10.18.2009

Um Forte Sabor de Anonas Frescas

Caro José Lourenço,

A Síndrome de Aabye-Haufniensis é um possível distúrbio do cérebro, que, de acordo com a literatura, causaria o deterioramento progressivo das células, resultando na irreversível degeneração dos neurônios. Tem descrição relativamente recente, e é ainda alvo de acirrado debate e muita controvérsia. Dois médicos dinamarqueses - Dr. F.C. Sibbern e Dr. Poul Martin Møller -, trabalhando de forma independente, fizeram as primeiras descrições do mal em 1979. Entretanto, somente dez anos depois é que puderam apresentar à comunidade científica dados suficientemente plausíveis para validar o achado de 1979. O artigo "Aabye-Haufniensis Syndrome: further evidence of autosomal recessive inheritance", publicado no Danish Journal of Medical Sciences (30:234-236), causou furor entre os especialistas em genética disfuncional, gerando uma série de respostas em formas de artigos publicados nos mais renomados jornais acadêmicos, entre os quais o Clinical Genetics, o Schweiz med Wschr e o Klin-Monatsbl-Augenheilkd.

Uma entre as várias controvérsias consiste na validade dos casos estudados. Segundo os geneticistas K. Van den Abeele e M. Craen, os procedimentos utilizados por Sibbern e Martin Møller para a descrição da síndrome são questionáveis, por razões de ordem metodológica (os detalhes, aqui irrelevantes, podem ser consultados no jornal Medizinische Klinik 92: 175-178). Dr. Weichenhain, por outro lado, e para exemplificar a multiplicidade das críticas geradas a partir dos estudos de Sibbern e Martin Møller, sugere que muitas das características da síndome listadas pelos médicos dinamarqueses são, na verdade, sintomas de distúrbios psíquicos já amplamente documentados. O fato dos sintomas serem acompanhados por uma degeneração de células não querem significar absolutamente outra coisa senão uma possível coincidência, sugere Dr. Weichenhain. O grande problema nos estudos até agora publicados no que concerne a Síndrome de Aabye-Haufniensis é sobretudo o número de elementos estudados. Desde os primeiros casos até os dias de hoje, somente 17 pessoas teriam desenvolvido os sintomas que Sibbern e Martin Møller relacionam à Síndrome de Aabye-Haufniensis. Não bastasse isso, todos os indivíduos considerados tiveram mortes súbitas e absolutamente inesperadas, que em nada se relacionaram com a possível doença que lhes acometia. Em outras palavras, nenhum dos pacientes estudados por Sibbern e Martin Møller chegou a desenvolver plenamente os sintomas da Síndrome de Aabye-Haufniensis. Assim, tudo não passaria de especulações.

A Síndrome é descrita como uma doença progressiva, apresentando alterações significativas da memória recente, do aqui agora e, mais tarde, outras alterações, entre as quais destacam-se:

- Incapacidade de raciocinar, de compreender, de fazer juízo das coisas.
- Dificuldade de percepção dos órgãos dos sentidos. Dificuldade motora.
- Agressividade e alterações de personalidade, com distúrbios de conduta.
- Dificuldade em reconhecer os próprios familiares e até a si próprios, quando colocados frente a um espelho.
- Gradual ou súbita diminuição da habilidade de entender e usar a linguagem falada (os pacientes costumam confudir o que pensam com o que de fato chegam a pronunciar).
- Alucinações, auditivas, visuais, tácteis, olfatórias, gustativas, cenestésicas e cinestésica.
- Distorção da realidade factual. É possível que os pacientes passem a encarar a realidade de um modo paralelo ou virtual.
- Subversão de valores morais e éticos vigentes, que, muitas vezes, vem acompanhada do quadro crônico típico da esquizofrenia, geralmente conhecido por «Sofrimento Moral».

O caso-estudo clássico, citado no artigo de 1992 "Klinischer Beitrag zum Aabye-Haufniensis Syndrom", de J. Schrezenmeir, é o da alemã Berta Hochstrasser. Acordou numa manhã de doze de junho julgando estar apaixonada pelo irmão mais novo, embora não quisesse reconhecer a possibilidade de que aquele sempre fora o seu irmão. De início, usava argumentos absolutamente lógicos e subversivos para convencer a quem quer que fosse que a sua paixão nada tinha de condenável. Em pouco menos de dois anos, passou a ter alucinações frequentes, seguidas de delírio, vômito, perda de cosciência e débil locomoção motora. Entre os relatos de alucinações, estava o de que era perseguida por estranha e rútila aparições, acompanhadas quase sempre por um forte sabor de anonas frescas e o doce tilintar de chaves. Em pouco tempo passou a falar por parábolas. Depois usava palavras soltas e aparentemente desconexas. Por fim, era toda reticências. Causava grande impressão o fato de que, em frações de tempo, pudesse ela migrar do mais incômodo sofrimento até as raias da felicidade absoluta. Foi o mesmo irmão de Berta, depois de ter lido uma nota bastante pequena num jornal de circulação local acerca da Síndrome de Aabye-Haufniensis, que resolveu levá-la até o Hospital Universitário de Mühlhausen, onde trabalhava o Dr. J. Schrezenmeir, pioneiro nas investigações desse mal na Alemanha. Antes de fazer os testes genéticos que confirmariam a suspeita do Dr. J. Schrezenmeir, Berta Hochstrasser jogou-se da varanda de seu apartamento, porque estava certa de que podia voar. De fato, voou. Mas esse foi o fim de um estudo que poria termo a toda a controvérsia acerca da sanidade do mundo em que vivem os outros.

Um abraço.

Lisboa, 15 de outubro de 2002, 11:55h

Sem comentários: