Dóris Querida,
Eu já sabia: antes mesmo de o sol nascer, eu estaria de pé, mais uma vez, a segunda desde que comecei/ Acordei com sede. Não, quero dizer, acordei com uma música na cabeça, uma que diz mais ou menos assim: sou o maior dos hipócritas, tenho sido inquestionavelmente/ tenho sido ostensivo e pretensioso, tenho/ abusado de meu poder/... nós, afinal (não é o que sempre quis dizer?) somos um um um um um um um um. É evidente que a música não quer dizer absolutamente nada para mim, mas não consigo evitá-la. Eu prefiro ouvir Jorge Ben Solta O Pavão hoje para ver se esqueço/ Bom, são seis e meia da manhã e ainda nem tomei café e já escutei a tal música. Depois eu continuo, logo mais à noite.
Noite. Sete e vinte e dois. Eu disse que ia continuar, mas prefiro fazê-lo com uma taça de vinho do Alentejo, linda, de crirtal, que pertenceu à Mãe da M. Helena. Isso porque vou sair dentro em breve, jantar na casa do Miguel & Bebé Mateus. Não sei se vou ter coragem de começar o Ensaio Sobre a Cegueira antes de minha viagem ao Brasil, portanto o escondi na gaveta da cômoda rococó.
Hoje eu percebi tudo, e talvez tenha sido a música: I've gotten candy for my self-interest/ the sexy treadmill capitalist/ heaven forbid I be criticized/ heaven forbid I be ignored/ I have abused my power/ forgive me. Eu francamente não sei se vou, enfim, ser perdoado. Mas também não sei se busco perdão. Eu acho que vou comprar esse disco para escutar no carro, enquanto estiver no Brasil.
As reservas já estão feitas, e vou ficar naquele hotel chiquetérrimo, quatro estrelas, à beira-mar, com o conforto de quem merece, por estar participando de um evento que promete ser bastante chato. Eu francamente penso que vou fazer turismo. Não quer? Quantos lugares vamos ainda ver pela última vez, como a Madeira, por exemplo, que está fadada a desaparecer do Planisfério de Cresques? Eu nem sequer conheço Fortaleza, embora já conheça cidades muito mais pequenas no extremo norte da Alemanha... E tenho tanta pena que estejam afundando! Logo Praga! Praga! Vai haver uma conferência em Praga no ano que vem, e eu sempre tive tanta vontade de conhecer Praga...
Eu acho que preciso confessar, eu sinto essa urgência religiosa de dizer que hoje comi apenas uma maçã. Já faz bastante tempo que não vou ao supermercado, e vou sobrevivendo como posso. Há umas bolachas lá no ILTEC, e café. Mas hoje soube-me mais um chá de tília. Dizem ser um bom calmante, o que é mal. Devia fazer como o Hugo, o primo, que bebe Red Bull, algo chamado assim, algo, uma bebida, um estimulante. Aqui não há guaraná em pó, que lembro muito bem quem me apresentou.
Se a Regina vier do Pará, peço que traga guaraná em pó. Será que a Regina vem do Pará? Será que ela pega um Ita no Norte? No dia em que chegamos ao Pico do Areeiro, o Pedro, enfim, apareceu. Mas isso eu conto quando a oportunidade/ quando chegar a hora de falar sobre o Pico do Areeiro. Será que as pessoas ontem à noite ficaram muito chateadas porque eu saí sem dizer nada a ninguém? A D. Mira não me pareceu chateada, muito pelo contrário. Ela é tão esperta, a Mira... Agora eu preciso/ tem as plantas para aguar, antes de/ Daqui a pouco a campanhia toca.
E tocou, mas eu já estou de volta. O jantar foi bom, apesar de minha pouca paciência. Eu gosto de ouvir o discurso da Maria Helena, que fala como se estivesse pensando. Há pessoas que tem o talento de entreter com a palavra. Eu definitivamente não tenho talento para entreter, muito pelo contrário. E já agora lembro do/ eu estive hoje numa barbearia e lá estava um senhor, dono do restaurante que fica ao lado do ILTEC, e também um outro, esperando, de uns cinquenta e sete anos, de olhos verdes, fingindo interesse. Voltei para casa e agora não consigo esquecer a cara dele, a cara de pretenso interesse. Eu terei essa cara, muito embora os meus olhos/?...
É preciso que eu mude? Se é a estrela lá fora, se foi a idade escolhida para que, enfim/ eu vou preferir intervir? Eu corro e deixo os mil olhos verdes das penas/ que sejam revelados?
Beijos.
9.07.2009
O Pavão Está Solto
Segunda-feira, 20 de agosto de 2002, 00:01h
S(y)ndicat(i)o(n)s
(Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário