Aldeia. Eu saí não antes de um banho, porque foi uma confusão e eu quis vomitar bastante para ter a certeza de que podia dirigir. No meio do caminho, lembrei que aquele teria sido o dia do aniversário de meu pai. Talvez ainda estivesse embriagado, enfim, porque me pus a chorar. Ou então é porque sabia exatamente o que me esperava.

Um beijo.

Recife, 30 de Setembro de 2002, 12:06h

10.07.2009

O Aparente Narcisismo

Querido Alexander,

Ontem estivemos eu e o Nelson a falar justamente nisso; depois, já no bar da Madalena, com Alcidésio e um prato de macaxeira, é que descubro serem todos eles muitíssimo tradicionais, no pior dos sentidos. Quase tivemos uma briga feia. Acontece que deve haver sanidade nesse mundo, deve haver. Eu não posso estar errado e todos esses olhos assim certos. Hoje à noite vou sair, a despeito do que quer que seja. Vai chegar atrasada com seu mal-humor e um carro. As chaves; hoje à noite vou sair e pronto, como disse a Rejane na hora do almoço. É preciso que a gente/ Ela concordou, e queria prolongar o assunto. Rejane quer sair comigo, mas resta muito pouco tempo.

Quando no café da manhã anunciei que iria à praia, foi como se o mundo/ Como é que disse o avô de Tom Zé? Como se a matéria perdesse a noção da gravidade, uma coisa assim. Detesto lidar com gente raivosa, com implosões de átomos, esses assuntos. Manti a minha calma habitual, e fui o caminho todo escutando Cazuza: meu bem se situe/ e pare de me dar resposta pronta/ que você tem problemas eu sei/ são coisas da idade... Quando cheguei a Boa Viagem, andei até chorar. Depois fiquei num desses assentos inclinados. Gosto de ver a gente passar. Por que não tinha levado a minha máquina? Ainda tenho de tomar coragem para fotografar os anônimos. Mas era sobre a água de coco que eu me propus falar. Ou sobre a cerveja com camarão ao natural? Como vou sentir falta de tudo isso!...

Não tive problemas para encontrar os CDs que a Celeste quer, nem a camisa de linho branco. Aquela rapariga muito bonita da Siberian Jeans foi além disso bastante simpática. Quando pediu que eu botasse o meu número de telefone no papelito do VISA/ Saí correndo do Shopping Center porque tinha prometido que iria almoçar no restaurante de Rejane, e já estava cheio de fome. Que é a curiosidade daquela gente toda atrapalhando o fluxo natural dos automóveis para ver afinal uma gota de sangue que seja por baixo daquele carro capotado? Não é esse o tipo de curiosidade a que me refiro. Eu vivo da pesquisa, você sabe. O meu nome é uma pergunta. Etc. Estou farto de repetir isso.

Rejane parou tudo para almoçar comigo, tão simpática. E conversou longamente sobre as minhas mensagens da Ilha da Madeira. Não fazia perguntas. Apenas dizia a reação de cada um dos funcionários do restaurante que tinha lido as mensagens. Um deles queria saber se a Felippa tinha vindo comigo. Todos estão bastante célebres no restaurante da Rejane.

A despeito disso, conversamos exatamente o que havíamos às garfadas na noite anterior. Rejane definitivamente concorda comigo. Somos bastante diferentes, tenho de admitir. Mas nesse ponto/ Quero dizer, eu talvez seja mais imediatista, embora essa mensagem não tenha sido necessariamente sobre mim. Há aqui algo muito mais importante e o aparente narcisismo é pura fachada. Veja-se o que vai acontecer logo mais à noite.

Beijinhos.

