8.19.2009

Absinto

«Como assim avançados?» Angelus parecia incrédulo, ultrajado, furioso. «Acha que não vamos pagar?» O motorista de taxi nem se deu muito ao trabalho de responder, apenas repetiu o que tinha dito, como se já tivesse acostumado com o tipo de reação: «Para ir à Câmara de Lobos são dez contos avançados.» Aquela tensão ali dentro do taxi. «Raspem-se,» ordenou Angelus, gesticulando para que saíssemos do carro o mais depressa possível. Paula tinha um sorriso desenhado nos lábios, insinuando que já esperava aquilo. Felippa fez um comentário qualquer acerca da indelicadeza dos taxistas no Funchal. Paula, com as mãos nos bolsos, o ombro encolhido, o meio-sorriso ainda na cara, queria saber como íamos fazer agora. «Então, por exemplo, podíamos tomar um autocarro.»

Chegamos à Câmara de Lobos por volta de onze. Havia muito pouca gente nas ruas. Como aparentemente íamos a um lugar certo, caminhávamos com a naturalidade de quem volta para casa. Felippa falava muito timidamente acerca de Oscar Niemeyer, por quem nutria grande respeito, etc. Paulinha queria saber se ela conhecia alguma outra coisa do "Oscar" que não aquele prédio no centro do Funchal. «O Angelus, por exemplo, já esteve em Brasília. Não esteve, Angelus?» Eu não sabia muito bem como fazer para sugerir que podiam falar do Taveira, se lhes apetecessem, porque eu mesmo pouco sabia a respeito do Oscar e jamais pisara em Brasília, por exemplo. Mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, já estávamos sentados, pedindo quatro ponchas de absinto.

O absinto teria sido inventado nos idos de 1792 por um médico francês chamado Pierre Ordinaire. Era comercializado como um desses compostos que serviam para curar de um tudo, tendo, por conta disso, passado a ser conhecido como a fada verde (devido à sua tonalidade esverdeada). Destilados, seus ingredientes compõem-se de anis e de uma diversidade de ervas, em que se destaca o artemisian absynthum, uma substância alucinógena. Por causa disso, a bebida foi banida de toda França em 1915. A medida se estendeu a vários outros países e ainda hoje vigora na maioria deles. Sua venda na Europa está liberada apenas em Portugal e na República Checa.

Angelus assistia à televisão com um certo interesse no filme que a Felippa recomendara. Felippa comentava algumas das cenas, mas não queria soar convincente. Paula falava do Cronemberg. Felippa levava o copo aos lábios, sorria vagamente, tomava mais um pouco, os olhos escuros que não evidenciavam entusiasmo. Paula tomava a poncha de meu copo e perguntava se não íamos pedir mais. Angelus parecia não perceber o que quer que a Felippa estivesse sugerindo. Paula olhava ora para o meu copo vazio, ora para mim, ora para a Felippa; pedia mais uma poncha. Felippa passava o dedo na borda do copo, completamente absorta no esforço que Angelus fazia para perceber um possível sentido naquilo tudo. E uma mão na minha perna. Os olhos da Paula agora eram o dedo da Felippa na boca. Angelus queria desistir, queria outra poncha. Felippa sorria vagamente. Paula segurava o copo. Umas pernas sob a mesa, uma alegria esfumarada e a hora de o bar fechar as portas.

Quando saímos, Paula era evidentemente a mais cambaleante de todos. Entretanto, parecia estar absolutamente à vontade. Angelus comentava o filme, Paula dependurou-se no meu pescoço para confidenciar que detestava aquele filme, embora gostasse muito da Felippa. Felippa não parecia ter respostas para as perguntas que o Angelus sugeria.

"Não há taxis," anunciou Angelus ao fim de alguns minutos de espera ali na rua vazia. Paula ria como rira quando Angelus nos tinha feito sair do taxi naquela mesma noite. Os ônibus também já não circulavam. Paulinha, os ombros encolhidos, queria saber como íamos fazer agora. Logo adiante, um letreiro luminoso: Hotel Belle Époque.

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