8.20.2009

Como Fumo

Quando os mouros conquistaram aos cristãos as terras que hoje constituem a Espanha e Portugal, nove bispos partiram de barco em direção ao ocidente numa viagem que durou bastante tempo. Ao encontrarem uma ilha que lhes pareceu habitável, aportaram e, sendo conhecedores das artes mágicas, encantaram o lugar para que não fosse descoberto enquanto os mouros não tivessem sido expulsos da Península Ibérica. Daí em diante, os mouros diziam que para o ocidente havia tanta escuridão que era impossível seguir além. Se algum marinheiro chegava perto da ilha dos nove bispos, levado pelo acaso, não conseguia mais do que entrevê-la, pois logo um vento irresistível o atirava na direção contrária, um nevoeiro se interpunha ou simplesmente a ilha se desvanecia como fumo.

Encontramos Pedro e Tia Eva na Praia das Palmeiras, onde tomamos café e discutimos o Saramago. Estava vento. Tia Eva decidiu fazer um almoço de despedida. Seria milho - uma espécie de papa quente, bastante grossa, feita à base de milho branco - e peixe espada preto para acompanhar. Paramos numa horticultura para comprar vegetais frescos e, já de caminho para casa, Angelus mostrou-me o sítio onde as pessoas costumavam ir, no Funchal, quando queriam se suicidar.

Depois do almoço que a Tia Eva preparara tão amorosamente, Angelus sugeriu que déssemos mais uma volta ao Funchal. Achei ótima a idéia, sobretudo porque queria rever a orla marítima, e tomar Brisa Maracujá na Praça do Anfiteatro. O passeio foi longo e conversamos todo o tempo sobre coisas tão triviais quanto o que eu fazia aos sábados, durante a noite, quando tinha dezoito anos. Encontramos no caminho uns amigos de infância do Angelus, e ele parecia tão feliz em poder revê-los... Os bares fechados traduziam já melancolia. Aquilo tudo ia-me fazer falta, decididamente. Afastei a garrafinha de Brisa Maracujá e perguntei, quase como quem dispensa um devaneio: «vamos?»

Desci com as malas e ficamos no terraço, esperando Pedro. Angelus foi à adega e trouxe uma das garrafas de vinho madeira de safra especial, que me ofereceu como se fosse algo que fizesse habitualmente. Eu não sabia como agradecer, e somente balbuciei algumas palavras formais. Mas era todo contentamento. No carro, a caminho do aeroporto, eram os olhos da Felippa, as mãos retas e firmes de Tia Eva, o cabelo em chamas de Sara, o sorriso da Paulinha, a presteza de Pedro, o corpo esguio de Sebastião, os cadernos de André, a simplicidade de Tio Genaro, a beleza de Tia Valentina, o transtorno de Angelus: a ilha, a ilha.

O vento soprava com bastante força, e eu temia que talvez o vôo fosse cancelado. E se fosse cancelado para sempre? Dentro do túnel, pensei que podia gritar. Não conseguia ouvir o que Pedro estava tentando dizer. Ele gesticulava como se explicando a razão de qualquer coisa. Eu queria gritar, por um motivo qualquer que já não recordo. Talvez quisesse pedir que voltassem, que tinha esquecido... os bilhetes, por exemplo. Eu olhava para Angelus, olhava para Pedro quase com aflição. Mas havia luz logo adiante, e o avião partiu na hora certa.

Fechei a cortina, e recostei-me na cadeira, de olhos fechados. A última coisa de que me recordo é a imagem da ilha se desvanecendo.

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