Recife, 27 de Setembro de 2002, 17:53

10.06.2009

A Chegada de Um Rei Persa

Caríssimo Alcidésio,

Enquanto comia aquele peixe impossível, Lourenço discordava de mim: nada de ética, essa existência é completamente subverviva, ele dizia. Deu para ler Thoreau, eu acho, porque o discurso chegava a ser quase melodramático. Eu, cheio das idéias frescas de Virgilius Haufniensis e Johannes de Silentio, argumentava que a verdade é a subjetividade: como considerar a ética sob essa perspectiva? Não, ele quase gritava: nada disso. E então os sentimentos? E a privacidade inviolável? Aquelas suas fotos podem bem lhe cair/ Há processos. Por que a Lei então protege a privacidade? Está bem, os sentimentos, como se não fossem oriundos de uma prática que considera a ética tal como vista algo positivo, esses americanos... O que há é o bem e o mal, meu amigo? Então quando Tomek escondia os cartões postais da vizinha e mandava bilhetes falsos? Ou o que falar das atitudes de Johannes para com Cordélia? O que há é o amor, era talvez a possível resposta de meu amigo, o tal que ainda hoje lê Thoreau; eu havia de concordar, embora não estivesse muito dado ao melodrama. Quero dizer, de tudo o que Lourenço tinha a perguntar, veio me perguntar isso? Eu fiquei um bocado decepcionado, porque não costumo justificar nada da forma que as pessoas acreditam a justificativa ser possível. Está lá em Ou Isto Ou Aquilo, de Victor Eremitus, ou em Etapas do Caminho da Vida, de Hilarius Bookbinder. Ainda recomendei que lesse Climacus e Frater Taciturnus. Mas depois de um dia intenso de praia e muita cerveja, Lourenço queria agora descansar um pouco. Sairíamos logo mais à noite.

Aquela pousada Europa, à beira do mar, era mesmo a melhor opção em Gaibu. O preço era justo para quem quer apenas dormir e tomar um desjejum na manhã seguinte com melão, abacaxi, melancia e queijo coalho frito. Outro dia o Jack me escreveu e perguntou se não faríamos assim: ele com a máquina inseparável e eu com a cara de jornalista, crachás, uma revista bonita, edição portuguesa, repórteres fazendo uma cobertura das praias, serviços, hotéis e pousadas na região norte-nordeste no Brasil. Haviam de nos hospedar nos melhores quartos por nada em troca senão a publicidade garantida. Jack gosta de citar a peça que Virgínia Wolf pregou em toda a sociedade britânica quando anunciou, ela e os amigos, a chegada de um rei persa. Obviamente o Jack sabe como seduzir.

Quando chegamos em Gaibu era perto do meio-dia, e o Manuel veio nos trazer cervejas, camarão ao alho & óleo, pedindo sempre que por favor chamem-no Júnior, detesta ser Manuel. Eu argumentava: Manuel era um nome tão bonito. Ele segurava uma aliança entre os dedos, reclamando a única coisa que pode. Não há direito conferido a ninguém, isso a Lei não sabe. Sempre chamamos o Manuel da praia como queríamos, o Lourenço e eu. Também somente o encontraríamos logo mais à noite, depois do peixe, indo para uma caipirinha. O sol estava muito a pique quando resolvemos pegar o carro e ir a Calhetas. Era para lá, afinal de contas, que queríamos mesmo ir.

É preciso uma lei de fato mas é para tirarem o Artur de Calhetas e aquele bar invasivo cheio de fotos de atores os mais ignóbeis. Antes era aquilo um paraíso, eu lembro. Os hippies todos e a maconha e os acampamentos. Hoje só rola o Artur com grupos de turistas de Casa Branca, aquele interior de São Paulo. Mas era apenas uma terça-feira e não tinha mesmo muita gente. Então pedimos outra cerveja, mais umas duas porções de camarão ao natural, e castanhas de cajú. Lourenço ainda tenta jogar conversa com a mira na mesa ao lado, mas a praia não está para peixe. E afinal o propósito era mesmo o de discutir logo mais à noite aquilo que/ Ainda caminhamos um tanto até chegarmos ao ponto onde o Porto de Suape pode ser visto. Mas Lourenço anda velho, e a ciática, e as aulas de matemática. É melhor que seja de carro. Depois das fotos das ruínas da casa do faroleiro, decidimos que era hora de voltar para Gaibu, a Pousada Europa (que por qualquer cargas d'água é também um clube).

