Já li alguns relatos de mochileiros na Europa com alguma curiosidade, mas nunca havia antes tentado uma aventura dessas. Eu, como o Angelus, prefiro mas o conforto de quartos limpos e fartos desjejuns. Entretanto, achei apropriado experimentar a vida dura de mochileiro na Irlanda do Norte, o país mais pobre do Reino Unido. Aqui o relato há de servir como guia; anotem tudo - atenção.
Primeiro é buscar uma passagem de avião muito baratinha, porque não dá para chegar na Irlanda do Norte de outra maneira. Quer dizer, até dá. Mas aí vai sair bem mais caro e vai tomar muito mais tempo. Ninguém quer nada disso, nem eu nem mochileiros. A Ryanair oferece umas pechinchas imperdíveis. Tipo, se mora o leitor na Escócia, paga oito libras e, porque é nova a rota, vai até o aeroporto - de qualquer parte da Escócia - de graça. Sim, de graça. Ora imaginem que para ir de Edimburgo para Glasgow paga-se muito mais.
Depois é preciso pensar onde ficar. Há umas duas ou três pousadas da juventude em Belfast. Fique na mais barata delas, que há de custar oito libras por noite (atenção - o mesmo valor que pagou para ir e voltar para a / da Irlanda do Norte a partir da Escócia). É um quarto pequeno, escuro, onde se amontoam 11 beliches, ou seja, 22 camas. Os tipos no quarto são estranhos e vários: desde turistas franceses gripados a trabalhadores braçais de sítios mais ao leste. Numa das camas estava uma velhinha estrangeira que falava um inglês muito precário com o possível filho. Nunca cheguei a entender muito bem aquilo, porque se eram estrangeiros e possivelmente parentes, valia mais a pena falar em grego. De madrugada a velhinha vai-se acordar e dizer ao filho (um homem já para lá de seus quarenta anos) que ele devia ir para a escola. "Cale a boca" - dizia o grego em um inglês de quem nunca foi para a escola mesmo. "Você cale a boca" - respondia a velhinha muito irritada, ainda em inglês. Ninguém reclamou dessa conversação às três da madrugada. Os mochileiros devem estar acostumados a todo tipo de vida, ou são simplemente uma categoria muito polida
Esse episódio há de ser à noite. Como hás de chegar em Belfast lá para a hora do almoço, aconselho-te que faças um percurso a pé pelo centro, que é compacto e giro. Aliás, aproveito agora para dizer que achei o centro de Belfast muito mais interessante que o centro de Dublin. Quer dizer, basta ver o movimento em frente à prefeitura e não há de ser difícil chegar à mesma conclusão que cheguei. Quantos jovens ali! Uns tantos. Todos em grupos, conversando não se sabe o quê. Já isso por si só dá uma alegria sem tamanho. Depois, bem à frente da prefeitura, está a Estrada Real, cheia de lojas e mais jovens. Sim, os jovens estão por toda a parte. Sobretudo no Waterfront Hall, que é uma zona curiosíssima. Ali a coisa que se vê em frente à prefeitura é mais séria e muito mais organizada. Os jovens ali são meio barra pesada, mas muito na deles. Se tiver medo, é voltar em direção ao centro. Nessa altura, aconselho-te já a dar uma breve paradinha no tradicional pub The Kitchen Bar e tomar uma Guiness.
A Estrada Real leva até uma praça curiosa, a Writer's Square. Pequenina a praça, cheia de estranhas esculturas e florinhas coloridas. Ali perto está a biblioteca central, um prédio de arquitetura vitoriana imponente. Em termos de arquitetura, Belfast não oferece nada de especial. No entanto, é preciso ver o Crown Bar. Toda a gente vai recomendar o Crown Bar, com sua entrada peculiar de azulejos verdinhos, amarelos e o quê. É obrigatório. Tentei ir lá duas vezes para tomar uma cerveja, mas o lugar está sempre cheio. Muito cheio. Ademais, lá dentro estão todos acompanhados e felizes.
Há um mito vigente (na Escócia pelo menos) de que os irlandeses são muito camaradas, acolhedores, bonacheirões. Aproximam-se com curiosidade dos estrangeiros e oferecem sempre um sorriso. Acreditam em gnomos e fadas. Muitos acreditam também em Deus. Toda a gente sabe que a religião na Irlanda do Norte é um tema delicadíssimo, e eu prefiro cá meter-me com as fadas, que são muito mais fiches. Basta conversar com o John, no pub ao lado da pousada. Ele explica tudo. Não cometa, no entanto, o gravíssimo erro que cometi e, em suas generalizações - ainda que inocentes, chame o John de irlandês. Ele há de virar-se, um bocado ofendido, e replicar: "sou britânico". Por mim, fosse leprechaun, daria na mesma.
Uma dica para o domingo. Acorde-se cedo e finja estar esperando algo no saguão da pousada, como estão uma dezena de outros hóspedes. Preste bem atenção ao que dizem. Se tiver sorte, pode ser um grupo de turistas pronto para embarcar numa dessas centenas de viagens organizados para a Giant's Causeway. Se não tiver nada programado, junte-se a eles. Entre no ônibus como se fosse parte do grupo e vá para a Giant's Causeway de graça - porque um bom mochileiro tem de encontrar alternativas sempre muito baratas para tudo. Quanto mais baratas, melhor. A Giant's Causeway não chega a ser nada que valha o conto, mas é de graça uma experiência espetacular. Depois o ônibus, de quebra, há de fazer uma parada em Derry, cidade cercada por um muro imenso, cuja graça varia de acordo com o sol e a disposição de quem a visita.
O ônibus volta somente ao fim da tarde. Dá tempo de trocar a roupa e ir para a noite de Belfast, que é bastante agitada.
Se sobrar uma manhã, visite a região mais ao sul da cidade, onde fica a universidade. O prédio central da Queen's University é bonito. Ali perto fica o Parque Botânico, que vale uma espiada. Depois, por trás da universidade, está a animada Botanic Avenue, com bares, restaurantes e cafés, barbearias e lojas exotéricas muito instigantes. Teria passado a noite anterior aí, que deve ser muito mais interessante que no centro da cidade. Entretanto, isso há de ficar para uma próxima vez, quando voltar sem mochila.
3.22.2008
Irlanda do Norte
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