Querido Fernando,
Pois se o não vou por aí não voltou, é porque o seu e-mail existe. Então se existe, vou escrevendo. Mas também se não existisse, dava na mesma. O que quero dizer é que o não vou por aí foi enviado assim meio à toa, que o poema é do tempo da adolescência de minha vizinha. Entretanto deixa de ser menos bonitinho por conta disso? Afinal, foi a Celeste quem o mencionou hoje à tarde. A Celeste é tão gira... Contou-me da tal praia onde as velhotas de cabelo laqueados sentam-se para tomar café ao fim da tarde, com vestido de baile, esperando Godot, como se atrás delas ignorassem a Pizza Rute (Utte, em português eu-rop-eu), que só pelo cheiro/... A Celeste passeia pelo Picadeiro com o marido.
Mas nem tudo é um mar de cabelos laqueados. A Cândida ligou-me hoje pela terceira vez, e já não sei o que fazer para evitar/ Quero dizer, eu já te contei sobre a Cândida? Aquela tal ex-tóxico-dependente que encontrei em frente à cinemateca quando lá ia um filme do Jean-Não-Sei-das-Quantas, um francês? Pois desde então a Cândida liga para mim pelo menos uma vez de quinze em quinze dias, e quer saber quando eu vou/ Estou um bocado cansado disso tudo, sabe? Eu não quero mais ir à cinemateca com a Cândida, ela me deprime. E se ela, afinal, pensou que um dia/... Estou farto de expectativas. Ninguém devia ter expectativas. Tipo assim: nada, nullo, nihil, zilt, rien de quelque chose. Como as flores do campo, os massarocos da Ilha da Madeira. Mas não: todo mundo espera alguma coisa. Todo mundo joga um jogo cujas regras nunca consigo perceber. Não que eu pense/ A Cândida não joga jogo nenhum. Também, coitada... Quero dizer, eu não sou boa companhia para ninguém, é isso. Ademais, a Cândida é tão deprimente. Se tenho de escolher entre ela e o otimismo, prefiro ir ver aquele filme com o argumento do Kieslovski, que vai no Monumental. Taí, se o Manuel/ Ele/
Eu tenho a impressão que aquele caixa lá do MiniPreço anda com uns olhares estranhos para cima de mim. Hoje tive de comprar ovos. Então aproveitei para trazer também uma pizza, duas latinhas de cerveja e uma garrafa de vinho alentejano. Mas a Valdelice não estava lá. Se eu ao menos estivesse doente... Agora, Fernando, diga-me com toda a sinceridade: por que é que as pessoas têm medo/ Por que é que ignoram? Ou não têm mesmo nada para dizer?
Hoje, como já não há bastante tempo, o vento está de volta. É um vento que zune, esvoaça a cortina, bate a porta da cozinha. Não me lembro se no dia em que/ Se o vento/ Um dia aquele quadro, O Segredo, O Susto, caiu: a corda arrebentou. Podia ter caído no exato dia em que/ Não, ia ser ainda pior! Isso tudo é para implicitar que admiro quem sabe dizer não com tanta segurança. Mas talvez não inveje. O que há de nobre em dizer não que torna o ato por si só tão respeitável? O fato é que acho muito mais bonito os que dizem sim, por uma coisa à toa, um pacote de broa, um bocado de amendoim...
Spleen! Quero voltar à Madeira. Quero ir à Espanha! Quero dormir noutra cama! Quero receber um e-mail, qualquer coisa! Quem vem como Superman? Amanhã? Como o Peter Pan? Que me importa se o Jorge Amado um dia/ O Jorge Amado um dia me chamou/ mas agora está morto. Se ao menos o sorriso ao final de Magnólia... O fato é que já estou ficando um bocado cansado disso tudo. E o Fernando também. E a Irene, e a Reinilda, e a Telma, e o João, e a Maria de Fátima... Todos, cansadíssimos. Então eu proponho que vamos, juntos, para São Miguel. O Genaro falou que quando quiséssemos...
Beijos.
9.10.2009
Mar de Cabelos Laqueados
Sexta-Feira, 22 de Agosto de 2002, 00:07h
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