A viagem do Funchal para São Jorge leva aproximadamente uma hora e um quarto. É um caminho agradável, mesmo durante a noite. A impressão que se tem é a de que estamos sempre percorrendo a borda da ilha. Há subidas e descidas sinuosas, e mesmo sendo o Angelus um motorista bastante experiente, devo confessar que procurei não olhar a estrada, temendo os precipícios. Na verdade, eu estava absolutamente concentrado no que ele dizia. Falava quase sem interrupção. Às vezes parava apenas como que para buscar a palavra certa. Tudo o que ele dizia tinha mesmo a ver com o que eu já desconfiava, e estava relacionado aos acontecimentos daquele final de tarde.
Chegamos à vila por volta da meia-noite, e o tio do Angelus estava nos esperando à porta. Além dele, somente havia mais duas outras pessoas nas ruas. A freguesia de São Jorge conta com apenas 2.170 habitantes, numa área de 18,3 km2. Está situada no extremo norte da Madeira, junto da Ponta de S. Jorge. A sua criação oficial remonta ao ano de 1517. O núcleo primitivo da freguesia era no sítio do Calhau, sobre o qual se falará dentro em breve. Ali, junto à foz da Ribeira, instituiu-se uma capela no final do séc. XV, quase destruída por um aluvião em 1660. Mas o nome da freguesia só foi estabelecido por volta do segundo quartel do século XVIII , quando da construção de uma capela consagrada a São Jorge.
Conta a lenda que Landon, o temível dragão de cem cabeças, habitava aquela região, causando pânico em toda a gente. O pânico explicava-se pelo fato de estar a fera sempre e progressivamente mais faminta. Não havia o que lhe bastasse: comia o rebanho, a piara, a pandilha inteira da região. Na falta disso, começou a comer o pomar, hortaliças, a flora, alfobre... Então passou a comer a terra (quem olha para a região a partir da praia do Calhau, não tem muita dúvida de que um dragão faminto passou por ali). Com medo de ver a ilha por inteiro desaparecer, os poucos habitantes daquela sítio reuniram-se em conselho e decidiram que uma vez por mês uma virgem seria sacrificada. Sabiam que essa era a única maneira de amainar a fome de Landon. Uma virgem era comida suficiente para um dragão sentir-se saciado por aproximadamente um mês. E assim foi até acabaram-se todas as virgens. Ora, aqui havia um grande dilema: ou tentavam enganar o dragão, ofertando-lhe uma mulher qualquer local, ou viam-se forçados a assistir o desaparecer da ilha aos bocados. Não era um dilema assim muito simples de ser resolvido, como aparenta. Por uma lado, é sabido que os dragões que possuem um número de cabeça superior a trinta e sete não comem seres humanos. Aqueles que têm noventa e nove cabeças ou mais, o fazem, mas com a seguinte condição: precisam ser mulheres e virgens. Por outro lado, sabe-se também que um dragão feroz pode usar todas as bocas que possuem simultaneamente (em geral, só comem com uma específica). Até ali, não havia registro de que um dragão fosse capaz de saber de fato se uma mulher era virgem ou não, portanto era um risco. Se enfurecessem o dragão com tal engodo, podiam ver a ilha desaparecer sob os seus olhos em pouquíssimo tempo. Foi então que Jorge, um moço muito moço, lindo, de cabelos longos e vermelhos como o fogo, que geralmente assistia aquelas reuniões muito calado, fez a seguinte proposta: ele seria ofertado. Muita gente riu. Alguns sequer o levaram em consideração. Mas Jorge insistiu: ele seria ofertado. Ocorre que na falta de outra opção (nenhuma mulher da vila estava seriamente interessada em servir de petisco ao dragão), resolveram aceitar a proposta do rapaz. Já agora tanto fazia se o risco fosse uma mentira ou outra. Jorge, que, embora aparentasse, não era mulher, era virgem. Então que o dragão fosse ludibriado pelo sexo.
Naquela noite, Jorge postou-se sobre a rocha do sacrifício ao pé do Calhau, trajando um longo vestido branco, como era o costume no ritual de oblação. Fechou os olhos, e esperou, pacientemente. Não tinha medo, porque sabia exatamente o que estava fazendo. Ao ouvir o urro de Landon, sabia que a hora havia chegado. Procurou ficar imóvel. De súbito, o silêncio. Quando sentiu o bafo morno da respiração do dragão a cheirar-lhe os cabelos dispostos sob a rocha, abriu os olhos, e, dirigindo-se à lua cheia, chamou Kalki, o cavalo branco. Numa fração de tempo, Jorge, que para alguns era, na verdade, a última encarnação de Vishnu, estava montado em seu cavalo, com uma enorme espada de fogo na mão. O resto da história é conhecido. Contam que o sangue derramado de Landon deu origem ao famoso dragoeiro (Dracaena draco), típico da ilha da Madeira. Data dessa época a construção da igreja naquela parte da ilha, e a mudança de nome da região, que antes chamava-se Lagina.
São Tiago é muitas vezes tomado por ser, de fato, a última encarnação de Vishnu, mas essa é outra história. Para agora, vale a pena dizer que a sopa de legumes com uma espiga de milho metida ao meio estava mesmo muito boa. A Tia Valentina iria revelar-se uma cozinheira digna de loas e louvores durante os dois dias que passamos na ilha. Depois, Genaro nos convidou para um café no único bar da região que ainda estava aberto. «Vai descer agora, oh Sebastião?», gritou em direção à escada. Enquanto desfazíamos a mesa, e Genaro procurava uma camisa mais adequada para a noite fresca, pude ouvir os passos mansos de Sebastião descendo a escada. Eram passos de quem vinha mais por obrigação, mas com uma pontinha de curiosidade: uns passos de gato de barriga cheia.
Sebastião sorriu muito desajeitadamente, coçou as costas, e, ainda sorrindo, estendeu a mão: «Sebastião», disse, numa voz de contra-tenor. Eu retribui o sorriso e apertei a mão longa, branca, delicada e quase bastante frágil dele. «Vamos?», perguntou desinteressadamente. Saímos em silêncio. Angelus ia ao meu lado. Tio Genaro parecia querer perguntar qualquer coisa a Angelus, mas não encontrava a forma mais adequada de fazê-lo. Sebastião ia à frente, chutando pedras.
O bar estava vazio. Nós os três pedimos uma imperial cada. Sebastião queria um refrigerante de tomates. Tio Genaro, uma curiosa mistura de chinês com italiano, nascido em Macau e vivido nos Açores até encontrar Valentina e conhecer a Madeira, fazia perguntas simpáticas sobre o Brasil. Ria bastante, ensaiava umas piadas e perguntava de tempo a tempo o que eu estava achando da ilha. Sebastião, obviamente alheio a tudo, levantou e escolheu uma música no Jukebox. Era curiosamente o Tim Maia cantando, todo feliz, Não Quero Dinheiro. Enquanto ele dançava segurando o Jukebox, levantando os braços, numa maneira inusitadamente sensual, Tio Genaro continuava com as perguntas. Angelus tomava a imperial, provavelmente arrependido do que tinha me dito naquela noite. Eu escutava Tio Genaro, Tim Maia, mas olhava ora para Angelus, ora para Sebastião, ora para Angelus. Quando a música acabou, Sebastião voltou à mesa e pediu mais um refrigerante de tomate. Aproveitamos a oportunidade para uma outra rodada de imperial.
8.05.2009
Sebastião
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