8.03.2009

A Linguagem Esquecida

Se não disse nada sobre o Funchal é porque aquela minha primeira introdução à cidade não foi de fato uma introdução à cidade. Quero dizer, o propósito daquela primeira noite não foi muito bem o de conhecer a cidade. Teria sido, mas acabou por ser algo secundário. No entanto, hoje não é com o Funchal que vou iniciar o relato. O relato começa pouco depois de termos voltado para casa. Devo talvez explicar que para entender melhor a ilha, os eventos que escolho narrar são de extrema importância.

Eu sabia que passaria o resto do tempo acordado, embora tivesse escolhido deitar-me naquela cama um tanto quanto pequena para mim (imagino que também o fosse para André). Os lençóis cheiravam a manhã de primavera. Eu procurava não me concentrar nos livros e nos vários objetos espalhados de forma bastante ordenada ali. Sobretudo, procurava ignorar aquilo que inevitavelmente seria revelado antes mesmo do sétimo dia. Ainda assim, tinha uma idéia muito clara de como teria sido a vida de André aqui.

O que de fato me perturbava era a incerteza: devia procurar saber o que era aquele barulho todo no quarto ao lado? Os passos, as luzes no corredor? Angelus obviamente estava passando mal. Desisti de teimar que a privacidade era mais importante do que a solicitude e levantei-me. Não precisei encostar o ouvido na porta do banheiro nem nada: ele vomitava como quem estivesse dizendo obscenidades. Fui à cozinha, busquei um copo num dos armários e o enchi de água. Quando voltei, ele já estava de pé no corredor. Perguntei se estava tudo bem e entreguei-lhe o copo. Ele agradeceu. Como estivesse já na porta do quarto, pude entrever uma estante, no escuro, bastante diferente daquela do quarto onde eu estava.

Voltei a me deitar com a estranha sensação de que talvez conhecesse o André melhor do que conhecia o Angelus.

Não demorou muito para que o sol entrasse pela pequena fresta da janela e incidisse sobre o violão ainda encostado na parede, depois de quase dez anos, como se alguém na casa fosse tocá-lo. O curioso é que tudo parecia ter sido deixado no lugar propositadamente, e, embora o zelo fosse evidente, nada soava artificial, como era o caso do pano em tricô jogado delicadamente por cima daquele aparelho de som antigo.

Tentei fazer qualquer coisa para esperar, enfim, que chegasse a hora de sair do quarto. Não me sentia muito à vontade para sair e, por exemplo, sentar na cozinha, ou no sofá da sala. Portanto resolvi desfazer a mala. Ou melhor, decidi organizar o que levaria para São Jorge logo mais à tarde.

Enquanto esperava, podia ler Dylan Thomas ou Ian Hamilton, mas achava mesmo que se tirasse um daqueles livros da estante, algo de muito importante seria desfeito. Ademais, já fazia tanto tempo que eu tinha lido Thomas e Hamilton, que não sabia ao certo se valia a pena retomá-los agora. A não ser, obviamente, se fosse para tentar decifrar, entre outras coisas, a linguagem esquecida, ali. O pudor há de ser desfeito, como já mencionei, mas por uma razão absolutamente mundana. Logo se revelará.

Há algo que precisa ser dito antes de descer as escadas e ir ter com o Angelus: durante os nove dias, somente saí do quarto quando tinha a certeza de que ele já estava de pé. Isso era muito fácil. A primeira coisa que fazia ao acordar era escutar um disco que para mim representa a Madeira, por essa razão: uma coletânea de músicas somente recentemente resgatadas do italiano Jean-Baptiste Lully. A Marcha Para A Cerimônia dos Turcos era o sinal de que eu podia abrir a porta.

Naquele dia tomamos café na varanda ampla que oferece uma belíssima visão do Funchal. A cidade parece um anfiteatro: começa na praia, elevando-se depois até 1200 metros pela encosta. Esta formação providencia um excelente abrigo natural, o que evidentemente atraiu os primeiros colonos. Segundo o Censo de 1991, o Concelho do Funchal compreendia, na época, 115 403 habitantes (53 816 Homens e 61 587 Mulheres). Hoje deve contar por volta dos 120.000 habitantes, estando a maior parte residente nas Freguesias de Santa Maria Maior e de Santo António, onde estamos agora.

Comemos em silêncio, embora eu percebesse que ele não estava fazendo nenhum esforço para evitar falar o que quer que fosse. Provavelmente teria mencionado a noite de ontem com muitíssimo conforto, mas preferia estar comendo. Eu, embora seja mais a favor do diálogo trivial acedi sem muitos problemas à sua postura. Afinal, não me restava outra opção.

Sem comentários: