10.01.2009

Volúpia Ou Virtuosidade

Querida Margarita,

Atrás do mundo em que vivemos, bastante lá atrás, em último plano, existe um outro mundo; a sua relação recíproca é semelhante à que existe entre as duas cenas que por um momento vemos no teatro, uma por detrás da outra. Olhando por uma leve cortina, distinguimos como que um mundo de plumas, mais leve, mais etéreo, de uma outra característica que a do mundo real. Muitos daqueles que perambulam em carne e osso pelo mundo real não lhe pertencem, mas sim ao outro.

Telma preferiu não ir ao chá, porque era isso exatamente o que eu estava planejando lhe dizer; ia ser um chá de senhoras inglesas, com toda a discussão filosófica que Telma aprecia. Isso porque Telma é a mais comportada de todas as minhas amigas. Ou pelos menos é agora. Detesta que eu mencione os dias da graduação, é claro, as tardes nas salas vazias da universidade em que/ Nunca contei, mas conheci a Telma na situação mais insólita possível. Vejamos se lhe interessa, porque talvez prefira pular um parágrafo. Ou dois.

Telma começou por fazer latim com aquele professor ex-padre, um professor com cara de pastel frito. Era evidente que ele exalava lascívia; devia dizer as mais altas pornografias na cama na língua de Ovídio. O curioso disso tudo é que éramos poucos naquela aula de horário pouco ortodoxo, e a Telma lá estava, com aquele seu ar immutabilis. Telma era a virtuosidade. Não mudava nunca. Não ria, Telma não ria. Parecia uma daquela modelos num anúncio de Martini. Já no terceiro encontro eu estava absolutamente apaixonado. Nunca percebi muito bem porque ela deixou de ir para as aulas de latim; deve ter sido por conta do padre, uma cantada do padre.

O que lembro mesmo foi ter ficado desesperado; lembro que roubei impressos da biblioteca central; lembro que escrevi um poema com versos brancos mas espaço limitado, e assim precisava do raio da métrica, cinco, seis, sete. Claro está. De facto. Ocorre que ainda assim/ Não sei ao certo se Telma chegou a ler o poema, mas isso já não importa. Depois ficamos amigos, e depois são os dias na faculdade e nas salas de aula vazias, dos quais ela não gosta de lembrar hoje, de volta aos dias de latim. Talvez por isso tenha procurado ao menos cinco justificativas para desmarcar o chá. Eu tenho a impressão de que Telma tem medo de mim. Não porque eu meta-lhe medo; na verdade ela tem medo dela mesma, através de mim, ou do que eu possa inspirar nela.

Ontem estávamos eu, a Verônica, a Bárbara e a Sofia Valente tomando um Smirnoff Ice naquele bar que sempre costumamos ir, e eis que aparece a Joana (não a Joana Mendes; a Joana Machado). Eu reparei que ela chegava já mesmo de uma distância de cerca/ uns cinquenta metros. Tenho a certeza de que teria vindo me cumprimentar se não tivesse visto a Verônica. Entretanto lá estava eu a jogar um jogo qualquer que consistia em tentar adivinhar as horas. Verônica insistia que eu estava olhando para o relógio da Bárbara ou da Sofia; eu negava. Como continuasse a insistir, confessei que estava mesmo olhando para a Joana Machado, ali adiante. Isso, é claro, foi o suficiente para estragar o resto da noite, porque Verônica saber perfeitamente que a Joana Machado é bem o tipo de rapariga que me atrai. Seja como for, a Joana estava desacompanhada, o que certamente significa qualquer coisa que preciso investigar. Nunca soube ao certo o que ela teria visto naquele branquelo doente com quem anda. Quero dizer, a Joana com aquela pele tão linda e bronzeada; quero dizer, não é preconceito, é mesmo uma certa indisposição só de pensar naquela víbora quase traslúcida sem roupa. Ademais, deve ser um zero na cama; alguém com aquela cor não pode ser/ Olhaí, não é preconceito. É que o rapaz tem mesmo uma cara de quem curte mesmo um bom futebol, uma corrida de moto.

Não sei se devo telefonar para a Joana (o papelito ainda anda em minha carteira), ou se procuro remarcar o chá com a Telma. A volúpia ou a virtuosidade, numa ordem que ainda não sei. Ou ambas as coisas?

Beijinhos.

Recife, 18 de Setembro de 2002, 18:40h

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