8.12.2009

O Bailinho da Madeira

Na descida do Pico do Areeiro há um famoso bar chamado Meio, onde fazem a não menos célebre misturada. Paramos e cada um de nós serviu-se de uma porção. Estava fresco o dia lá fora, e havia névoa naquela zona. Pedro explicava a razão do nome do bar: antes da construção da Via Azul, aquela estrada era quase a única opção para quem quisesse se deslocar do norte para o sul da Madeira. Como aquele ponto ficasse quase ao meio do caminho, e o percurso era bastante mais longo, as pessoas costumavam parar ali para descansar. Em se considerando a relativa altitude do lugar, o clima em geral era mais para o fresco durante todo o ano. Daí a razão da misturada: metade poncha, metade café. Ora, quem prefere a poncha pura, não precisa ir mais longe. Mas a misturada vinha mesmo a propósito. Afinal, era suposto que as pessoas depois se sentissem sóbrias o suficiente para voltar à estrada. A misturada só pode mesmo ser encontrada em toda a ilha ali, no Meio. Já a poncha não.

A poncha, uma bebida associada no passado aos pescadores, homens das montanhas e outros ilhéus que tais, é hoje tão popular na Madeira quanto os bordados e o bolo de mel, sobre os quais não intenciono falar. A receita é muito simples: pegue uma boa medida de aguardente de cana sacarina, junte-lhe mel também de cana e sumo de limão. Misture bem com o pauzinho apropriado, chamado pau-da-poncha, que se faz rolar, rapidamente, entre as palmas das mãos, e já está! Obviamente o resultado pode variar de acordo com a mão que rola o pau. Há também medidas exatas para tudo, e isso é um fator determinante para o resultado final da bebida. A melhor poncha que tomei na Madeira foi mesmo a que Pedro fez. Mas se lá o Pedro não estiver, pode-se ir também à Câmara de Lobos, onde se faz, para além da poncha tradicional, excelente, uma série de variantes, entre as quais a poncha de absinto, cuja história a ela associada logo se saberá.

Esperamos que a conversa entre Angelus e o tal homem de cabelos longos, branco, ainda mais branco que Pedro, barbas ainda mais longas que os cabelos e tatuagens por todo o lado, enfim, chegasse a um termo. E partimos para Machico.

Antes é preciso dizer que existe no caminho entre o Pico do Areeiro e o tal bar onde paramos para a misturada uma casinha de pedra muito parecida com um iglu. Em tempos passados, aquela casinha era usada para armazenar neve! Como não existisse na Madeira energia elétrica, e muito menos refrigeradores, dali vinha todo o gelo que precisassem no hospital para manter certos medicamentos conservados durante o verão. Eu achei essa uma história tão engraçada!...

Quando saímos de casa em direção a Machico já era perto das dez da noite. Tínhamos usado o resto da tarde para fazer algumas fotografias, ali mesmo em casa do Angelus. Pedro, sempre pontual, chegou na hora que prometera, e lá fomos experimentar o gaiado na Feira Gastronómica de Machico.

Há quem prefira atribuir o nome daquele concelho de cerca 11.916 habitantes a um outro episódio talvez menos curioso. Trata-se da história de amor entre um pobre porém gracioso inglês chamado Machim e uma bela porém nobre donzela chamada Ana d’Arfet. Os pais, obviamente, descobrem tudo e, ainda mais obviamente, impedem que se vejam. Um casamento é então arranjado às pressas para a menina Ana. Machim planeja uma fuga para a França. Embarcam os dois num navio de mercadores, o qual naufraga sob uma tempestade e vai, à deriva, parar numa terra desconhecida, toda coberta de arvoredo, mas desabitada. Viveram uns poucos dias muito felizes naquela ilha, sem nunca terem topado com São Brandão ou com Landon, o terrível dragão de cem cabeças que, naquela altura, ainda não tinha sido derrotado por Jorge. Mas Ana, afeitas aos luxos da corte, morre em pouco tempo, o que deixa Machim completamente transtornado. Enterra o corpo de sua amada num vale muito frondoso da ilha e dali não sai. Com o passar do tempo, a chuva, o frio, o vento, a fome, o sol, o dia, a noite, Machim acaba por morrer. Teria sido o próprio João Gonçalves Zarco, o tal português que é considerado, juntamente com o Tristão Vaz Teixeira, o descobridor do Arquipélago da Madeira, que primeiro encontrou o túmulo onde jazia os dois amantes, e o relato da história tal como se conta aqui foi mesmo originado a partir dos pertences que revelariam a origem dos corpos. A palavra Machico é pois uma corruptela do nome do jovem inglês apaixonado.

A Feira Gastronómica de Machico tem ser tornado, gradualmente, um evento de grande porte na ilha. É para lá onde vão os habitantes sem opções numa noite de terça-feira em princípios de agosto. Embora esse não fosse o nosso caso (estávamos ali porque era mesmo caminho para o aeroporto), a visita mostrou-se de relativo interesse. Entre raparigas usando roupinhas de domingo, e rapazes fingindo desinteresse, havia também apresentações folclóricas, como o Bailinho da Madeira, tradicional manifestação de rua onde, vestidos de trajes coloridos, um grupo de pessoas canta e dança ao som do brinquinho.

O brinquinho é na realidade um conjunto de sete bonecos de pano e traje regional, portadores de castanholas e fitilhos, dispostos nas extremidade duma cana da roca, em duas séries circulares e de diâmetro desigual, uma com quatro e outra com três daqueles fantoches. Este acessório musical, animado de movimentos verticais à mão do seu portador, serve a bater compasso aos bailadores. (Na realidade, o brinquinho não é de origem madeirense e foi introduzido na ilha há menos de um século, sendo instrumento do folclore continental português e um dos mais típicos das romarias do Minho e Douro, onde se chama charola ou cana de bonecos. Ora, quem não conhece a canção? Milho verde, milho verde, ai milho verde, milho verde, ai milho verde miudinho; à sombra do milho verde, ai à sombra do milho verde, ai namorei um rapazinho...)

Mas o propósito de ir a Machico naquela altura é mesmo o de comer qualquer coisa, afinal. E opções é o que não falta: tem a sopa de trigo, a sopa de couve, a sopa de moganga, o cuscuz, o bife de atum com milho frito, o milho cozido com chicharos, ou espada ou atum fritos, o polvo de escabeche, a tripa de porco recheada, o gaiado seco, o gaiado de escabeche, o atum de escabeche, as lapas grelhadas e as lapas de escabeche, entre outros petiscos. Optamos pelo gaiado seco, especialidade do local, e o polvo de escabeche, muito bom. O gaiado, cujo nome científico é Thynnus pelamys, é um peixe da família Escombrida e é consumido geralmente depois de salgado e seco ao sol. Tem um sabor bastante acentuado, mas cai bem com a boa cerveja Coral.

Tia Eva e Sara desembarcavam às 11:45, de sorte que devíamos nos apressar. Quando lá chegamos ao aeroporto, elas já nos aguardavam na sala de recepção. Sara parecia bastante cansada, Tia Eva parecia somente melancólica. Angelus queria saber se apetecia a Sara sair logo mais à noite, e ela nem se deu ao trabalho de responder. Pedro nos deixou em casa e seguiu adiante, com as duas. Sara nunca olhou para trás, e até hoje vive muito bem.

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