10.15.2009

Venha Me Buscar

Ilka Querida,

Ontem decidi que queria voltar à Costa da Caparica, mas estava um dia escuro e frio. Juntei algumas roupas na mochila, tomei o walkman que tenho, com aquele CD da Zizi Possi, um que diz: «o mundo acabou pra recomeçar em outro lugar»... Eu nem sabia exatamente por onde começar, de sorte que fui à Praça de Espanha. Há um ônibus que parte dali para a Caparica, eu sei. No caminho, terminei de ler o Ensaio Sobre a Cegueira.

Quando cheguei ao Centro da Caparica, tinha de fazer qualquer coisa mesmo, porque não era definitivamente ali que eu queria estar. Há em meu telefone celular todos esses números suspeitos. A Cândida há de saber o bar onde é possível encontrar/ Mas agora é só tomar o espelho. Antes é preciso entrar num desses banheiros públicos e onde está o isqueiro agora? O isqueiro? Merda! Onde está a porra do isqueiro?

O meu nariz agora vive sangrando, mas isso realmente não interessa mais. Para quem eu escreveria por exemplo antes de vir à Costa da Caparica? Querida Maggie, o meu nariz anda sagrando muito, portanto resolvi ir para a Costa da Caparica. Diga a todos que eu os amo muito, etc. Não ia funcionar assim. E nunca soube de um bilhete desse tipo eletrônico. Não, nesse aspecto ainda sou um bocado tradicional.

Eu confesso que aquele homem, o desconhecido do bar na noite da terça-feira passada impressionou-me bastante. Ademais, eu detesto chorar em frente a um espelho. Isso revela coisas absolutamente indesejáveis já agora, e autocomiseração, o que só faz piorar mais ainda as coisas. Eu pelo menos/ Se calhar, não devia ter dado ouvidos à Cândida, não devia. Essa minha mania de querer escutar as pessoas. Isso precisa acabar já agora na Costa da Caparica.

Esse homem com cara de bicha velha vai parar o carro, estou certo de que vai. Era mesmo só o que me faltava. Agradeço e entro, sabendo que aquele riso quer significar muito mais do que pura cortesia. Vou até a Fonte da Telha. Não retribuo sorriso nenhum, e mesmo assim ele vem e põe a mão enrugada em minha perna. Tudo bem, eu já escrevi sobre isso. Faça ele o que bem quiser, desde que me ponha em Fonte da Telha. O meu nariz começa a sangrar e ele oferece um lenço de papel. Agora tem medo e dirige em silêncio.

Já é quase noite, devo dizer. E faz frio. Eu não quero mais essas coisas. Não quero nada. Não quero essa roupa, eu não quero essa bolsa, não quero esse walkman, nem a música da Zizi Possi. É assim que vou me desfazendo de tudo o que havia trazido. A água está muito muito fria e não há absolutamente ninguém na praia. O que é que eu estou fazendo, Ilka? Em algum lugar no meio dessa praia está o telefone celular, eu sei. Peço à Maria Helena que, por favor, venha me buscar.

Beijos.

Lisboa, 10 de Outubro de 2002, 20:36h

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