8.07.2009

Rútila Vermelhidão

Wie ein Liegender so steht er; ganz/ hingehalten von dem großen Willen./ Weitentrückt wie Mütter, wenn sie stillen,/ und in sich gebunden wie ein Kranz. A música era bastante alta para que eu pudesse ouvir o que eles estavam conversando na frente. Julguei que estivessem discutindo, mas não pude perceber nada. O carro ia mais rápido do que eu imaginei poder ser capaz naquelas curvas acentuadas, à noite. Paramos num posto de gasolina, a meio do caminho, e aproveitei para ir ao banheiro. Há sempre uma discussão na hora de pagar o combustível; dessa vez eu preferi me ausentar.

Santana, que foi recentemente elevada à categoria de cidade, está situada na costa nordeste da Madeira, entre o Calhau de S. Jorge e a Ponta do Vigário. Disposta na sucessão de montanhas entre a agreste cordilheira central e o Mar do Norte, a cidade possui uma área de 17,8 km2 , e é habitada por cerca de 4.500 pessoas. No primeiro fim-de-semana de agosto, todos os anos, a cidade abriga a famosa Festa do Santíssimo, organizada pela Câmara Municipal, com o apoio de toda a população. Entre folguedos populares e apresentações públicas, é possível nessa ocasião saborear pratos típicos locais, como as lapas grelhadas regadas com manteiga e sumo de limão, e a carne da noite.

Começamos o Angelus e eu por uma espiga de milho cozida. Sebastião não comia nada, nem parecia ter apetite. Sendo vegetariano, pouco parecia lhe agradar ali, ademais. Nem mesmo as massarocas cozidas, para as quais olhava com desdém e fastio. Depois foi a vez das lapas, que são um tipo de molusco gastrópode marinho. Vêm dispostas na mesma assadeira, ainda frigindo de quentes. Acompanham cerveja e um bom cesto de pão. Para colaborar com a visível impaciência de Sebastião, resolvemos pedir a carne da noite, com mais cerveja. Então passamos a circular pelas ruas, parando num ou noutro ponto para mais cerveja. Sebastião ficou todo excitado, deu pulinhos de alegria e bateu palmas quando viu os carrinhos automatizados. Queríamos uma volta? Queríamos, por favor.

Mas não nos restava muito por fazer ali, e havíamos apenas começado. A proposta foi que seguíssemos procurando bares abertos no Concelho. Voltamos então para São Jorge. O carro aceleradíssimo, a música ainda mais alta. Und die Pfeile kommen: jetzt und jetzt/ und als sprängen sie aus seinen Lenden,/ eisern bebend mit den freien Enden./ Doch er lächelt dunkel, unverletzt.

Naquela tarde, tínhamos ido com o Tio Genaro para ver a Pedra do Segredo, uma enorme rocha equilibrada que, segundo acreditam, inclina-se um pouco a cada dia. Quando na vila de São Jorge alguém quer provar coragem desmedida, sobe no topo da Pedra do Segredo. Pouco abaixo, há um precipício estarrecedor, e o mar. Dali seguimos novamente para a Praia do Calhau de S. Jorge. Dessa vez, como o mar estivesse muito frio, somente Angelus teve coragem de tomar banho, primeiro no mar, depois na água doce que atrai muitas famílias no verão.

Paramos num bar sonolento, e pedimos cada um uma vodka com Brisa Ananás. E antes que entrássemos no clima do bar, voltamos para o carro. Angelus então teve a idéia de ir à Foz da Ribeira do Faial, uma enseada que fica na Freguesia do Faial, também em Santana. A noite estava bastante agradável. Há ali um bar com gente o tempo inteiro, e música e dança para quem se arrisque. A visão da enseada à noite é mesmo espetacular. Conta-se que uma aurora boreal, ocorrida a 20 de Janeiro de 1957, deixou estupefactos os que ali na enseada se encontravam. Uma semi-elipse de rútila vermelhidão fixou-se, repentinamente, no céu. Como que impelida pelo vento, a mancha de tons púrpura deslocou-se lentamente na direção Norte Leste, durante meia hora... Muito pouco aconteceu naquela noite.

Voltamos para o carro cantando a última música que tínhamos ouvido no bar; já era quase dia. Estávamos mesmo bastante cansados. A viagem de volta foi feita em silêncio absoluto, exceto pela música, alta. Einmal nur wird seine Trauer groß,/ und die Augen liegen schmerzlich bloß,/ bis sie etwas leugnen, wie Geringes,/ und als liessen sie verächtlich los/ die Vernichter eines schönen Dinges. Quando chegamos, o sol já enchia o corredor dos quartos com a luz vermelha da porta daquela sala sempre fechada. Eu fui dormir lembrando os versos de Rainer Maria Rilke: Num só passo a tristeza sobrevém/ e em seus olhos desnudos se detém,/ até que a neguem, como bagatela,/ e como se poupassem com desdém/ os destrutores de uma coisa bela.

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