10.03.2009

A Sorrir

Querida Vera,

Toda a vez é isso, desde há muito tempo, quase quinze anos, dezessete, por aí. Quando há festa na casa de Nelson, pode acontecer de um tudo; e dessa vez não teria sido diferente. De início era para ser um jantarito trivial e muito bem-comportado. Éramos apenas eu, Nelson, Maria dos Prazeres e Edna Barreto. Quero dizer, teríamos ido ao Biruta, aquele bar que fica no Pina, à beira-mar. Mas Maria dos Prazeres, excelente cozinheira, muito melhor que eu e meus livros de culinária do Sul de França, resolveu que faria o jantar; um jantar. E assim ficou combinado que seria às oito, na casa de Nelson. Como já há muito tempo sou o confessor de Nelson, e levando-se em conta que há cerca de oito meses não trocamos uma única palavra, era evidente que ele, cheio de pecados, queria que eu chegasse mais cedo. Está bem, e antes mesmo do sol se pôr.

Eu entendo tudo, sou o melhor confessor da praça; mas há quem me considere um anjo torto, eu e minha espada de fogo. Alguém vai trilhar o caminho errado? Aquele que leva à infelicidade? Eu e minha espada de fogo indicamos uma possibilidade mais redentora. É só olhar a história, ou uma liturgia católico-ortodoxa. Não importa se o que interessa mesmo são as histórias de Nelson; ele sempre tem várias, e são sempre muito boas. Ocorre que inevitavelmente inspiram as festas que hão de acontecer. E foi por conta de uma das narrativas que decidimos convidar Lourenço. Ele atende o telefone quase desconfiado, no meio de uma aula de matemática. Mas não demora muito para aceitar o convite, porque não sabe que Prazeres é a chef.

E por que não Alcidésio? Venha que venha. Edna, afinal, já havia ligado dizendo que sem Catarina não ia. Tudo bem. Mas devia ter dito isso a mim, pois que eu fui o responsável pelo evento. E já agora que sabíamos da vinda de Beto e Renato, tudo bem. Talvez Edna não fosse gostar do jantar tanto assim. Catarina decerto que detestaria. Alcidésio seria o último a chegar, porque também ensina. Inglês. Lourenço, porque costuma abandonar os alunos desinteressados por qualquer ensaio de festa, foi obviamente o primeiro. Chega e já quer música bastante alta. Ultimamente gosta do novo disco da Madonna, e é isso que vamos ouvir. Há Cake & Ed Motta; um pouco de Tim Maia & Sade. Tira a camisa, toma uma cerveja e é todo alegria quando chegam Beto & Renato.

Há algo de errado entre Beto e Renato naquela noite, devo dizer. Um certo estremecimento, talvez; embora Beto tente disfarçar, e ria, e tome mais duas cervejas. Beto sempre toma mais do que deve ou pode. Prazeres chega cheia de desculpas; o jantar estava atrasado. É uma confusão na cozinha, mas nem queremos saber eu e Lourenço. Beto procura ajudar. Renato corta uns pedaços de frango sem muita vontade.Lourenço joga cartas na sala e Madonna continua cantando: music, tra-la-lá. Agora estava ficando melhor, porque Nelson abre uma garrafa de vinho, e Alcidésio acabara de chegar.

Toda vez que há uma reunião assim, é inevitável que as recordações de como, no passado, eram nossas festas, aconteçam. Prazeres se sente perseguida pelo passado; não quer e evita o papo saudosista. Afinal, não é tão velha assim e ninguém vive do passado. Olha aquela festa! Olha a comida no fogo! Lourenço, que teria ido embora por razões óbvias, resolve que fica aquela noite. Prazeres, afinal, estava bastante agradável. E deve estar noutra para aquele brilho renovado nos olhos. Que bom para todos! Ninguém vive do passado, Prazeres estava certa. E em pouco tempo o jantar estava pronto.

Depois o vinho, e mais vinho. Acho que Prazeres estava muito bonita hoje; acho que é a roupa: essa roupa está tão bonita, Prazeres. Ela, prontamente, tira tudo, toma as maquilhagens todas da bolsa em desordem, e decide que tudo fica muito melhor em mim. Alcidésio concorda que sim, e em pouco tempo estou sendo maquiado, vestido, usado, abusado, como é a prática. É sempre assim, não tenho tempo de lutar. Há música, e mais música. Nelson pede que por favor o volume seja obedicido, por conta dos vizinhos. Já passava das duas da madrugada. Eu quero saber quem prefere sair para a saideira, um gim-tônica no Anjo Solto, uma caipirinha no Biruta, com os pés descalços na areia. Há agora aquelas justificativas todas, muitos ifs. Não fosse o trabalho amanhã, não fosse essa dor de cabeça, essa ciática. Estão todos cheios de compromissos com a ciática, esses meus amigos. Renato não diz nada, mas Renato era a primeira vez que eu o encontrava.

Beto se levanta e começa a dizer umas coisas meio sem muito sentido, eu acho. É, afinal, a cerveja que ele sempre bebe além da conta. Tem esses disparates de recitar Os Sertões de Euclides da Cunha, que sabe de cor. Não sei muito bem porque resolveu citar aquele trecho do capítulo quatro; ninguém estava mesmo prestando atenção... Renato muito menos, se era o Renato que Beto queria impressionar. Tim Maia cantava o descobridor dos sete mares. Lourenço dança muito bem, mas não sabe me acompanhar. Alcidésio é o melhor de todos. Nelson, por sua vez, dava todas as dicas de que já estávamos abusando da hora. Só notamos a ausência de Beto depois de algum tempo. Estava, como era de se esperar, no quarto, completamente sem sentidos. Aquilo indicava o final da festa. Beto regularmente acaba a festa assim.

Está bem, quem é que vai?... E eu repito o convite, sem muito sucesso. Prazeres quer ir com Lourenço, o que eu achei uma idéia péssima. Alcidésio vai dormir mesmo em Nelson. Beto continua desacordado no chão. Renato precisa ir embora. Desce as escadas em silêncio, ao meu lado. Já à porta do carro, quer saber se pode ir. Eu abro-lhe a porta e ele entra quase sem jeito. Ligo o motor, vejo no retrovisor os olhos borrados de lápis preto e é Ney Matogrosso cantando aquela música do Divino Cartola. As estradas àquela hora sempre estão vazias, mas ainda havia espaço para um gim. Dois.

Beijos.

Recife, 21 de Setembro de 2002, 12:18h

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