3.17.2008

Uma opinião fonológica sobre o Novo Acordo

Ouvir!Como jovem aprendiz de fonologia, que é a arte já bem antiga de compreender e explicitar as relações entre os sons, é natural que as pessoas me perguntem o que é que eu penso da aprovação do novo acordo. Pois vou dizê-lo, então, e vou dizê-lo provavelmente ofendendo uma velha tradição (ou pelo menos uma tradição instalada entre os linguistas no século passado) que é a de que os linguistas são pessoas de índole permissiva, portanto anti-conservadora, e que por natureza toleram tudo. Mas vou dizê-lo com as letras todas: ACHO QUE O NOVO ACORDO É UMA BOA MERDA. E já agora explico porquê.

Falam da unificação da escrita Portugal-Brasil, mas afinal eletrónico e eletrônico vai continuar a escrever-se de modo diferenciado. Ora, se há coisas que de facto fazia sentido mudar na escrita do português, uma delas é com certeza a acentuação das esdrúxulas: devia deixar de existir. Não só isso é uma indesejável marca de diferenciação nas ortografias de Portugal e Brasil, portanto contrária ao espírito de unificação que tanto apregoam, mas é também uma marca completamente espúria face a palavras como pudico, que ninguém no seu perfeito juízo pode acentuar na segunda sílaba, período, que já quase toda a gente do PE deixou de acentuar no i, e rubrica, entre muitas outras, como os célebres casos túlipa e tulipa, alcoolémia e alcoolemia, nomes próprios como Flórida e Florida, und so weiter.

Quer dizer, as coisas que deveriam ter sido subespecificadas na nova escrita (pensando naturalmente subespecificação como uma forma de alcançar neutralizações representacionais desejáveis), com o novo acordo, como essa história das esdrúxulas, afinal continuam a escrever-se de maneira diferente em Portugal e Brasil, e aquelas que são realmente úteis, como o diacrítico trema, que é importante para as pessoas saberem se devem dizer tranq[u]ilo ou não, deixam de existir. Ora bolas!

Já a anterior resolução tinha sido destrutiva no sentido em que acabava com o acento grave de pàdeiro e frèguês, também útil por exemplo para os estrangeiros que agora têm de aprender a nossa língua, e deixava todos esses casos de marcação fonolexical ao critério da consciência e lembrança étimo-morfológica dos nossos falantes.

Agora vêm estes acordadores e põem-se a tirar os cês e os pês das palavras escritas, se as pessoas assim o quiserem, consoante a pronúncia contemplar essas articulações ou não. Bom, se é para termos uma escrita fonética, ou remotamente baseada na fala real das pessoas, então mais vale que palavras como couro passem a ser escritas como coro, visto que ninguém do Norte para baixo lá põe um [u] na pronúncia. E, já agora, mais valia também acabarmos com esta história de escrevermos paço e passo de modo diferenciado, já que também praticamente nenhuma pessoa produz o primeiro com uma sibilante apical. Que se escreva portanto paso independentemente de ser uma coisa do andar ou uma coisa do concelho. Já agora, também não vejo nenhum problema em escrever conselho quer se trate de uma região quer se trate daquelas coisas que nem sempre gostamos de ouvir dos amigos. Quer dizer, só pessoas com uma consciência fonológica muito pouco desenvolvida é que ainda não repararam que o português tem milhares de homógrafos e homófonos. Sim, e entre esses estão aqueles que no passado se puseram a dizer que teriam muitos problemas em escrever cágado como cagado. E aos opositores de uma grafia como paso responderia eu que também já é tempo de se acabar com a distinção entre palavras como vasa e vaza, já que serão igualmente residuais (pensando pelo menos em termos de estatística geral do português em todos os seus continentes) os falantes a produzir uma sibilante apical vozeada.

Eu por mim, que não percebo quase nada de fonologia, acho que na verdade a ortografia poderia muito bem ter ficado mais complexa, e que se poderia ter reposto por exemplo os antigos acentos graves de sòmente e sòzinho. Quer dizer, se a escrita alfabética é por natureza um sistema de representação fonológica que foi evoluindo ao longo dos tempos como forma de explicitação do conhecimento linguístico (e passou a haver espaços para marcar a fronteira entre as palavras, passou a haver diacríticos para marcar proeminências e outras coisas, passou a haver pontuação e parágrafos para estruturar a informação discursiva), então não vejo razão para que não se torne agora mais complexa, numa altura em que já quase toda a gente está alfabetizada (ou pelo menos os índices assim o indicam, independentemente de as pessoas serem
ou não mais letradas).

Ou então, se é para simplificar as coisas ao máximo, que se deixe de escrever os acentos e as cedilhas e essas porcarias todas, como acontece no inglês e passou a acontecer no alemão, e aliás como as operadoras de comunicações em Portugal cedo decidiram fazer, visto que poucas serão as pessoas neste país que conseguirão mandar SMSs com esses obsoletos diacríticos.

Sinceramente sinceramente, e realmente ofende-me um bocado ser conservador neste sentido, não vejo razão nenhuma para deixar de escrever como escrevo. Muitas inovações são boas, e são boas por exemplo porque representam o progresso do conhecimento. Ora, eu não vejo como este novo acordo reflecte as inovações que se têm feito no conhecimento fonológico do português em nada. E se ainda há tão pouco tempo houve tanta gente que se virou contra a TLEBS (muita dela gente que não percebe patavina de gramática ou de linguística, como o RAP e o VGM), que é de facto um documento inovador e que acompanha muitos dos progressos vividos na linguística das últimas décadas, não percebo sinceramente porque é que não há agora uma vaga desse tipo a atacar o novo acordo. E chateia-me ter de concordar com o VGM em relação a isto.

Apregoo, portanto, o aumento dramático dos homónimos do português, que seria a chamada solução radical, ou a complexificação do actual sistema de escrita, tendo em conta a evolução do saber fonológico que entretanto se verificou. Mas prefiro a primeira, de facto, porque poderá vir a facilitar em muito alguns tipos de expressão artística.

E que se unifique, sim, mas de uma forma inteligente e intuitiva. Pois se somos dois e vamos vivendo os nossos dias com isso, dois seremos até prova de que a unificação está conforme as nossas expectativas linguísticas e a nossa inteligência fonológica.

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