9.22.2009

Um Vigésimo Saco de Cajá

Querida Maria Gomes,

O almoço foi sim bastante divertido, como havia de ser. Mamãe já tinha quase tudo pronto quando chegamos, de sorte que tivemos de ir buscar somente uns poucos complementos. Afinal viriam Rejane e Norma. Para começar: o almoço havia sido combinado para aquele primeiro domingo de minha estada/ Havíamos combinado que/ Assim seria mais fácil encontrar Kátia e Sharon, porque, como se há de saber, Kátia e Sharon só costumam visitar a mãe e a avó respectivamente e ao mesmo tempo no domingo.

Ainda bem que havia sol, porque o Recife - Paulinha não sabe - está em pleno inverno, até o dia 21, quando as lojas começam a anunciar uma possível coleção de primavera. Hoje comprei umas três camisas de malha de algodão, mas prefiro falar sobre elas em outra vida. O assunto aqui é a festa na casa de mamãe. Quando chegamos, ela enxugava uma testa salpicada de suor e virava os bifes com o fastio de quem acredita na macrobiótica. Foram beijos rápidos, porque os bifes estavam quase prontos.

Não há nada de especial no almoço em casa de mamãe, absolutamente. Quase tudo se repete, como o ritual de pegar Brasilt via Cais do Apolo para ir trabalhar na Prefeitura do Recife. Marinalva há que tempos acorda às cinco da manhã e volta toda feliz com um saco cheio de cajás. O almoço em casa de mamãe é a felicidade de um vigésimo saco de cajá. Entretanto hoje temos Rejane e Norma, de quem se falará dentro em breve.

Rejane é talvez a minha amiga de mais longa data. Eu teria uns dez anos quando a conheci? Uns doze quando começamos a sair juntos? Uns treze quando íamos à biblioteca púbica duas vezes por semana para trazer os mais variados livros? Rejane e A Maçã no Escuro. Rejane e As Boquitas Pintadas. Naquela época, meu único objetivo era ler 97 livros de Agatha Christie, e acho que quase cheguei lá. Eu preciso confessar, Maria, pela segunda vez, que era apaixonado pela Rainha do Crime quando tinha treze anos. Até mesmo li a autobiografia dela com o sabor de quem quer descobrir o mordomo no epílogo! Enfim, tenho a certeza de que fui ao carnaval com Rejane no centro da cidade, no último dia, quando tinha quinze anos. Vestia uma camiseta de estopa, eu lembro muito bem. Rejane sumiu na multidão e Rafael, aquele argentino de bigodinho, que falava sempre da mãe, apareceu como se fora Rejane. O que quero dizer é que se não fosse por Verônica ou se não fosse por Norma, se ainda não fosse por Seu Ailton, ou por Cileide & Cidclay, Rejane talvez hoje tivesse casado comigo, mas eu provavelmente não teria casado com Rejane, exceto pelo filho que ela nunca teve.

Depois do carnaval, ainda fui a muitas festas com ela, sobre as quais preciso um dia falar. Lembro-me muito bem daquela em que me apaixonei por uma professora lésbica/ Não, essa é uma história que vai merecer uma festa só pela história em si, como a festa em que fui e ela estava lá com a namorada muito dike, muito branca, muito gorda, muito dura. Sei bem a vodka que bebi e o tapete no dia seguinte; dormi num tapete ouvindo uns discos antigos de Zizi Possi. Quando acordamos, fomos à praia discutir a psicologia de primeiro semestre da FUNESO. Eu falo tudo isso porque é preciso que a felicidade de ter encontrado Rejane fique explicada aqui. Mas hoje estou muito contente que Norma tenha aparecido; acho que Norma é tão fundamental para a vida de Rejane: toda essa vida alternativa de comida e restaurante alternativos... Rejane precisava de Norma, como precisa de liberdade para ir à Índia encontrar o guru.

Enquanto Norma tentava convencer que o amigo dela era mesmo a cara do Bin Laden, Iuska ajudava Kátia no cabelo. Era preciso que ficasse muito preto que ela já tem trinta anos. O almoço tinha sido um sucesso, mas ainda vinha café com chocolate e bolo de rolo. Kátia não quer sugestões e quase sempre chora quando insinuam que Sharon precisa comer mais um pouco. Kátia sempre chorou com tudo. Passou duas semanas inteiras me detestando porque descobri nos diários que ela escrevia por quem nutria uma paixão quase mórbida. Kátia sempre foi muito sentimental, ao contrário de Iuska. Acho que é por essa razão que é Iuska a pintar os cabelos de Kátia quando aos domingos. Ilka, por sua vez, não sequer suporta o tema. Por que não gosta do cabelo, eu que o acho tão lindo? Ilka não tem muita paciência. Julga que esse papo de restaurante educativo não cola. Ilka prefere lavar os pratos, ou arrumar os legumes na geladeira.

Talvez a parte mais interessante do almoço tenha sido mesmo a venda de langerie no terraço, ao final da tarde. A discussão foi curiosa, embora Kátia não tenha ficado convencida de que uma calcinha vermelha fosse deixá-la mais sexy depois dos cabelos pretos recém-pintados. Iuska continuava achando. Kátia quis chorar uma segunda vez, e Iuska saiu aborrecida do terraço, como quem luta uma guerra perdida. Mamãe olhava tudo com o discernimento que sempre teve. Ganhou duas ou três calcinhas como prenda e ficou ainda mais contente. O almoço tinha sido um sucesso.

Beijos.

PS: Kátia fora apaixonada por Elvis Presley.

Recife, 09 de Setembro de 2002, 15:08h

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