8.17.2009

A Flor do Mal

Quinta-feira. Aquele seria o penúltimo dia na ilha e eu já estava começando a pensar no que ainda não tinha feito. Assim, por exemplo: não tivemos tempo de ir ao Jardim Botânico. Quando saí do quarto, quase guiado pela música do Lully, Angelus anunciou que o pequeno almoço já estava servido. Tia Eva tinha decidido fazer uma surpresa e, além de um jarro com três massarocos em flor, colhidos ao jardim da casa de Angelus, tinha disposto na mesa da varanda um cesto de pão fresco, algumas anonas e geléias variadas que ela mesma tinha feito. O bilhetinho por baixo do cesto de pão era de Pedro, e dizia que logo mais à tarde iríamos todos à Lagoa do Vento. Sugeri a Angelus que convidássemos a Paula e a Felippa.

O Jardim Botânico ficava perto de onde estávamos. Originalmente idealizado pelo britânico J.R. Theodor Vogel em 1841, mas somente levado adiante pelo alemão Frederico Welwitsch em 1852, e finalmente concluído sob a coordenação do naturalista português Barão Castello de Paiva em 1855, o Jardim Botânico da Madeira possui hoje mais de 2000 plantas exóticas, oriundas de todos os Continentes, e organizadas de modo bastante criterioso em seus 35 000 m2. Uma das preciosidades de seu acervo é mesmo a estranhíssima Amorphophallus titanum, que em português recebe o nome bastante sugestivo de flor do mal. Originária das florestas tropicais da Indonésia, essa é uma raríssima espécie que pode atingir até 5 metros de altura e 3 de comprimento. Descoberta em 1879 pelo botânico italiano Odoardo Beccari, a flor do mal é assim conhecida por emitir um intolerável odor de carne em putrefação. O odor serve para atrair insetos, que a polinizam. Curiosamente, apesar de levar até sete dias para desabrochar por completo, depois de totalmente aberta a flor vive por um período de no máximo 24 horas.

Sentamo-nos ao pé de um jacarandá e perguntei a Angelus se ele conhecia os
versos: enquanto os sapatos/ descansam/ em baixo da cama é o sol/ por sobre as cobertas/ azuis da cor de manhã/... vazia a garrafa/ de água e sede/ vazia de sede e sede/ de copo/ vazio de planta/... em cima da cama/ e das prateleiras e/ mais prateleiras e/ mesa e sofá/ repousam descansam/ os livros vazios/ de discos vazios um/... enquanto lá fora/ o pano que seca/ o sol que insiste... Não lembrava do poema por completo, e ia soltando os versos como o vento que trazia as folhas secas do jacarandá.

Por um instante pensei que talvez tivesse arruinado os últimos dias das férias. Angelus respirava tal qual uma Amorphophallus titanum desabrochando. Buscava uma maneira adequada de abordar o assunto. Eu teria o direito de ter feito o que fiz? Agora estava feito e já não valia a pena fazer conjecturas éticas. Entretanto, ele parecia pronto para discutir o inevitável. Seria aquela a primeira e muito provavelmente a última vez que Angelus mencionaria o André. Ele me encarou como se permitisse perguntar o que quer que eu intencionasse saber. A minha curiosidade irmã das cotovias...

A série de patamares que compõe o Jardim Botânico está distribuída de acordo com afinidades geográficas e/ou familiares das espécies que ali se encontram. Já na entrada estão as plantas exclusivas da Macaronésia, com um mostruário da flora endémica da Madeira, única em todo o mundo, incluindo as árvores mais representativas da sua floresta natural, a Laurisilva. Descendo um nível, o cenário muda por completo: é a vegetação do deserto, composta por xerófitas, tais como os cactos e as bromélias. Logo abaixo, a vegetação das florestas tropicais e semi-tropicais. Era onde estava o nosso jacarandá, que só vai voltar a florir em Março. Um pouco mais adiante, a estufa com a famosa flor do mal. Embora a espécie ainda estivesse em fase embrionária, havia uma fila imensa para observá-la. A promessa da administração do Jardim Botânico era de que a flor podia começar a abrir a qualquer instante.

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