Se quer mesmo saber a verdade, não estou a fim de dizer o que quer que tenha acontecido à noite ou na manhã seguinte, mas hoje é definitavamente um dia mais bonito. Eu não me importo se, no meio do trânsito, voltando para o Recife, Lourenço tenha olhado para mim como se eu fosse uma pessoa inteiramente nova, como se tivesse acabando de descobrir que não sabe, nunca soube quem de fato sou. Lourenço parecia suar frio ao volante, tinha medo; por trás de uma máscara de absoluta neutralidade, eu ria.

Beijinhos.

Recife, 27 de Setembro de 2002, 17:18h

10.05.2009

Castanhas, Pitangas, Araçás e Cocos

Querida Virgínia,

O que pouca gente sabe acerca de Albert Eckhout é algo que talvez possa soar banal, mas encerra um significado bastante profundo, sobretudo no que respeita a sua obra - o seu único legado. Sofria de uma doença hoje conhecida como Mal de Dustenhoffman, que começa por dar os seus primeiros sinais por volta da pré-adolescência, em forma de cegueira parcial. O problema vai se tornando mais grave à medida que o tempo avança, acarretando na completa falta de visão em períodos que giram em torno de 30 anos. Isso quer significar que por volta dos 45 anos, é provável que Eckhout estivesse completamente cego. A banalidade dessa informação consiste obviamente no fato de termos conhecimento de um número relativamente grande de artistas com problemas que tais. Beethoven talvez seja o mais célebre de todos, mas há o nosso Lima Barreto, o conterrâneo de Eckhout, também pintor, aquele fotógrafo também holandês que filmou os seus últimos dias de vida, e o Albino Hermeto, que não enxerga mesmo muito bem. Ocorre que todos eles são conhecidos muitas vezes por suas próprias deficiências, ou, as mais das vezes, a deficiência é uma característica inseparável quando quer que se considere as suas biografias. Com Eckhout o caso é bastante diferente.

Conhecido paisagista já antes de embarcar com a tripulação de Maurício de Nassau para o Nordeste do Brasil em 12 de novembro de 1636, Eckhout não admitia nem mesmo para si que estivesse ficando cego. A única a ficar sabendo de sua fatalidade, anos mais tarde, foi a sua correspondente Florien van Koopmans, com quem teve um breve relacionamento amoroso pouco depois de voltar para a Holanda, em maio de 1644. Essas cartas nunca foram disponibilizadas ao público e hoje encontram-se arquivadas na Biblioteca de Cracóvia, na Polônia, juntamente com os 755 desenhos de peixes, crustáceos, pássaros e répteis da fauna brasileira que foram ali parar por ocasião da Segunda Grande Guerra. Uma das poucas pessoas que tiveram acesso às cartas do paisagista à amante foi o estudioso Marc van Donzel, em cuja obra Ein niederländischenr Maler und sein Gönner Moritz der Brasilianer, baseada em sua tese de doutoramento, disseca cada uma das famosas 24 telas que ora estão sendo expostas no Instituto Ricardo Brennand. O que van Donzel tenta evidenciar em seu estudo é a capacidade visionária de Eckhout, e o uso excepcional que fez da metáfora em todas as 24 telas (há também considerações sobre as duas telas que desapareceram misteriosamente da coleção do então Rei da Dinamarca, Frederico III: uma em que se auto-retratava junto com "os nativos brasileiros" e outra em que retratou o príncipe dinamarquês em tamanho natural). Em um dos capítulos do livro, sugere que o conjunto de obras de Eckhout é, não apenas em termos estéticos, mas sobretudo por seu valor histórico, superior ao de seu compatriota, o também paisagista Frans Post, que tem sido muito mais festejado pelos historiadores de arte e etnólogos em geral.

Considere-se, por exemplo, a mão da mulher tapuia, segurando outra mão, a sugerir, na superficialidade, a antropofagia. O que na verdade se quer valorizar aqui é um dos sentidos. De acordo com van Donzel, o quadro, além de ser uma alegoria fácil ao contraste entre a civilização e o homem bruto, é sobretudo um estudo minuncioso dos cinco sentidos do Homem, talvez o mais brilhante estudo que se tem notícia desde a descoberta da coleção de tapetes do unicórnio, que pertencera a Georges Sand e hoje está exposto no Museu da Idade Média, em Paris. Ali também está indícios do confronto de Eckhout com a sua inexorável cegeueira. O fato de ele ter se valido de uma temática aparentemente paisagística para explorar temas profundos tais como a hegiogamologia, a natureza do infinito ou a fragilidade do pensamento humanístico, somente torna as suas pinturas ainda mais instigantes do que já se apresentam.

