10.09.2009

Aprendendo A Dormir Em Vôos Mais Demorados

Querida Ângela,

Pois acredite: dormi em meio ao maior desconforto possível. Há, eu fiquei sabendo, uma tal Síndrome da Classe Econômica nos vôos relativamente longos. Desidratação é apenas um dos sintomas desse mal que acomete os indivíduos relativamente fodidos nos vôos relativamente longos, como o de Recife para Lisboa. Entretanto eu pude dormir um pouco, o que definitivamente é um feito inusitado. Fechei os olhos mesmo sem sono, encostei o travesseiro no pescoço, reclinei a minha cadeira e enfiei o livro do Saramago na bolsa da cadeira da frente. Dormi o suficiente para estar me sentindo bem. Agora é assim.

Mas para que compreenda melhor, é preciso que dê um salto no tempo. Estamos na Praia de Boa Viagem. É domingo, o último domingo antes das eleições presidenciais, e aparentemente não vai haver carreata. Sentamo-nos numa das tantas cadeirinhas coloridas que ali se oferecem a troco de uma cerveja à toa, um pacote de amendoim. A discussão gira em torno do posicionamento de Kierkgaard para com as várias instituições sociais, entre as quais o casamento, e a discussão lembrou-me então aquela que tivemos eu, Nelson e Alcidésio na quinta-feira passada. Se eu era então avesso às instituições consagradas como tais, devia ser mais cauteloso quando essas envolviam terceiros. Assim, por exemplo, há gente que cria expectativa em torno do pré-estabelecido. É? Tomei mais uma cerveja; eu sabia aonde o papo ia nos levar. Sobretudo: eu sabia exatamente o que o motivara. E foi assim que tudo foi desfeito, na praia de Boa Viagem.

Mas espere, há ainda o fondue à noite no Chateau Alpino, e o constrangimento do garçon com a garrafa de vinho na mão, fingindo não estar percebendo absolutamente nada. É verdade que eu tomei conhecimento da Síndrome da Classe Econômica somente essa noite passada, mas havia sido na noite anterior que eu conhecera uma ainda mais curiosa: a Síndrome Gabriela. Aparentemente sou acometido dessa, que consiste basicamente na imutabilidade (decerto poderia também ser chamada Síndrome Joana Isabel). Quando eu vim para esse muuundo, eu não atinava em nada... Hoje eu sou Gabriela: Gabriela êh, meus camarada. Eu nasci assim, eu cresci assim, eu vivi assim, vou ser sempre assim: Gabriela!

Eu não mudo? Então por que sou eu que tenho de mudar e não pertencer à estirpe do Kierkegaard? Mas... Se há algo que realmente me deixa paralizado é a lágrima. Claro, pode parecer indiferença, mas não é. É pânico. Muito embora, talvez, há dez anos atrás, eu provavelmente ensaiasse algum tipo de consolo. Hoje estou aprendendo a dormir em vôos mais demorados.

É possível que voltemos no tempo um pouco ainda? E agora estamos em casa de minha mãe. É domingo à tarde (à noite estaríamos comendo fondue). Há algo que naquela tarde/ Eu sei que há bolo de milho; mas para além disso, algo deve ter acontecido, porque na segunda-feira pela manhã, ontem, liga-me a mãe para um discurso que dela não é típico. Tipo conselho de mãe. Conselho de mãe?! A minha mãe nunca foi de dar conselho a ninguém! Alguma coisa muito séria, para além do bolo de milho, deve ter acontecido no domingo à tarde. Ou teria sido na tarde do sábado? Está bem, voltemos então para a tarde de sábado. Eu cheguei do dentista ainda com uma ressaca imensa, e minha mãe percebeu imediatamente tudo. O que há? Precisava visitar Reinilda uma última vez antes de/ Na volta, quando cheguei e não procurei por quem quer que devia estar em casa, isso causou estranheza em minha mãe, que depois resolveu dar conselhos. De mãe.

Não, veja: o que justifiquei foi mesmo assim. A razão pela qual penso ser desimportante chorar no aeroporto é porque simplesmente o sofrimento não vale a pena, nem mesmo para mostrar o que quer que seja. Eu preciso recorrer ao sofrimento por uma razão que seja? É melhor que/ recoste a cadeira, enfie o livro do Saramago no primeiro buraco que encontrar e tente dormir. Um dia você aprende.

Beijos.

Lisboa, 01 de Outubro de 2002, 11:12h

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