9.28.2009

O Que Havia Ficado Para Trás

Querida Reinilda,

Já estava decidido que seriam duas tatuagens naquele final-de-tarde; já estava escuro. Eu nunca tive muita coragem, mas era agora inescapável que fosse naquele dia. O lugar não podia ser pior. Uma dessas casas semi-abandonadas, umas cortinas de chita por portas, recortes de revistas e fotografias beirando o abjeto por todo o canto. Cada um que quisesse expor a pele colorida sem espaço para pele de qualquer cor (não havia/ os negros fazem tatuagem?) O homem moreno-surfista, uns cabelos curtos, uns calções pretos, chegou coçando o cotovelo. Era jovem, mas já metia medo. Era jovem, era bonito, um rapaz bonito de provavelmente/ devia ter uns vinte e oito? Trinta e dois? O sotaque de argentino; tinha de ser.

Depois era mesmo uma pizza que queríamos, naquela pizzaria italiana em que a Regina trabalha. Ela, os olhos verdes de recém-acordada, perguntou o que seria, mas já sabia que eu sempre peço margherita, porque o manjericão vem fresquinho, recém colhido da horta. E cheira!... Acredita que estavam ouvindo Madonna? O quê? Já não recordo; nunca prestei atenção ao que quer que Madonna tenha tentado cantar alguma vez. Como, por exemplo, você que descobri somente recentemente que você/ Reinilda? Você apagou as minhas mensagens todas e sequer leu/ Reinilda, você vai ler alguma vez/ Reinilda provavelmente desistiu, cheia de amores por uma possível amiga lá na Alemanha. Tudo bem. Eu até prefiro ser trocado por um siticom norte-americano. Ou será tudo/

Depois de Madonna ou pizza margherita, veio uma conta cheio do sorriso disfarçado da Regina. Eu sabia muito bem. Voltamos para a pousada, uma noite quente seria aquela, de ventilador no teto e mosquito. Mas antes/ era preciso que ao menos uns cinco capítulos do livro de Kierkegaard (Tiago precisa ler/ é o livro que/ já a segunda-vez que o leio/ mas é tão parecido que precisa ler). Quando já dormiam, calcei as percatas de couro do El Corte Inglés e parti para/ Regina sabe onde. Havia tequilla sunrise, como na Costa da Caparica. Pipa, depois da meia-noite, é muito melhor que a Costa da Caparica. Dessa vez não ouviam/ dessa vez era o inevitável Bob Marley, de quem eu gosto, gosto.

Cheguei em casa por volta das quatro e meia; não foi uma noite tão má como eu havia imaginado; a diversão é sempre tão certa quanto/ de fato, prefiro a tequilla sunrise. Eu precisava - antes do famoso café da manhã, o melhor de Pipa - eu precisava caminhar um pouco e ver agora aqueles guarda-sóis fechados e uma maré crescente. Não havia ninguém na praia; Pipa fica muito mais bonita assim, com os guarda-sóis fechados. Mas já não valia a pena ficarmos por mais um dia, como havíamos planejado. Pegamos a estrada e o caminho de volta foi relativamente tranquilo, apesar daquele incêndio, quatro horas depois, que nos deixou imobilizados por cerca de três quartos de hora. O que era? O que seria? Quem era a vítima? O carro, um suicida, uma mulher que desce e sai correndo em pânico. Eram todas imagens fragmentadas e disse-me-disse. De fato, durante todo o passeio, não tirei uma única foto que/ Como vão uma vez recordar de mim quando estive em Pipa? Apontei a máquina/ Talvez quisesse mesmo registrar o que havia ficado para trás. Um incêndio à nossa frente.

Muitos beijos.

Camaragibe, 14 de Setembro de 2002, 20:29h

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