Na verdade, ainda de acordo com van Donzel, as naturezas-mortas retratadas por Eckhout podem eventualmente ser muito mais significativas do que os famosos 24 retratos. Rezava a tradição holandesa do século XVII que os paisagistas tinham certa liberdade para usar artifícios em suas pinturas, desde que o objetivo fosse mostrar um mesmo objeto sob os mais variados prismas possíveis. Eram quadros planejados, com fundos geralmente opacos (o céu era muitíssimo apreciado para tal), que buscavam imprimir um certo rigor científico, mas com apelo suficiente para agradar a corte. Uma análise mais apurada da coleção de doze naturezas-mortas com frutas e legumes que também fazem parte do acervo do Museu Nacional da Dinamarca oferece pistas para o posicionamento subversivo de Eckhout no tocante aos princípios da escola paisagística de sua época. No conjunto de abacaxis, goiabas, castanhas, pitangas, araçás e cocos pintados em festa por Eckhout há mensagens que somente uma atenção mesmo minunciosa pode revelar. Em Bananas e Goiabas, por exemplo, há fractais que são apenas visíveis em escala de dez por um nas polpas dos maracujás. Em se levando em conta a simbologia por trás dessa fruta em particular, é quase inevitável que se arrisque uma análise que extrapole o simples registro pictórico. Van Donzel não se ocupa demoradamente na análise das naturezas-mortas porque, de acordo com ele, o material existente é muito pouco significativo para avançar considerações mais precisas. Seria imprescindível que os desenhos mantidos em cofre-forte na Biblioteca de Cracóvia fossem disponibilizados ao público para que a sua tese acerca da subversão paisagística de Eckhout pudesse ser eventualmente corroborada. Isso porque as cartas a Florien van Koopmans revelam a importância desse material em várias passagens (sabe-se que a Biblioteca também possui em arquivo outras cartas do pintor, que poderiam oferecer pistas muito mais importantes - sobretudo as escritas ao seu amigo Frans Post, por ocasião de seu retorno a Groningen).

Há negociações ainda em andamento para a publicação integral das cartas de Eckhout a Florien van Koopmans, um conjunto de 127 missivas. Van Donzel, um dos poucos privilegiados a ter tido acesso a essa rara documentação, promete que são verdadeiras peças literárias, de conteúdo eminentemente filosófico. De acordo com van Donzel, há passagens extremamente herméticas que revelam profundo conhecimento em áreas as mais díspares, quer sejam a cosmologia e a medicina botânica. O que, ainda de acordo com van Donzel, o conjunto de cartas parece querer significar, entre outras coisas, é que os oito anos passados no Brasil mudara para sempre a vida daquele outrora pacato ilustrador.

Tudo isso é para dizer que se ainda não foi ao Instituto Ricardo Brennand, tem até o dia 24 de novembro para fazê-lo.

Beijos.

Recife, 23 de Setembro de 2002, 13:07h.

10.04.2009

Ele & Ela

Querida Verônica,

A família/ pode ser que eu tenha uma opinião bastante errada do conceito que a tevê norte-americana/ É possível que seja possível a família, mas é preciso ter muito cuidado com todas essas informações pós-freudianas e aqueles filmes todos com criancinhas desesperadas por pais que não chegam nunca para aquela primeira apresentação de teatro. Mas se a família, o núcleo de tudo, o ponto de retorno, a esperança na economia desfeita pode fugir àquilo que querem a religião e a política, olha... Se dentro dela há, por exemplo, uma Marinete, há de ser interessante.

Está bem, você há de dizer que todo essa minha puberdade tardia não faz sentido essa escrita alegrinha e cheia de subterfúgios literários de regras gramaticais desfeitas não é nada estudada, que eu não sou o Rosa e que o tempo do Rosa já era o tempo dessa literatura. Eu sei, mas ocorre que há muito o que ser dito, e não consigo organizar as minhas idéias muito melhor que isso. Então esclareça-se: não quero fazer literatura, nem mesmo insistir na idéia de ser original até mesmo porque sei que nada tem de original em nada, já agora para ser bíblico.

Deixe-me ver. Ocorre que eu não consigo ficar menos inquieto com a idéia dessa tradicionalidade que é a família. Não vejo graça naquela filmadora de mão, não vejo. E essa conversa de que o meu caso e a psicanálise podem ser uma explicação para tudo não convence nem mesmo Maria de Fátima, que tem quase cinquenta anos de terapia.

Quando ontem desci à venda de Marinete, era porque já não tinha mais o que dizer. O que querem, por exemplo, as pessoas lá na casa de Maria saber a meu respeito, e o que eu quero saber a respeito de cada uma delas? Eu costumo soar muito parvo quando procuro conversar qualquer coisa sem propósito, embora muitas vezes use isso intencionalmente. O fato de agora estarmos unidos em família significa necessariamente que temos tópicos conversacionais/

Marinete não quer saber quando é que eu volto, se eu fico, se estou, por quê. Nada. A única preocupação dela é ter a certeza de que tem troco para as compras que fazem ali na barraca. E com os gatos, para os quais dissimula desinteresse e, algumas vezes, irritação. Não é nada: Marinete não pode expressar amor de outra maneira. E quando chega então o Zé, estamos feitos. Eles são tão simpáticos, os dois. Lá em cima ninguém dá conta de que existem. Cá em baixo, eles sequer se preocupam com isso.

Manda ver uma lapada de pitú e uma caldinho de feijão: ele & ela. Eu sou do clã da Marinete.

Beijos.

Beberibe, 22 de Setembro de 2002, 9:45h

10.03.2009

A Sorrir

Querida Vera,

Toda a vez é isso, desde há muito tempo, quase quinze anos, dezessete, por aí. Quando há festa na casa de Nelson, pode acontecer de um tudo; e dessa vez não teria sido diferente. De início era para ser um jantarito trivial e muito bem-comportado. Éramos apenas eu, Nelson, Maria dos Prazeres e Edna Barreto. Quero dizer, teríamos ido ao Biruta, aquele bar que fica no Pina, à beira-mar. Mas Maria dos Prazeres, excelente cozinheira, muito melhor que eu e meus livros de culinária do Sul de França, resolveu que faria o jantar; um jantar. E assim ficou combinado que seria às oito, na casa de Nelson. Como já há muito tempo sou o confessor de Nelson, e levando-se em conta que há cerca de oito meses não trocamos uma única palavra, era evidente que ele, cheio de pecados, queria que eu chegasse mais cedo. Está bem, e antes mesmo do sol se pôr.

Eu entendo tudo, sou o melhor confessor da praça; mas há quem me considere um anjo torto, eu e minha espada de fogo. Alguém vai trilhar o caminho errado? Aquele que leva à infelicidade? Eu e minha espada de fogo indicamos uma possibilidade mais redentora. É só olhar a história, ou uma liturgia católico-ortodoxa. Não importa se o que interessa mesmo são as histórias de Nelson; ele sempre tem várias, e são sempre muito boas. Ocorre que inevitavelmente inspiram as festas que hão de acontecer. E foi por conta de uma das narrativas que decidimos convidar Lourenço. Ele atende o telefone quase desconfiado, no meio de uma aula de matemática. Mas não demora muito para aceitar o convite, porque não sabe que Prazeres é a chef.

E por que não Alcidésio? Venha que venha. Edna, afinal, já havia ligado dizendo que sem Catarina não ia. Tudo bem. Mas devia ter dito isso a mim, pois que eu fui o responsável pelo evento. E já agora que sabíamos da vinda de Beto e Renato, tudo bem. Talvez Edna não fosse gostar do jantar tanto assim. Catarina decerto que detestaria. Alcidésio seria o último a chegar, porque também ensina. Inglês. Lourenço, porque costuma abandonar os alunos desinteressados por qualquer ensaio de festa, foi obviamente o primeiro. Chega e já quer música bastante alta. Ultimamente gosta do novo disco da Madonna, e é isso que vamos ouvir. Há Cake & Ed Motta; um pouco de Tim Maia & Sade. Tira a camisa, toma uma cerveja e é todo alegria quando chegam Beto & Renato.

