8.13.2009

O Vinho de Volta

O propósito do Infante D. Henrique ao enviar navios à Sicília, na Itália e à Ilha de Creta, na Grécia, logo após o início da colonização da Madeira, foi o de obter para Portugal o comércio de açúcar, por um lado, e, por outro, o de vinhos doces, que até então tinha sido privilégio dos genoveses e venezianos. Como o clima e o solo da recém-descoberta ilha pareciam propícios para a plantação de determinadas castas nobres usadas no fabrico do vinho doce, o Infante decidiu entrar na concorrência com os italianos, sob os auspícios da Inglaterra. Primeiro vieram cepas de malvasia. Mais tarde plantaram-se outras castas: sercial, boal e verdelho. Todas com bastante sucesso.

A produção de vinho na ilha da Madeira começou então a ser feita em larga escala, de forma a atender não apenas o mercado inglês, mas também o de outras terras. Embora a exportação, em geral, fosse bastante bem-sucedida, nem todo o produto final era necessariamente vendido. Muitas das naus que se dirigiam para Oriente repletas de vinho, regressavam ao Funchal intactas. Notou-se então que algo de curioso acontecia com os vinhos que regressavam dessas empreitadas desafortunadas: por conta das altas temperatura a que eram submetidos durante a viagem, o processo de envelhecimento dava-se de maneira suave, o que resultava num vinho com uma qualidade muito superior. Este vinho, que passou a ser conhecido como "Vinho de Volta" ou de "Roda da Índia" ou simplesmente "Vinho de Roda" ou ainda "Vinho de Torna Viagem", passou a ser disputado no comércio, e eram comercializados a peso de ouro. Essa é a origem do hoje célebre Vinho Madeira.

Célebre, célebre. O vinho era tão apreciado no Século XV, que chegou a ser usado como perfume para os lenços das damas da corte. Pois não foi o Falstaff, ademais, que, na peça "Henrique IV" de Shakespeare, vendeu a alma ao diabo em troca de um pedaço de capão frio e um cálice de "madeira"? Contam ainda que em nos idos de 1478, o Duque de Clarence, da Inglaterra, tendo sido condenado à pena capital pela Câmara Alta, e tendo se lhe dado à escolha o gênero de morte que preferia ter, acabou optando por afogar-se num tonel de vinho madeira, o que efetivamente ocorreu.

Tudo isso serve para dizer que se não saímos naquela noite de terça-feira, como havíamos combinado, foi por uma causa nobre. Como estivesse muito tarde, e a música fosse tão boa, resolvemos que ficaríamos em casa mesmo. Mas a verdadeira razão para a mudança de planos foi mesmo o vinho madeira. Angelus decidiu abrir uma das garrafas de safra especial que guardava na adega para que eu conhecesse o sabor autêntico da bebida. Conversávamos sobre o passado e acabamos por abrir uns álbuns de fotografia antigos. As histórias que estavam associadas a algumas daquelas fotos eram contadas ora com desinteresse, ora com renovada alegria. Em pouco tempo, era como se eu o conhecesse já há pelo menos vinte anos.

Depois da terceira ou quarta rodada de madeira, o assunto, que tinha percorrido os caminhos da literatura, da crítica de arte, da música, das trivialidades e da culinária, tomou outro rumo. Evidentemente que ele se propunha a encontrar possíveis respostas para questões pouco novas, mas eu não me importava em tentar seguir os seus passos. Quando cheguei à conclusão de que talvez fosse bom pararmos por ali, Angelus já estava vomitando pelas escadas...

Fui levá-lo ao quarto. «Tens a certeza de que estás bem?» Ele olhava para mim, lívido, envergonhado. «Eu posso ficar aqui um pouco, se quiseres.» Permanecia calado. Nesse momento, olhei para o quarto com atenção, pela segunda vez desde que chegara ali. Os livros, os objetos, as roupas espalhadas pelo chão, os sapatos, a bolsa suspeita... «Queres que eu saia?» Sem tirar os olhos da parede, respondeu, quase entredentes: «Prefiro.» Fechei a porta com cuidado, sem dizer palavra.

Talvez tenha sido esse espisódio que justificou aquilo que eu faria a seguir.

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