10.05.2009

Castanhas, Pitangas, Araçás e Cocos

Querida Virgínia,

O que pouca gente sabe acerca de Albert Eckhout é algo que talvez possa soar banal, mas encerra um significado bastante profundo, sobretudo no que respeita a sua obra - o seu único legado. Sofria de uma doença hoje conhecida como Mal de Dustenhoffman, que começa por dar os seus primeiros sinais por volta da pré-adolescência, em forma de cegueira parcial. O problema vai se tornando mais grave à medida que o tempo avança, acarretando na completa falta de visão em períodos que giram em torno de 30 anos. Isso quer significar que por volta dos 45 anos, é provável que Eckhout estivesse completamente cego. A banalidade dessa informação consiste obviamente no fato de termos conhecimento de um número relativamente grande de artistas com problemas que tais. Beethoven talvez seja o mais célebre de todos, mas há o nosso Lima Barreto, o conterrâneo de Eckhout, também pintor, aquele fotógrafo também holandês que filmou os seus últimos dias de vida, e o Albino Hermeto, que não enxerga mesmo muito bem. Ocorre que todos eles são conhecidos muitas vezes por suas próprias deficiências, ou, as mais das vezes, a deficiência é uma característica inseparável quando quer que se considere as suas biografias. Com Eckhout o caso é bastante diferente.

Conhecido paisagista já antes de embarcar com a tripulação de Maurício de Nassau para o Nordeste do Brasil em 12 de novembro de 1636, Eckhout não admitia nem mesmo para si que estivesse ficando cego. A única a ficar sabendo de sua fatalidade, anos mais tarde, foi a sua correspondente Florien van Koopmans, com quem teve um breve relacionamento amoroso pouco depois de voltar para a Holanda, em maio de 1644. Essas cartas nunca foram disponibilizadas ao público e hoje encontram-se arquivadas na Biblioteca de Cracóvia, na Polônia, juntamente com os 755 desenhos de peixes, crustáceos, pássaros e répteis da fauna brasileira que foram ali parar por ocasião da Segunda Grande Guerra. Uma das poucas pessoas que tiveram acesso às cartas do paisagista à amante foi o estudioso Marc van Donzel, em cuja obra Ein niederländischenr Maler und sein Gönner Moritz der Brasilianer, baseada em sua tese de doutoramento, disseca cada uma das famosas 24 telas que ora estão sendo expostas no Instituto Ricardo Brennand. O que van Donzel tenta evidenciar em seu estudo é a capacidade visionária de Eckhout, e o uso excepcional que fez da metáfora em todas as 24 telas (há também considerações sobre as duas telas que desapareceram misteriosamente da coleção do então Rei da Dinamarca, Frederico III: uma em que se auto-retratava junto com "os nativos brasileiros" e outra em que retratou o príncipe dinamarquês em tamanho natural). Em um dos capítulos do livro, sugere que o conjunto de obras de Eckhout é, não apenas em termos estéticos, mas sobretudo por seu valor histórico, superior ao de seu compatriota, o também paisagista Frans Post, que tem sido muito mais festejado pelos historiadores de arte e etnólogos em geral.

Considere-se, por exemplo, a mão da mulher tapuia, segurando outra mão, a sugerir, na superficialidade, a antropofagia. O que na verdade se quer valorizar aqui é um dos sentidos. De acordo com van Donzel, o quadro, além de ser uma alegoria fácil ao contraste entre a civilização e o homem bruto, é sobretudo um estudo minuncioso dos cinco sentidos do Homem, talvez o mais brilhante estudo que se tem notícia desde a descoberta da coleção de tapetes do unicórnio, que pertencera a Georges Sand e hoje está exposto no Museu da Idade Média, em Paris. Ali também está indícios do confronto de Eckhout com a sua inexorável cegeueira. O fato de ele ter se valido de uma temática aparentemente paisagística para explorar temas profundos tais como a hegiogamologia, a natureza do infinito ou a fragilidade do pensamento humanístico, somente torna as suas pinturas ainda mais instigantes do que já se apresentam.

Na verdade, ainda de acordo com van Donzel, as naturezas-mortas retratadas por Eckhout podem eventualmente ser muito mais significativas do que os famosos 24 retratos. Rezava a tradição holandesa do século XVII que os paisagistas tinham certa liberdade para usar artifícios em suas pinturas, desde que o objetivo fosse mostrar um mesmo objeto sob os mais variados prismas possíveis. Eram quadros planejados, com fundos geralmente opacos (o céu era muitíssimo apreciado para tal), que buscavam imprimir um certo rigor científico, mas com apelo suficiente para agradar a corte. Uma análise mais apurada da coleção de doze naturezas-mortas com frutas e legumes que também fazem parte do acervo do Museu Nacional da Dinamarca oferece pistas para o posicionamento subversivo de Eckhout no tocante aos princípios da escola paisagística de sua época. No conjunto de abacaxis, goiabas, castanhas, pitangas, araçás e cocos pintados em festa por Eckhout há mensagens que somente uma atenção mesmo minunciosa pode revelar. Em Bananas e Goiabas, por exemplo, há fractais que são apenas visíveis em escala de dez por um nas polpas dos maracujás. Em se levando em conta a simbologia por trás dessa fruta em particular, é quase inevitável que se arrisque uma análise que extrapole o simples registro pictórico. Van Donzel não se ocupa demoradamente na análise das naturezas-mortas porque, de acordo com ele, o material existente é muito pouco significativo para avançar considerações mais precisas. Seria imprescindível que os desenhos mantidos em cofre-forte na Biblioteca de Cracóvia fossem disponibilizados ao público para que a sua tese acerca da subversão paisagística de Eckhout pudesse ser eventualmente corroborada. Isso porque as cartas a Florien van Koopmans revelam a importância desse material em várias passagens (sabe-se que a Biblioteca também possui em arquivo outras cartas do pintor, que poderiam oferecer pistas muito mais importantes - sobretudo as escritas ao seu amigo Frans Post, por ocasião de seu retorno a Groningen).

Há negociações ainda em andamento para a publicação integral das cartas de Eckhout a Florien van Koopmans, um conjunto de 127 missivas. Van Donzel, um dos poucos privilegiados a ter tido acesso a essa rara documentação, promete que são verdadeiras peças literárias, de conteúdo eminentemente filosófico. De acordo com van Donzel, há passagens extremamente herméticas que revelam profundo conhecimento em áreas as mais díspares, quer sejam a cosmologia e a medicina botânica. O que, ainda de acordo com van Donzel, o conjunto de cartas parece querer significar, entre outras coisas, é que os oito anos passados no Brasil mudara para sempre a vida daquele outrora pacato ilustrador.

Tudo isso é para dizer que se ainda não foi ao Instituto Ricardo Brennand, tem até o dia 24 de novembro para fazê-lo.

Beijos.

Recife, 23 de Setembro de 2002, 13:07h.

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