Há algo de errado entre Beto e Renato naquela noite, devo dizer. Um certo estremecimento, talvez; embora Beto tente disfarçar, e ria, e tome mais duas cervejas. Beto sempre toma mais do que deve ou pode. Prazeres chega cheia de desculpas; o jantar estava atrasado. É uma confusão na cozinha, mas nem queremos saber eu e Lourenço. Beto procura ajudar. Renato corta uns pedaços de frango sem muita vontade.Lourenço joga cartas na sala e Madonna continua cantando: music, tra-la-lá. Agora estava ficando melhor, porque Nelson abre uma garrafa de vinho, e Alcidésio acabara de chegar.

Toda vez que há uma reunião assim, é inevitável que as recordações de como, no passado, eram nossas festas, aconteçam. Prazeres se sente perseguida pelo passado; não quer e evita o papo saudosista. Afinal, não é tão velha assim e ninguém vive do passado. Olha aquela festa! Olha a comida no fogo! Lourenço, que teria ido embora por razões óbvias, resolve que fica aquela noite. Prazeres, afinal, estava bastante agradável. E deve estar noutra para aquele brilho renovado nos olhos. Que bom para todos! Ninguém vive do passado, Prazeres estava certa. E em pouco tempo o jantar estava pronto.

Depois o vinho, e mais vinho. Acho que Prazeres estava muito bonita hoje; acho que é a roupa: essa roupa está tão bonita, Prazeres. Ela, prontamente, tira tudo, toma as maquilhagens todas da bolsa em desordem, e decide que tudo fica muito melhor em mim. Alcidésio concorda que sim, e em pouco tempo estou sendo maquiado, vestido, usado, abusado, como é a prática. É sempre assim, não tenho tempo de lutar. Há música, e mais música. Nelson pede que por favor o volume seja obedicido, por conta dos vizinhos. Já passava das duas da madrugada. Eu quero saber quem prefere sair para a saideira, um gim-tônica no Anjo Solto, uma caipirinha no Biruta, com os pés descalços na areia. Há agora aquelas justificativas todas, muitos ifs. Não fosse o trabalho amanhã, não fosse essa dor de cabeça, essa ciática. Estão todos cheios de compromissos com a ciática, esses meus amigos. Renato não diz nada, mas Renato era a primeira vez que eu o encontrava.

Beto se levanta e começa a dizer umas coisas meio sem muito sentido, eu acho. É, afinal, a cerveja que ele sempre bebe além da conta. Tem esses disparates de recitar Os Sertões de Euclides da Cunha, que sabe de cor. Não sei muito bem porque resolveu citar aquele trecho do capítulo quatro; ninguém estava mesmo prestando atenção... Renato muito menos, se era o Renato que Beto queria impressionar. Tim Maia cantava o descobridor dos sete mares. Lourenço dança muito bem, mas não sabe me acompanhar. Alcidésio é o melhor de todos. Nelson, por sua vez, dava todas as dicas de que já estávamos abusando da hora. Só notamos a ausência de Beto depois de algum tempo. Estava, como era de se esperar, no quarto, completamente sem sentidos. Aquilo indicava o final da festa. Beto regularmente acaba a festa assim.

Está bem, quem é que vai?... E eu repito o convite, sem muito sucesso. Prazeres quer ir com Lourenço, o que eu achei uma idéia péssima. Alcidésio vai dormir mesmo em Nelson. Beto continua desacordado no chão. Renato precisa ir embora. Desce as escadas em silêncio, ao meu lado. Já à porta do carro, quer saber se pode ir. Eu abro-lhe a porta e ele entra quase sem jeito. Ligo o motor, vejo no retrovisor os olhos borrados de lápis preto e é Ney Matogrosso cantando aquela música do Divino Cartola. As estradas àquela hora sempre estão vazias, mas ainda havia espaço para um gim. Dois.

Beijos.

Recife, 21 de Setembro de 2002, 12:18h