9.11.2009

Trezentos Ferrinhos Na Boca

Querida Florance,

Hoje, sexta-feira, cheguei em casa relativamente cedo, com a esperança de poder sair logo mais à noite. É que hoje me apetece sair. Mas talvez quisesse ter chegado mais cedo mesmo por conta da pizza três queijos que comprei ontem, embora tenha reservado para hoje. E cerveja Super Bock, porque a Sagres não presta. Embora a melhor seja mesmo a Coral, da Ilha da Madeira. Mas depois da pizza não sei bem ao certo aonde devo ir. Tem uns bares lá no Bairro Alto, mas acho tão esquisito chegar só num bar, embora tenha feito isso uma quantidade de vezes... Foi justamente assim que encontrei a Mafalda, sobre quem devo falar dentro em breve.

O que quero dizer mesmo é que, afinal, fui ver o que a Cândida queria. E se estivesse precisando de mim? E se estivesse numa crise de abstinência? Eu disse ontem que não tinha amigos, mas não era bem o que eu queria dizer. É assim: procuro estudar a impressão que causo nos outros, tirando conclusões. Em geral, sou uma criatura com quem os outros simpatizam, com quem simpatizam, mesmo, com um vago e curioso respeito. Mas nenhuma simpatia violenta desperto. Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar. Entretanto, se não o são, por que eu os haveria de assim considerá-los?

Mas o que eu me propus mesmo foi falar sobre a Cândida, com quem fui ter hoje à tarde. Pobrezinha... Sabe o que é ver todos os amigos morrerem um a um, como morreram os meus gatos todos? Pois a Cândida já não tem amigos. Todos morreram, um a um. Há tragédias maiores que a nossa.

Para tudo há um tempo certo. Hoje, por exemplo, escuto o disco dos 25 anos de Maria Bethânia com prazer, o que jamais pensaria poder/ Enfim, é uma pena que o Zé Gabriel tenha deixado de falar comigo porque eu insinuei detestar a Maria Bethânia. Será que agora podemos fazer as pazes? Quando será que a pobrezinha da Cândida vai poder/ Se ao menos eu tivesse prazer em estar com ela, mas não tenho. Não consigo acompanhar o que quer que ela queira dizer por muito tempo, e fico pensando como seria bom se eu estivesse em casa, lendo qualquer coisa... Há gente que detesta a sinceridade. Há quem prefira a polidez. A polidez é tão bonita, é tão, tão, tão superior! Aquele é um homem puro, aquele é que é um fino! A Regina vive enfatizando essa como uma qualidade que ela não dispensa: a educação. Embora goste tanto do Hair.

Acho que há algo de curioso na televisão. No canal 1 vai uma entrevista com a mulher do Jardel, furibunda com os portugueses. A repórter ri o tempo todo. O Jardel faz falta a qualquer equipa do mundo? A Karen acha que sim. No canal dois é um telejornal. Passa um ônibus que vai para Entrecampos. Falam qualquer coisa sobre acidentes promovido pelo excesso de velocidade. Eu quase morri em Odense, no trânsito. No canal 3 fala o Paulo Taborda, do sindicato de trabalhadores do sul e dos Açores. Não quero saber. No canal 4 vai a mesma coisa, só que com uma imagem um bocadinho melhor, e o som também. A BBC World ocupa o canal 5: Putin meets Kim, até rima. Tem um rapaz de óculos falando numa planta que acumula poluentes lá no canal 6, mas a música de fundo é muito irritante. A imagem do canal 7 é muito ruim, e falam sobre militares. Jardel de novo no canal 8, dessa vez com um especialista em clínica geral, falando diretamente do Recife. Esse homem de gravata amarela e barba bem feita do canal 9, discutindo tarifas aéreas não me convence. Canal 10: telejornal sobre o mal-cheiro lá na Várzea. Todo mundo reclamando. BBC de novo. Asas da Coragem no canal 12, elogiam o filme. Uma história comovente. Falam espanhol no Canal Galícia, treze, e o assunto é o esporte. Esporte em espanhol é ainda menos interessante. BBC Prime no canal seguinte: um filme inglês com um rapaz de terno branco e gravata borboleta. O terno é provavelmente de alguém mais gordo do que ele. Há um balde cheio de peras no canal 15, também espanhol. Foda no canal dezesseis: uma brasileira, loira, carioca e um preto. Oh, ah, ui, assim, mais, vai, oh, ah, uh, assim. A imagem não é boa... FashionTV, canal 17. Jardel no canal 18, siticom no 19. CNBC next: é o canal das finanças. Números, letras e figuras em cada canto possível da tela, correndo, piscando, aparecendo e desaparecendo. Que língua é essa que falam no canal 21? People & Arts aqui também, no canal 22. Jardel no 23. Chega!

Ilka acaba de me escrever perguntando, afinal, quem é o Tiago. Será que eu nunca tinha dito que é o meu assistente de pesquisa, o tal que faz mestrado em linguística na UL? Que é sobretudo o meu grande amigo, que escreve poemas e tira fotografias e mora na Rua Barbosa du Bocage? É assim tão difícil de adivinhar? Afinal as páginas do ILTEC (www.iltec.pt) estão lá, com CV e fotografias do Tiago. Mas se calhar ela tem razão de querer saber sobre mim. Será que eu sei sobre mim mesmo para dizer qualquer coisa a meu respeito? E Tiago saberá sobre/ E eu saberei sobre o Tiago que não o que as fotos, sim, as fotos com ele podem revelar?

Que horas devo eu sair hoje à noite? Depois da meia-noite? Será que o Jack vai ligar? E se ligasse e perguntasse, eu diria que sim? É melhor ir de carro, afinal, porque o transporte público... Os motoristas de taxi aqui em Lisboa não são muito simpáticos. Bom, eles também não o são na Madeira. Nem no Recife. Eu lembro por exemplo quando um dia um motorista se recusou a nos levar eu o Lourenço e a Prazeres porque queríamos todos ir no banco de trás, numa ménage à troi. Ele disse que não era motorista de seu ninguém. Então saímos do taxi & pegamos um outro que gostava de ménage à troi & ficou olhando pelo retrovisor o tempo inteiro. Já na Madeira queríamos ir para a Boca do Lobo tomar poncha de absinto... Bom, essa história eu já devo ter contado.

Florance, eu esqueci de perguntar como você estava. Como você está, minha grande e querida amiga? Eu cá ando agora com essa mania de estar sempre falando acerca do Jack e da Felippa e da Paula... Será que hoje eu ainda vou/... Mas já são quase nove e um quarto. Eu tenho de parar e fazer qualquer outra coisa. Nem a minha vizinha, que se mandou para a casa da prima e quer ver o filme mais novo do Brian de Palma!... Eu me recuso, não vou, não quero!

Agora diga-me, Florance, você acha que eu devo aceitar a proposta do Jack e dividir o apartamento com ele? Vive com essa idéia de que podíamos morar juntos, e correr o mundo, e tirar fotografias e escrever, e... Não sei se a Felippa ia aceitar, mas talvez se aceitasse... No entanto não sei quem/ Bom, isso logo se via. Mas tenho dúvidas de que/ Entretanto, hoje, eu topava. Vale a pena pensar muito o que/ Amanhã, por exemplo, nem sei mesmo se a Cândida vai estar ainda na casa da mãe dela, como é suposto estar... Eu sei, seu sei: basta ler a contracapa de Domingo, o primeiro CD de Caetano Veloso, está tudo lá.

10:00h, dia seguinte. Eu não devia ter ido para a casa do Jack, porque afinal nunca consigo dormir naquela cama. Para mim já é pequena quando está só o Jack, pois quando também está a Paula, fica simplesmente/ Os dois parecem não se importar, dormem como vacas em pasto largo. Eu mal consigo virar de lado, tão pequeno é o espaço. E depois vem o braço de Paula, e depois a perna de Jack, e o Jack fala e ressona e levanta e volta a deitar e a Paulinha dorme o tempo todo... Obviamente que os deixei dormindo lá, abri a porta, colei um bilhetinho amarelo no espelho do banheiro e peguei um taxi. Era o que eu devia ter feito ontem, afinal.

Parece que me perseguem, foi o que eu disse ontem. Na verdade eu já estava me preparando para sair, depois daquela conversa bastante engraçada que tive com Como-É-Mesmo-O-Nome-Dela? Deixe eu ver, em algum lugar de minha carteira está um pedacinho de papel... Clara: uma letrinha muito desenhada que lembra a caligrafia de Kátia, a minha irmã. E o número de telefone. Eu devo ligar? Mas sobre a Clara eu falo depois. Estávamos saindo do Frágil, que embora ande ultimamente um tanto quanto decadente, depois que o dono vendeu o espaço a outra pessoa para abrir o Jade, é ainda um lugar interessante. Já mesmo lá fora, ouvi a buzina que conheço tão bem: era o Jack, sacudindo a mão através da janela.

Enfim, cheguei em casa, e preciso mesmo dormir um pouco. Hoje as minhas vizinhas, as senhoras do apartamento ao lado, querem fazer qualquer coisa à tarde, e, se calhar, à noite também. Tenho de ligar para a Cândida e dizer que, afinal/ Tadinha, eu tenho tanta pena da Cândida... Será que ela queria ir ao Museu do Traje amanhã?

Enfim, cheguei em casa por volta das 9:30, e antes de subir comprei o tal pão da avó na padaria aqui do prédio, ainda quente e perfumado. É tão engraçada aquela moça brasileira com trezentos ferrinhos na boca, sorrindo e entregando um pão-da-avó sem manteiga como se fosse a coisa mais estranha do mundo alguém ir à padaria comprar UM pão-da-avó aos sábados, sem manteiga. Ela sempre pergunta: "com manteiga?", e ri quando eu respondo, porque já sabe a resposta. O que quer significar aquele risinho prateado?

Eu preciso dormir. Não sei se ligo para a Clara, se aceito a proposta do Jack, se convido a Cândida para ir ao museu, se atendo o telefonema do Isidoro, se dou uma tapa na cara da brasileira que vende pão: estou com tanto sono...

Beijos.

Sábado, 24 de Agosto de 2002, 10:29h

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