Querida Eva,
Às vezes eu me pergunto se, afinal, você lê o que quer que eu escreva. Mas quero dizer: se lê de facto. Volishnov devia estar certo, mas ainda assim/ A razão por que eu começo com essa pergunta é mesmo por conta de sua ligação de ontem à noite. Você... Você estava chorando? Eu detesto que/ eu detesto saber que alguém está chorando do outro lado da linha quando não há nada que eu possa fazer. Não que eu fosse fazer algo, as a matter of fact. Eu queria poder ser como me imagino, sentimental. Mas não sou nada disso. Não tem mãozinha no rosto enxugando lágrima, não tem abraço, não tem palavra de consolo. Entretanto o cinismo me incomoda. Não aquele praticado, mas o verdadeiro, aquele que está sem ser solicitado. Hoje havia prometido não ser amargo. Mas você precisava ter ligado ontem... chorando?
Entre outras coisas, eu queria poder te falar da Valdelice, aquela do Ceará. Mas agora já não sei se vale a pena. Quando estava subindo o prédio, tem aquele meio-gordo que sempre deixa a porta entre-aberta. E hoje estava, imagine, sem roupa. Então as pessoas não têm pudor? Então esses obeliscos fálicos todos no meio da rua? Eu queria poder aprender a sopa que a Paulinha fez para o aniversário da mãe. Aliás, é só nisso que eu penso agora. Mas não tenho o e-mail dela. Nem sei escrever o nome da sopa, porque sempre fui muito preguiçoso e nunca aprendi francês. É, é aquela sopa branca, gelada, é. Nunca tive muito talento para línguas, embora as pessoas costumem dizer que eu cozinho bem.
Por que a Lúcia Helena não é logo direta e diz que não vê nada naquilo que eu escrevo, e pronto? Não há novidade, diria com um ar profético de Salomão. Eu talvez concordasse, embora não sei se ficasse convencido. É mais fácil não tentar, como tentam as Mariazinhas, e convencem, e vendem livros e atraem críticos inteligentes mas sedutores. James adora mulher burra. Eu não. E tivemos um grande debate sobre o qual não vale a pena falar. Vá, pergunte o que vale a pena falar, diga que o silêncio não é assim tão importante, como o de ontem. Isidoro sabe do silêncio. Eu sei do despropósito.
Eu quero te contar algo muito importante que aconteceu hoje comigo. É assim: passo o dia todo lá dentro de meu escritório, quase não falo com ninguém. Mas uma ou outra vez saio para tomar um café ou comer uma bolacha (e hoje teve doce de figo do Algarve). Quando acontece de encontrar alguém na cozinha, troco umas duas palavras. Mas o que eu quero te contar de fato é que hoje desci para comprar maçãs e sumo de laranja + cenoura + manga. Adivinha quem encontrei no supermercado? Pois foi a Valdelice. Não aquela do Olympo, não a do Ceará. Estou falando da que trabalha na farmácia ao pé do ILTEC. Ela olhou para mim, e eu, brevemente, para ela. Podia dizer qualquer coisa, mas não o fiz. Como alguém que é tão íntimo pode se encontrar assim no supermercado e não trocar uma palavra? Será porque foi no MiniPreço? Será que se fosse no Pingo Doce ela falava? Será que no El Corte Inglés ela sorria, me beijava e me levava para a cama?
O que eu preciso de fato dizer é que a Valdelice não é o meu tipo, mas ela me conhece tão bem... Aliás, quero chegar à conclusão de que ninguém talvez me conheça melhor do que a Valdelice. E eu tenho a impressão de que faz regime. Vê? Eu pouco conheço a respeito/ O que me faz pensar que ela talvez faça regime é mesmo o fato de ela ter saído do supermercado somente com uma caixinha de bolacha de água-e-sal na mão. Nem pediu um saco, que custa dois cêntimos! Deve fazer também regime de dinheiro!
Mas antes de terminar essa história, preciso contar a discussão que tive hoje com/ por conta do fato de ela ter dito que a Rita ia plantar morangos na horta da casa nova. Ora, morango não pode ser cultivado em horta, disse eu. Ao qual ela replicou: e onde? Num pomar, sugeri. Então aprendi que o pomar só possui árvores frutíferas, e não sendo o morango um fruto que se dá em árvore... A confusão estava tamanha que resolvi então buscar o Orélio. Lá tinha tudo. Primeiro, ela estava certa: pomar é só de árvore. Mas eu também tinha acertado: horta não poder ser de frutas. Restava agora saber o que, afinal, era morango. E, afinal, morango é uma infrutência carnosa, não fruto, que nasce de uma erva... Erva??? Então o morangueiro é uma erva?! E erva se cultiva numa horta? Também não. No mato? A confusão estava tamanha, o jantar estava quase pronto, a H. estava quase chegando, portanto resolvemos deixar o assunto assim, quase inconcluso. Ademais, hoje vou ver Italiano Para Principiantes, aquele filme dinamarquês que eu não cheguei a ver em Odense porque lá não passam filme dinamarquês com legenda em português ou inglês. O que acho muitíssimo estúpido.
12:12: o filme é bastante bom. Há personagens bem construídas e atores muito competentes. É um filme/ Mas agora tenho de terminar, Eva querida, porque não faz sentido ficar aqui enquanto a Felippa/...
Beijos.
9.08.2009
Do Despropósito
Quarta-Feira, 21 de Agosto de 2002, 00:16
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