10.16.2009

Por Baixo da Minha Camisa

Querida Irene,

Ontem tudo saiu errado, como havia de ser. A entrada, que estava fadada a ser insípida, estava. O salmão foi servido antes da hora: ensopado em vinho branco. Não é assim. E, bem, a história... a história não era exatamente aquela. O João deve ter desconfiado, mas foi a versão que eu julguei ter sido apropriada. Vê? Eu me preocupo com a satisfação do cliente. Embora esteja seguro de que não cozinho bem.

«Como não têm livro de reclamações?» «O supermercado não é obrigado a ter um,» foi a resposta cínica da mulher com cara de personagem num conto de Torga. Eu sei muito bem o que ela vai fazer com aquele papelzinho que jurou entregar ao gerente. Hipócritas. Se não têm um produto registrado no sistema, é bom que não o ofereça nas prateleiras. Saí furioso, embora tenha passado quase meia hora ao caixa, esperando que descobrissem o valor da massa que ia ser usada na entrada do jantar, logo mais à noite. Ontem foi um dia de letargia. Hoje não há de ser diferente. É que a Ana me contou tudo acerca das tartaruguinhas da Califórnia que continuam muito pequenininhas se hibernarem.

Obviamente ela notou o que se passava, e nunca olhou para mim. Ana tem medo – já percebi – tem medo de encarar de frente o sofrimento. Deve ter sido por conta disso que viveu tanto tempo ao lado do António Maria. Ontem estava muito bonita, com aqueles óculos giros de lentes azuis, que lhe dão um ar glacial de sueca. Dirigia e contava dos romances que acabam. As pequenas paixões são como as velas: a brisa mais suave é capaz de extingui-las. As grandes paixões, essas são como as fogueiras: os vendavais têm exclusivamente o poder de ateá-las. «Hoje eu o vejo e já não sinto absolutamente nada, Miguel. Nada».

Eu acho estranho que ele tenha sabido de minha ida à Costa da Caparica e de como a Maria Helena foi lá ter comigo. Não há mais privacidade, é um conceito que deixou de existir. E para quê? A Rita, por exemplo. Mas o João/ É preciso ter cuidado. Alguém teria visto, por exemplo, naquele dia, às três da madrugada, na varanda de meu apartamento, o que se passou? Eu estou salvo, é verdade. Mas a verdade é o que está por baixo da minha camisa, aquilo que o João não viu. A verdade, ele nunca chegou/ Estava escuro, e a história tinha de ser mesmo aquela.

Um beijo.

Lisboa, 12 de Outubro de 2002, 04:12h

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