8.09.2009

O Jardim do Mar

Júlio Cortesão, escritor e historiador português do Século XVII, reuniu, numa pequena obra intitulada Romança da Ilha Encantada, crônicas baseadas em fatos históricos acerca do Arquipélago da Madeira. É nesse livro onde se encontra o relato de como São Brandão, um monge irlandês que viveu no Século VI, desembarcou pela primeira vez na Madeira, juntamente com outros setenta e cinco monges, já naquele mesmo Século VI. A fonte de tal episódio é, nas palavras de Cortesão, o livro autobiográfico Vita Sancti Brandani Abbatis, Navigatio Sancti Brandani, cujo único exemplar se encontrava na Biblioteca Nacional de Daomé, antes do incêndio criminoso de 1679 que destruiu por completo o seu acervo.

De acordo com o relato de Cortesão, São Brandão, idealista e visionário, teria se lançado numa aventura marítima com o propósito de encontrar o paraíso terrestre. Apanhado numa tempestade, fora levado por ventos misteriosos até abordar uma das ilhas do Arquipélago, na qual ficava, enfim, o éden. Lá teria escrito o seu livro de memórias, que, jogado ao mar em uma pequena embarcação aquando de sua morte (sobre a qual se falará mais adiante), fora parar em mãos de um pescador beninês.

Acordei naquela segunda-feira com a música do Lully mais alta do que o habitual. Levei algum tempo até me aprontar. Olhava as caixas no topo da estante como quem busca uma resposta para a morte de São Brandão. O livro de memórias, queimado com a Biblioteca de Daomé, jamais teria sido mencionado em outra obra que não na do historiador português. Angelus apareceu de súbito, perguntando se eu tinha alguma intenção de descer para o pequeno almoço. Tentei disfarçar o embaraço da curiosidade, e disse que já estava descendo.

Naquele dia iríamos dar uma volta pela região costeira sudoeste da Ilha, do Funchal até São Vicente. A primeira parada seria na Ribeira Brava. O entusiasmo de Angelus do sábado aparentemente tinha-se esvanecido. Era provável que a noite do dia anterior pudesse explicar aquela renovada indisposição, mas preferi abster-me de fazer qualquer tipo de comentário. Não nos demoramos na Ribeira Brava. O próximo ponto seria o Pico do Sol, assim chamado por ser a zona da Madeira onde o sol costuma incidir durante o maior número de horas. Há imensos turistas na área costeira. A praia costuma ser bastante apreciada por conta da temperatura da água do mar e da fraca ondulação. A seguir, paramos em Calheta, que é o maior concelho da Ilha.

Possuindo um conjunto de elementos paisagísticos peculiares, nomeadamente a Floresta Laurisilva, o Planalto do Paul da Serra, Rabaçal, e uma vasta extensão de orla marítima, o Concelho de Calheta ocupa uma área total de cerca de 116 km2. Está composto por oito freguesias: Arco da Velha, Calheta, Estreito da Calheta, Jardim do Mar, Paul do Mar, Prazeres, Fajã de Ovelha e Ponta do Pargo. Foi na freguesia de Jardim do Mar onde paramos para uma sessão de fotografias. Angelus sempre busca escombros. Eu regularmente fujo deles. Enquanto Angelus entretinha-se naquele celeiro abandonado, fui ao cemitério. Alguém na vila devia ter morrido há poucos dias, mas o túmulo – um amontoado de terra tão-somente – não revelava quem teria sido. Observei que havia uma certa regularidade naquilo: poucos não deixavam de ser anônimos ali.

Em seguida dirigimo-nos para Prazeres, onde almoçamos num requintado hotel muitíssimo escondido. Lá, Angelus ensaiou uma conversa sobre a Paula, que procurei acompanhar com bastante interesse. Acho que eu talvez estivesse fazendo demasiado esforço para procurar ser solícito, e isso definitivamente não funciona. Acabamos discordando num ponto, que foi encerrado com a conta. Partimos em direção às Achadas da Cruz, passando pela belíssima região de Fajã da Ovelha. Há também nessa freguesia uma rocha equilibrada que, segundo a tradição, se encontra protegida por Santo Amaro para não cair sobre o Paul do Mar. Não sei bem ao certo porque não chegamos a ir ao Paul do Mar. Entretanto, três dias depois, estivemos todos no Paul da Serra, tendo sido esse um dos melhores passeios que fiz na Madeira. Há de se saber porquê.

No meio do caminho, paramos em uma pastelaria para comer um doce típico daquela região, cujo nome esqueci. Tivemos de esperar cerca de dez minutos para que alguém aparecesse no balcão e nos atendesse. Nada de muito especial. O próximo ponto seria mesmo Porto Moniz, a zona mais a Noroeste da ilha, onde tomaríamos banho nas piscinas naturais, formadas a partir de rochas vulcânicas. Antes de lá chegarmos, paramos o carro no meio da estrada, num ponto onde podíamos ter uma belíssima visão da zona balneária de Porto Moniz.

É preciso fazer um parêntese bastante significativo aqui para dizer que a Madeira produz uma banana muitíssimo famosa no continente, por seu sabor bastante delicado e peculiar. É ligeiramente curva, tem casca fina, amarelo-clara, e polpa branca. É extremamente aromática. Não tive, durante os nove dias em que permaneci na ilha, uma única oportunidade de provar a tal famosa banana. Ali, no meio da estrada, enquanto eu pensava em coisas bana(na)is que tal, como quando, enfim, iria provar a tal famosa fruta, Angelus olhava sempre para um ponto incerto, pensando provavelmente em algo muito mais profundo.

Descemos, enfim, e descobri uma região bastante diferente das demais. Percebe-se, logo de pronto, que a freguesia tem sido constantemente modificada em função do turismo, já pela arquitetura irregular. Mas o nosso propósito era mesmo o de tomar banho nas piscinas naturais. Então seguimos para o complexo balneário, que, apesar da hora relativamente avançada, ainda estava bem cheio. Todavia, valeu mesmo a pena visitá-lo. O mar estava agradável, embora não tenhamos passado muito tempo lá dentro. Como já estivesse ficando tarde, resolvemos seguir para São Vicente, onde paramos brevemente para um café, ou o que quer que se assemelhe a isso. A pequena povoação de São Vicente, ao norte da Madeira, é bastante simpática e agradável. Um passeio que merece ser feito mais demoradamente.

Entretanto a hora ia avançada, de sorte que resolvemos pegar a estrada de volta para o Funchal. Uma viagem que durou cerca de quarenta minutos, feitos em absoluto silêncio. Uma ou outra vez eu olhava para a estrada, mas os meus pensamentos ora estavam na primeira noite, aquela primeira noite no Funchal, ora nas caixas amontoadas no topo da estante do quarto em que eu dormia, ora na conversa que tivemos eu e o Angelus no hotel em Prazeres, ora na história de São Brandão, ora nas flores do Jardim do Mar. Terá sido Públio Siro quem propôs que ninguém pode fugir ao amor e à morte?

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