10.06.2009

A Chegada de Um Rei Persa

Caríssimo Alcidésio,

Enquanto comia aquele peixe impossível, Lourenço discordava de mim: nada de ética, essa existência é completamente subverviva, ele dizia. Deu para ler Thoreau, eu acho, porque o discurso chegava a ser quase melodramático. Eu, cheio das idéias frescas de Virgilius Haufniensis e Johannes de Silentio, argumentava que a verdade é a subjetividade: como considerar a ética sob essa perspectiva? Não, ele quase gritava: nada disso. E então os sentimentos? E a privacidade inviolável? Aquelas suas fotos podem bem lhe cair/ Há processos. Por que a Lei então protege a privacidade? Está bem, os sentimentos, como se não fossem oriundos de uma prática que considera a ética tal como vista algo positivo, esses americanos... O que há é o bem e o mal, meu amigo? Então quando Tomek escondia os cartões postais da vizinha e mandava bilhetes falsos? Ou o que falar das atitudes de Johannes para com Cordélia? O que há é o amor, era talvez a possível resposta de meu amigo, o tal que ainda hoje lê Thoreau; eu havia de concordar, embora não estivesse muito dado ao melodrama. Quero dizer, de tudo o que Lourenço tinha a perguntar, veio me perguntar isso? Eu fiquei um bocado decepcionado, porque não costumo justificar nada da forma que as pessoas acreditam a justificativa ser possível. Está lá em Ou Isto Ou Aquilo, de Victor Eremitus, ou em Etapas do Caminho da Vida, de Hilarius Bookbinder. Ainda recomendei que lesse Climacus e Frater Taciturnus. Mas depois de um dia intenso de praia e muita cerveja, Lourenço queria agora descansar um pouco. Sairíamos logo mais à noite.

Aquela pousada Europa, à beira do mar, era mesmo a melhor opção em Gaibu. O preço era justo para quem quer apenas dormir e tomar um desjejum na manhã seguinte com melão, abacaxi, melancia e queijo coalho frito. Outro dia o Jack me escreveu e perguntou se não faríamos assim: ele com a máquina inseparável e eu com a cara de jornalista, crachás, uma revista bonita, edição portuguesa, repórteres fazendo uma cobertura das praias, serviços, hotéis e pousadas na região norte-nordeste no Brasil. Haviam de nos hospedar nos melhores quartos por nada em troca senão a publicidade garantida. Jack gosta de citar a peça que Virgínia Wolf pregou em toda a sociedade britânica quando anunciou, ela e os amigos, a chegada de um rei persa. Obviamente o Jack sabe como seduzir.

Quando chegamos em Gaibu era perto do meio-dia, e o Manuel veio nos trazer cervejas, camarão ao alho & óleo, pedindo sempre que por favor chamem-no Júnior, detesta ser Manuel. Eu argumentava: Manuel era um nome tão bonito. Ele segurava uma aliança entre os dedos, reclamando a única coisa que pode. Não há direito conferido a ninguém, isso a Lei não sabe. Sempre chamamos o Manuel da praia como queríamos, o Lourenço e eu. Também somente o encontraríamos logo mais à noite, depois do peixe, indo para uma caipirinha. O sol estava muito a pique quando resolvemos pegar o carro e ir a Calhetas. Era para lá, afinal de contas, que queríamos mesmo ir.

É preciso uma lei de fato mas é para tirarem o Artur de Calhetas e aquele bar invasivo cheio de fotos de atores os mais ignóbeis. Antes era aquilo um paraíso, eu lembro. Os hippies todos e a maconha e os acampamentos. Hoje só rola o Artur com grupos de turistas de Casa Branca, aquele interior de São Paulo. Mas era apenas uma terça-feira e não tinha mesmo muita gente. Então pedimos outra cerveja, mais umas duas porções de camarão ao natural, e castanhas de cajú. Lourenço ainda tenta jogar conversa com a mira na mesa ao lado, mas a praia não está para peixe. E afinal o propósito era mesmo o de discutir logo mais à noite aquilo que/ Ainda caminhamos um tanto até chegarmos ao ponto onde o Porto de Suape pode ser visto. Mas Lourenço anda velho, e a ciática, e as aulas de matemática. É melhor que seja de carro. Depois das fotos das ruínas da casa do faroleiro, decidimos que era hora de voltar para Gaibu, a Pousada Europa (que por qualquer cargas d'água é também um clube).

Se quer mesmo saber a verdade, não estou a fim de dizer o que quer que tenha acontecido à noite ou na manhã seguinte, mas hoje é definitavamente um dia mais bonito. Eu não me importo se, no meio do trânsito, voltando para o Recife, Lourenço tenha olhado para mim como se eu fosse uma pessoa inteiramente nova, como se tivesse acabando de descobrir que não sabe, nunca soube quem de fato sou. Lourenço parecia suar frio ao volante, tinha medo; por trás de uma máscara de absoluta neutralidade, eu ria.

Beijinhos.

Recife, 27 de Setembro de 2002, 17:18h

Sem comentários: