9.16.2009

O Amor Conjugal e a Fé

Querida Kyoung-Sook!

Eu tenho tanta pena do Beethoven... Um campo de beterrabas, como uma vez insinuou o meu amigo Manuel, descendo no Planalto Central: aquela vermelhidão cor de sangue e Sevilha. Hoje eu fui à praia e agora, enquanto tomo vinho branco do Alentejo, escuto a única ópera que Beethoven compôs. Sabe que ele mesmo regeu o Fidélio em 23 de maio de 1814, no Teatro Kärtnertor, em Viena? Sim, depois de ter de alterar radicalmente a composição original, apresentada ao público pela primeira vez em 1805. A reação dos oficiais de Napoleão não foi nada boa, de sorte que Beethoven foi convidado a reformular vários aspectos da ópera, sendo um deles o tamanho. Originalmente, a ópera era composta de três atos. Quando foi apresentada pela segunda vez em 1806, tinha apenas dois.

A ópera nunca chegou a ter o reconhecimento merecido, o que provocou em Beethoven um desapontamento profundo. Beethoven é para mim o maior compositor de todos os tempos, eu já devo ter dito isso antes. E eu acho os diálogos em Fidelio simplesmente geniais. Aquelas palavras todas sussurradas como que por detrás de uma porta... É a história de Florestan, preso injustamente por seu oponente político Pizarro. Sendo informada da morte do marido, Leonora não quer acreditar no que ouve e resolve salvá-lo. Veste-se de homem, diz ser Fidélio e pede ao cárcere da cadeia de Sevilha, onde está Florestan, para empregá-la. Ocorre que a filha do cárcere, Marzelline, se apaixona por Fidélio, o que obviamente complica ainda mais a história. Entretanto, é o amor de Marzelinne que vai fazer com que Leonora reencontre o marido. O cárcere, Rocco, aprova o amor da filha e passa a ter grande afeto pelo possível genro.

Sabendo que o ministro do rei, Don Fernando, está por visitar a cadeia pública para verificar se os boatos de que há ali pessoas encarceradas indevidamente, Pizarro procura convencer Rocco a matar Florestan. Percebendo o desespero de Fidélio, Rocco nega-se a fazê-lo. Então Pizarro resolve agir por conta própria. Tudo acontece rapidamente: quando Pizarro chega à cela com o propósito de matar Florestan, já lá estão Rocco e Fidélio. Pizarro revela a sua vil estratégia. Fidélio sai das sombras e revela-se Leonora. Ameaça Pizarro de morte, mas é finalmente escusada de levar adiante aquele projeto pouco nobre por conta da chegada de Don Fernando. Quando este descobre o amigo Florestan ali, indevidamente encarcerado, exige que tudo se esclareça. Tudo esclarecido, Leonora e Florestan são deixados a sós para que possam trocar juras de amor renovado e eterno.

A última cena da ópera é mesmo muito tocante: lá estão todos, a cidade inteira, a cantar quase que um hino em louvor ao amor conjugal e à fé.

Mas não era sobre o Fidélio que eu queria falar. Hoje acordei muito muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sono o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum. Tive receio de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. Que manhã esta mágoa!

Terá sido essa a razão que me fez tomar o ônibus na Praça de Espanha em direção à Costa da Caparica. Hoje estive a manhã na Costa da Caparica, e agora tomo vinho branco fesco do Alentejo. À noite vai ter salmão, que eu mesmo fiz, na casa da Rita e da Inês Mateus.

Vejamos, eu tinha me proposto a falar sobre Cais, uma música do Ronaldo Bastos que é cantada tão comovidamente pela Elis Regina. Mas agora já não é sobre isso que vale a pena falar.

Um beijo.

Lisboa, 30 de Agosto de 2002, 18:52h

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