9.03.2009

O Que Eu Queria Dizer, De Fato

Querida Ana,

Eu precisava mesmo fazer uma faxina. Não que a casa estivesse suja o suficiente para tornar a necessidade justificável: eu assumo que certas coisas merecem periocidade e pronto. Então, antes de ir para a Madeira, tinha prometido a mim mesmo que a casa ia ser completamente asseada. E quando digo completamente, I really mean it. Faço tudo com muito mais cuidado que a D. Maria da Encarnação, embora nunca tenha sugerido a ela tal semelhante. Começo por tirar o pó, o mais mínimo, de todos os cantos possíveis: em baixo e em cima dos móveis, no topo da estante, ao pé da cômoda rococó. Depois venho com o aspirador de rodinhas e faço o maior barulho. Mas antes de o sol se pôr por completo, é preciso varrer a varanda, cuidar das plantas e lavar a mesa e as cadeiras do terraço sempre tão sujas de poeira. O sol se põe lindamente por entre as plantas de minha varanda. Só tenho pena de não poder vê-lo nascer. Mas olha, paciência.

Depois de ter a casa completamente aspirada, é preciso escutar qualquer coisa, senão não tenho ânimo de continuar a faxina. Por qualquer razão, foi o Bob Dylan. Bob Dylan?!... Posso até ver a sua cara de quem não acredita ser possível alguém escutar o Bob Dylan em 2002, o último ano palíndromo que vamos nós ambos experienciar. Pois eu escuto ainda o Bob Dylan, como escuto também a Janis Joplin e o Velvet Underground. Aliás, escuto bastante/ Bom, esse assunto não vale a pena, afinal sempre tive a certeza de que você não é uma pessoa muito musical. Como não o são a maioria das mulheres que eu conheço.

Mas eu estava na faxina. Ela continua com o óbvio mop, o nosso pano molhado com pinho-sol. Todavia, é preciso lavar o banheiro antes disso. Vê? Não é nada fácil. Sobretudo quando se sabe que, ao final, é ainda preciso fazer o jantar. Bom, a casa ficou como eu gosto, e para isso tive de deixar de ver o decálogo número sete do Kieslovsky, que fala sobre o sétimo mandamento, aquele que diz "não roubarás".

Muito a propósito, hoje recebi a estranhíssima ligação de Odara, reclamando privacidade, inconformada com o fato de eu ter feito público um acontecimento que ela sempre julgara ser o mais pessoal possível. Eu, na minha angústia de entender o que nos move, procurei ouvir tudo com muito cuidado, e pude até seguir a linha de raciocínio dela. Mas não posso concordar que tenha agido incorretamente. Por uma lado, eu não percebo essa discussão de fidelidade, por outro, a noção de realidade é para mim ainda mais vaga. Acho que foi exatamente por essa razão que resolvi fazer hoje um penne zita rigate com molho de queijo fresco e alcaparras. Para acompanhar, abri uma garrafa de Prova Régia, branco, fresco. Bob Dylan já deixara de se lamentar, e agora era a deliciosa voz de Stacey Kent que se fazia ouvir na cozinha.

Hoje foi feriado aqui em Lisboa, não sei muito bem de que santo. Quando saí, notei algo estranho. Não havia absolutamente ninguém nas ruas. Devem ter ido todos para o Algarve. Mas como eu já estava a caminho do trabalho, segui adiante resoluto, como se tivesse a certeza de que estava fazendo algo bastante nobre. Estranhamente tive medo de usar o elevador, porque se eu ficasse preso (nunca me aconteceu, mas todos já tiveram a sua experiência no ILTEC), não teria a quem recorrer. Imaginei passar um dia inteiro preso dentro de um elevador. Entretanto, tinha ainda o sentimento de nobreza, e abri a porta do elavador cheio de esperança.

Acho que gosto dos aposentos do ILTEC. Não mais do que o James, que às vezes passa a noite inteira ali. É que o fato de não ter muito espaço faz-me pensar que eu preciso fazer alguma coisa, e já. E esse impulso para trabalhar é fundamental para mim. É verdade, sou muito pouco disciplinado. Estou quase sempre buscando uma justificativa para parar o que quer que esteja a meio. Pode ser um café, pode ser uma música, pode ser qualquer coisa.

Mas era sobre a faxina que eu me propus a falar, e já estou completamente/ O que eu queria dizer, de fato, é que para mim o mais gratificante é ver a casa limpa.

Um beijo.

Lisboa, 16 de Agosto de 2002, 00:04h

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