Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.
(Rainer Maria Rilke)
Caro Damian,
Ainda não passa das cinco da tarde do domingo, mas enquanto a festa se organiza, eu achei que talvez devesse escrever um pouco, porque tenho cá comigo essa vontade de comentar acerca do que o Bernardo Soares escreveu outro dia, nesses termos: "Um simples convite para jantar com um amigo me produz uma angústia difícil de definir. A idéia de uma obrigação social qualquer - ir a um enterro, tratar junto de alguém de uma coisa do escritório, ir esperar à estação uma pessoa qualquer, conhecida ou desconhecida -, só essa idéia me estorva os pensamentos de um dia, e às vezes é desde a mesma véspera que me preocupo, e durmo mal, e o caso real, quando se dá, é absolutamente insignificante, não justifica nada; e o caso repete-se e eu não aprendo nunca a aprender."
Ao contrário do que ocorre com o Bernardo, eu tenho grande alegria com o contato social, mas isso se dá quase que exclusivamente no nível da idealização. O que ocorre, afinal, é mesmo o oposto: o caso real, para mim, é o que me dá uma angústia sem nome. Veja se eu consigo me fazer entender: eu acredito nas pessoas. Aliás, eu já devo ter mencionado isso naquela mensagem sobre o Paar, mas não me canso de repetir: eu acredito! Entretanto, não consigo estar acompanhado por muito tempo a ponto de sentir que o caso é absolutamente insignificante. Então começo por ficar calado, a responder monosilabicamente, a não insistir que fiquem, está cedo, não querem mais um martini?
Mas essa conversa toda vem a propósito da madrugada de hoje. Eu já estava mesmo precisando dormir, acredite, e a animação/ quero dizer, acho que eu também estava/ O sol na varanda, Jack e o protetor solar, Felippa e a dissimulação, Paula, Sebastião... Eles não se cansam! E queriam saber se eu, enfim, ia ao museu como havia prometido, que podíamos ir juntos, e depois tinha a praia da Costa da Caparica onde fazem um delicioso Sunset Boulevard. Lá dentro, o Morrissey cantando Wide To Receive.
Isso assim não dá. Enquanto a festa se organiza, eu preciso fazer qualquer coisa, porque dormi pelo menos uma hora e meia e a tarde está bastante ensolarada. Penso como deve ter sido o Sunset Boulevard na Costa da Caparica. Será que foram, afinal? Devem ter ido... Acho que a razão mesmo dessa mensagem agora ao fim da tarde com sol de verão é a inveja. Ou o arrependimento, ou o pânico. Enquanto espero pelo fim do mês tão ardentemente, fico ao mesmo tempo preocupado que o fim do mês chegue antes mesmo de eu saber com certeza o que eu estou sentindo agora.
A mensagem, essa, ficou em aberto, porque entretanto houve a festa, o jantar, e eu já saí à francesa. Não gosto de muitos beijos, nem sei se gostam. Não gosto sobretudo de embaraços. Eu estive discutindo outro dia com o Isidoro se devíamos concluir nossa correspondência assim: um beijo. E ele insinuou que se queríamos escapar da mediocridade, não precisávamos dar passos em falso. Eu não entendi o argumento, e continuo achando que posso usar essa forma de despedida com quem considero. Quero dizer, por que posso beijar as minhas irmãs e não o meu irmão? Por que meu pai disse que eu não era suposto beijá-lo a partir de uma idade que já nem recordo?
Mas é diferente ter de beijar três mil pessoas que nem sequer conheço somente por ter de fazê-lo. Não é? E acabei conversando, como sempre, com a Henriquieta. E tinha uma brasileira de Brasília que vai passar um ano em Lisboa e quer que a filha estude aqui numa escola privada porque tem medo no Brasil de abrir a porta do carro sem ter a certeza de que a garagem está de fato fechada. Nunca provou o pastel de Belém e estuda história. Eu achei o máximo. Sobretudo porque está aqui com uma bolsa da Capes.
Não, eu voltei porque precisava estender a roupa que estava na máquina há que tempo. Detesto ter de dizer que não vou precisar da mulher-a-dias para passar roupa nenhuma no sábado que vem. Ela que vá tratar dos dentes, coitada! Mas não é por isso, não. O que eu/ A Fátima vem em setembro e vai ficar aqui com o Jim. Não me disse por quanto tempo. O fato é que se tenho de pagar a alguém para passar roupas, que venha quando também estiver na altura de fazer uma faxina. E a Fátima, a Maria de Fátima merece uma casa limpa. Não merece?
A verdade assombra, o descaso condena e a estupidez destrói. Mas uma torre há de se erguer do fundo de meu coração. E eu estarei à borda.
Um beijo.
9.06.2009
Roupa A Secar
Lisboa, 19 de Agosto de 2002, 00:08h
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