9.21.2009

Num Mundo Em Que Habitam Sidclays

Querida Maria de Fátima,

Ontem assisti pela segunda-vez o tal filme indiano de Mira Nair. Já agora não tive a mesma boa impressão que/ Quero dizer, o filme tem uma fotografia muito bonita, mas é mesmo trivial. Sob uma perspectiva puramente técnica, não chega a ser inovador. Entretanto, a narrativa sempre me comove. Esses dramas humanos/ A estética colorida é estereotipada, como não devia deixar de ser. Mas se queremos mesmo é esse efeito, está bem. Já o disseram: o Altman fez coisa melhor. Não gosto desse tipo de comparação.

"No outro final de semana a gente vai tá em Pipa." Verônica no terraço com Lucas. Lucas insistindo por favor por favor por favor: juro-juro-juro, mainha eu cumpro eu cumpro. Queria poder/ Hoje vai ser almoço na casa de D. Zezé. Festa em Família é um bom filme. Eu gosto da coragem do rapaz de se levantar no meio do filme e contar tudo o que aconteceu, como uma vez fiz, por razões necessariamente diferentes. E a festa aqui continuou como continuou ali. O mundo pertence mesmo ao cinismo, e eu já estou aprendendo as regras do desporto.

Ontem passei a tarde com Reinilda, de quem gosto tanto, por razões necessariamente diferentes. Sinto-me sempre confortável na casa de Reinilda: aqueles móveis, aqueles livros na estante, aquela mesinha forrada, aquela tela de proteção no monitor do computador, as canetinhas coloridas, as revistas na cestinha de palha... Reinilda sempre falando, e eu escuto tudo com bastante atenção: agora quer um copinho de água gelada? um docinho caseiro bem especial de jaca? uma bolachinha de água e sal? Desde 1920 foi assim. Hoje está fazendo regime, mas já esteve bastante deprimida.

Afinal, não vou conseguir ter acesso à internet. Tudo bem, eu passo sem internet. Eu passo sem absolutamente qualquer coisa. Embora aquele cartãozinho que vi na revista do avião/ Um cartão com antena, que dá acesso remoto à internet anywhere! Não é o máximo? Essas tecnologias todas! Verônica já sabe o meu sonho de consumo. Por que não fica? Quero dizer, por que não fico? Devo estar chegando no dia 01 de outubro, ainda muito cedo. Tiago, que odeia motoristas de taxi, vai perguntar se quero boléia outra vez?

Sabe de que gosto mesmo? Ouvir aquela música no carro, quando estou só. Não gosto de dirigir, mas gosto de estar só no carro. Por exemplo, ouvindo Selma Reis cantando Gonzaguinha. Eu canto junto, como se ali/ Mas ontem/ Aliás, Verônica sempre dirige quando saimos juntos. E uma ou outra vez fala mais alto/ Deve ser o motor. Ontem argumentava que eu devia impor o meu posicionamento acerca de como Lucas/ acerca do que eu penso a respeito da educação, etc. Eu não sei impor nada, sou tão fraquinho. Nunca podia ser carcereiro. Não é que queira me desvencilhar da respon/ Acredito que as crianças estão sempre muito desamparadas. Tudo pode acontecer a qualquer instante. Lourenço sempre esquece e repete a história de que estava um dia na praia e, enquanto a mãe se descuidou como havia de ser, a filhinha foi tragada pelas ondas e morreu em tão pouco tempo. Ninguém/ Como podiam aceitar uma morte assim tão rápida e despropositada?

Minguilim costumava também ir para a casa de Sidiclay, mas um dia deixou de fazê-lo. Tudo é possível num mundo em que habitam sidiclays. As mães pouco percebem, em sua ingenuidade, a possível crueldade no mundo das crianças, a fragilidade no mundo das crianças, o mundo dos adultos. Minguilim não chegou a morrer na praia, porque o melhor amigo da mãe estava lá para salvá-lo, lá dentro, no fundo, para salvá-lo: é bom que segure aqui, dizia, quase rindo e preocupado, se não quiser/ aqui é muito fundo. Veja se os pés alcançam/ É bom que segure aqui se/ A vida por um fio. O silêncio de jamais poder revelar qualquer coisa: as mães jamais irão compreender o silêncio no mundo das crianças.

Um beijo.

Recife, 08 de Setembro de 2002, 9:45h

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