10.02.2009

Bildungsroman

Caro Tiago Freitas,

É estranho que o meu computador teime em exibir o horário de Lisboa. Já tentei de um tudo, mas parece que há qualquer coisa nesse novo sistema operacional que usa a esperteza de uma forma bastante estúpida. É onde vai chegar a tecnologia, eu acredito. Entretanto, é possível que esteja sendo mais inteligente do que eu suponho. Se esse for o caso, estaremos tramados.

Veja lá se percebe: ontem, depois do jantar/ Há um restaurante aqui bem perto de casa, bastante bom, que se chama O Relicário. Costumamos frequentá-lo. O que gosto nesse restaurante é que, a despeito de estar sempre vazio, a comida é muito boa e sempre fresca. Mas ontem, por qualquer razão, nada estava bom. Pedi truta recheada (eles costumam ter carnes exóticas, tais como capivara, avestruz, jacaré) e Verônica quis um penne al mare. Para beber, escolhemos, como há de concluir, um bom vinho branco. Os vinhos brancos brasileiros costumam ser "honestos" (esse adjetivo foi usado outro dia para descrever o desjejum numa pousada da Bahia que teria sido a casa de Gal Costa; um pequeno almoço honesto), especialmente os produzidos cá na Reigião do Vale de São Francisco. Experimente, por exemplo, o Casa Valduga. Ou o Miolo.

Não lembro exatamente qual foi o tópico da conversa, mas costuma girar sempre acerca das mesmas coisas. É a cumplicidade dos que já se conhecem, etc. etc. Outro dia a Henriquieta falava do Cintra e de como uma vez percebeu o envolvimento emocional dele com a Inês, já há muito tempo, por conta não de simpatias, mas exatamente do oposto. É engraçado, ela pareceu querer concluir, que muitas vezes a discussão revela/ Eu ri, e acredito ter derrubado um pouco de arroz chao-chao na mesa; é que havia lembrado do absinto em Câmara de Lobos.

Talvez eu costume ser bastante óbvio, como aquela música quase idiota; não sou muito amigo das metáforas. Verônica percebe isso muito bem, mas foi preciso cerca de quinze anos. Hoje, por exemplo, tive de ir novamente ao hospital com Lucas. Ainda tinha muito sono, por conta da vodka de ontem à noite, depois do jantar; mas Verônica acordou cedo demais. A despeito de ter voltado logo para casa, quis que eu fosse levar Lucas ao hospital porque ela precisava trabalhar nuns processos bastante complicados. Tomei o café da manhã quase caindo por sobre o prato de queijo coalho frito (uma das delícias que vais provar quando vieres aqui). Não tinha medo que eu dormisse no trânsito e acabasse com a virose de Lucas assim de modo tão trágico?

Está decidido, amanhã tem aquela homeopata, embora eu não saiba muito bem/ devo ter alguma coisa errada para ter decidido ir à homeopata. Ou não? Mas antes é preciso levar Lucas ao judô. Quando cheguei da Madeira e fiquei sabendo que Lucas fazia judô, quase tive um ataque de histeria. Judô?! Por que não balé clássico? Corte e custura? Por que essa mania de botar os meninos todos nesses cursinhos idiotas de judô? Ah, já sei, são os famosos passos em falso. Eu decididamente preciso falar/ Tem de haver um tratamento homeopático, porque assim não pode ser.

Enfim, foi divertido, o judô. Não é difícil concluir que essa decididamente não é a praia de Lucas, e ele sabe muito bem disso quando espera que o derrubem. Para ele, tanto faz. Quando senta em cima daquela lona alcochoada e aguarda que se lhe dê uma ordem, deve provavelmente estar se perguntando o que faz ali. Provavelmente acha divertido, mas uma diversão que dispensaria. Um dia há de decidir. O que realmente me diverte nesse ambiente de escola são os adolescentes. Ainda preciso escrever qualquer coisa sobre o oitavo ano. B. Era um de meus projetos, que ficou/ Não ia ser para adolescentes, mas sobre, sem cair na baboseira do/ ia ser algo como um romance do tipo Bildungsroman, dos quais fazem parte o Wilhelm Meisters Lehrjahre, de Goethe, aquele de Joyce, e o nosso conhecido Die Verwirrungen des Zöglings Törless. Mas, ao contrário de enfocar uma única personagem, enfocaria um grupo. Foi assim que pensei em fazer o meu Bildungsroman, embora tenha escrito naquela altura um chamado Meio.

Petrônio tem uma cara de Júlio, que lembra o José Darwin. Quando abre a porta, agora com os cabelos curtos, é como se dissesse qualquer coisa que não consigo perceber. Eu disse ontem a meio de uma vodka o que eu tinha a dizer, mas ela riu incrédula. Aproveito para pedir outra vodka; não sei se vai ter dança hoje à noite. Lembra de que lhe falei sobre a Edna uma vez? Deve lembrar; a que ia dormir em minha casa. Hoje vou encontrar/ devo encontrar também Prazeres. O nome é sugestivo, mas ela apenas chegou a dançar Billie Holiday comigo, numa festa com Martini, há doze anos atrás. A fita eu tinha roubado de uma dessas lojas do tipo Corte Inglés, algo do tipo. Era tão romântico ser shoplifter depois de ter lido André Gide... Há doze anos. É claro.

Um abraço.

Aldeia, 19 de Setembro de 2002, 15:46h

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