Não foi no Porto Santo que desembarcamos logo de pronto, como fizeram João Gonçalves Zarco e Tristão Vaz Teixeira, embora eu pensei que seríamos jogados ambos ali mesmo, nas areias aparentemente vazias da Ilha Dourada. A aterrisagem no aeroporto da Madeira é como se estivéssemos pela primeira vez nos aproximando da Ponta de São Lourenço, sem a certeza de que o mundo não é plano. Era o dia Primeiro de Agosto, mas não de 1419. Ainda assim, comecei a descobrir a Madeira.
O Angelus estava visivelmente preocupado, embora comesse chocolate durante todo o percurso para sequer tocar no assunto. Eu olhava através da janela, fingindo não estar entendendo absolutamente nada. O Pedro nos aguardava com uma cara meio cansada de quem passara o dia no trabalho; levou-nos até a casa onde ficaríamos os dois. O Angelus falava muito pouco, mas o Pedro não parecia estar incomodado, ou parecia estar esperando por isso. Deu-nos a chave do carro quase rindo, e saiu no escuro. A porta rangeu um pouco antes de fechar, e era o silêncio de uma casa enorme e vazia.
O meu quarto ficava no final do corredor. Numa das janelas podia-se ver o Funchal e o mar à noite. A outra dava para o nada. Eu obviamente não quis fazer a pergunta que o aposento já respondia: ali tinha sido o antigo quarto de André. Desse assunto nunca falamos. Tudo parecia estar intacto, como havia sido deixado há quase dez anos. Mas sem vestígio sequer de pó: o quarto era visivelmente asseado todos os dias, possivelmente sob a supervisão do Pedro.
Eu trazia apenas uma mala, aquela que o Manuel me emprestara para ir à Itália. A mala, que nunca chegou à Itália, era de bom tamanho para o que eu carregava agora. Se calhar, devia ter pedido permissão ao Manuel. Mas a viagem, essa viagem, ensinou-me entre outras coisas que nem sempre pedir permissão justifica por si só o ato de fazê-lo. Isso logo se explica. Agora mesmo o que interessa é saber como fazer para tirar o Angelus daquele estado de desassossego. Ou de letargia. Não passava das dez da noite. O quarto já estava mergulhado numa penumbra de melancolia. Procurei o abajur num dos cantos da parede e a luz, fraca, incidiu sobre uma estante cheia de livros. Os livros, a maior parte de poesia, não me despertaram a atenção. No topo da estante, quase esquecidas de tão altas, umas caixas, que diziam apenas: escritos. Eram talvez dez, doze caixas amontoadas sem muita ordem, a não ser pela numeração: I, II, III, IV...
Aqui entra o Angelus, perguntando se não era uma boa idéia ir ao centro para comermos qualquer coisa. Eu, claro, disse que sim. E saímos os dois.
8.01.2009
Madeira
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