8.02.2009

Felippa

A Madeira é uma Zona Independente de Portugal, assim considerada depois da Revolução de 04 de Julho de 1969, aquela que pôs abaixo a ditadura Salazarista. Governada pelo polêmico João Alberto Flores já há mais de trinta anos, tem assistido a um desenvolvimento espantoso em vários níveis nas últimas duas décadas. Há quem prefira relacionar o fato à administração peculiar de Flores. O Arquipélago da Madeira, que é composto por duas ilhas habitadas (Madeira e Porto Santo) e dois grupos de ilhas desabitadas (Áridas e Devolutas), está separado de Lisboa, a Sudoeste, por cerca de 2.000 kilômetros. Juntas, as ilhas do arquipélago cobrem uma extensão mais de 4.000 kilômetros quadrados do Oceano.

Não sei muito bem quão importante é essa informação, mas alguém a reclamou, de sorte que aí está. O relato objetiva também ser informativo: foi idealizado como um diário de viagens, e quer abordar os nove dias naquela região que mudou para sempre o rumo (ou a ordem) das coisas. Se deseja saber a razão, basta acompanhar-me. Hoje, por exemplo, vamos ao Funchal. Como tinha prometido no ponto em que parei, iríamos comer qualquer coisa fora. Mas nada muito pesado, nada muito curioso, apelativo, nada que exigisse atenção apurada: a viagem tinha sido por si só uma experiência bastante singular para permitir apreciar qualquer outra peculiaridade da região. Eu comi uma salada e tomei vinho tinto. A noite estava bastante agradável. O Angelus aparentemente gosta de pizza.

Depois saímos para uma cerveja, um chopp, uma imperial. A propósito, a cerveja da Madeira é muitíssimo melhor que as encontradas em Lisboa. Chama-se Coral, e é fabricada pela mesma empresa que faz os saborosos refrigerantes Brisa. Mas o refrigerante Brisa Maracujá merece um capítulo à parte. Para uma quinta-feira, a cidade estava bastante cheia. O primeiro bar em que paramos foi o Jota. Estava vazio. A música que costumava ser boa, segundo o Angelus, estava fraca. O barman estava sonolento. A imperial não veio muito gelada. Uma pena, pois o ambiente, com sofás coloridos e iluminação adequada, parecia bastante convidativo. Partimos para o Monge, que fica mesmo junto ao cais. Ali, ao contrário do Jota, havia muita gente, sobretudo jovens. A música era alta, uma música batida. Podia-se ver, do lado de fora, um segundo andar abarrotado de braços descoordenados. Talvez fosse uma dança.

«Aqui costuma aparecer muita gente curiosa.» Angelus parecia estar procurando alguém. Eu já sabia quem era, mas, ainda assim, fingi que não prestava atenção, e continuei observando os braços. «A imperial está quente», disse-me, entregando uma garrafa pequena de Coral. Agradeci, sorrindo. «Dentro em breve...» Acenou de volta. «Aquela é a Felippa, que canta no bar.» Por um momento, hesitei. Parece que eu já imaginava tudo. Quis fingir não ter ouvido. Ainda ensaiei olhar a baía, ali das escadarias que levava ao Monge. Mas não se foge do inevitável: a Felippa olhou-me com a cara mais simétrica que já vi em toda a minha vida, e sorriu.

Aproximamo-nos, mas ela falava frases curtas. Angelus continuava procurando, e a Felippa nunca chegou a olhar para mim novamente naquela noite. Não que tivesse evitando fazê-lo. Acho que o Angelus estava bebendo demais, o que de certa forma me incomodava. Afinal, voltaríamos para casa de carro, e ele era o único que sabia o caminho. Se tivesse falado, teria dito «ela não vai aparecer». É claro, ela não ia aparecer, sabendo onde provavelmente estaria por volta das duas da madrugada, ela não ia aparecer. «Amanhã à tarde vamos a São Jorge,» foi o que disse. «Vamos passar o fim-de-semana na casa de meus tios». Eu achei ótima a idéia.

Provavelmente por conta da cerveja, Angelus passou a falar mais. Eu escutava, sempre indicando que o fazia, com medo talvez de ele pensar que eu não estava na linha. Como se faz ao telefone: sei, sei. Não lembro exatamente o conteúdo da conversa, mas eram trivialidades sobre o Funchal. Por exemplo, que o nome da cidade explicava-se por conta de um tal Marquês de Funchal que governara na região de tal a tanto, e que era famoso pelo número de amantes que tinha, etc. etc. «Depois as amantes eram ervas daninhas, e o arruinaram para sempre». Sei, sei. Disse-lhe que agradecia muito, mas achava que não ia querer uma outra cerveja. E julgava que talvez fosse melhor voltarmos.

Ele foi ao meu lado, quase cambaleando, com a última garrafa de cerveja na mão. Tive vontade de abraçá-lo, mais por pensar que ele precisava de apoio físico. Mas não o fiz, as mãos no bolso. Antes de entrar no carro, desfez-se da garrafa como quem descarta o que afinal não aconteceu, pronto. Nenhuma palavra. O carro sobe as ruas numa velocidade vertiginosa. Fecho os olhos e a única coisa que escuto é a voz da Felippa: a lonely lonely person...

1 comentário:

Anónimo disse...

Quem era "ela"?