10.13.2009

Na Água da Retrete

Querida Florance Mont´Alverne,

O passeio que fiz ontem à noite não me revelou absolutamente nada. Saí daqui do ILTEC por volta das dez e meia e veja lá: o Bairro Alto não me parece afinal assim tão boêmio quanto sugerem. Mas talvez porque na segunda-feira o papa-açorda esteja fechado, eu não sei. O que ocorre é que eu não posso entrar nesse bar agora, porque estou só e se há algo que eu não suporto é ver a cara dessas pessoas todas olhando para quem quer que entre num bar numa segunda-feira à noite como se acompanhado de um réquiem. Verônica falou-me outro dia de uns bilhetes que podem ser distribuídos na rua, como se em época de campanha política. Um, sugere, pode ter algo do tipo "foda-se". O outro/ Já não recordo. Ah, está olhando para mim? Tome aqui um "foda-se".

Isso evidentemente aplica-se a mim também. Tem o episódio que a Rita contou-nos no jantar da quinta-feira passada que envolvia a Maria Helena. Ela entrou certo dia na sala de aula, pegou os cadernos dos que estavam na frente da sala de aula e verificou que ninguém trabalhara no problema que ela havia proposto na aula anterior. Ficou furiosa, pegou os livros todos que trouxera, jogou-os ao chão e pisou, completamente desvairada, em cima de cada um deles, gritando que assim não podia ser. Parece que teria ficado ensandecida para sempre. Saiu em transe. Poucos minutos depois voltou com um sorriso na cara que ignorava o que quer que havia ocorrido.

Mas tomei coragem, é preciso tomar coragem, e entrei no bar. Obviamente não esperava encontrar absolutamente ninguém ali, porque o Jack está viajando. Foi a Amsterdam visitar a Odileiz. Pouco importa. Afinal não estava mesmo procurando companhia; só mesmo um bom martini. Ou um martini honesto, como diz aquela senhora que visitou a antiga casa da Gal Costa e ficou encantada com o desjejum.

Não sei se já lhe falei, mas o martini lembra-me muito bem um outro tópico que tenho procurado evitar todo esse tempo. Dê-me cá os bilhetinhos de volta. Como diz aquele senhor que se levanta embriagado da cadeira e confessa o que ninguém quer saber: não há problemas em confundir os anjos com as crianças. Ele entra no banheiro e vai vomitar a noite inteira, se eu não decido intervir. Então olha para mim desesperado e enxuga as lágrimas com as costas das mãos: "o problema é que eu não sei o que fazer com todo esse amor." A cara refletida na água da retrete pode parecer engraçada, mas eu bato-lhe o ombro como quem sugere empatia.

Agora diga-me, Florance, há algo que eu não tenha percebido muito bem?

Beijos.

Lisboa, 08 de Outubro de 2002, 17:31h

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