9.19.2009

Piada de Mãe Judia

Caríssimo Manuel,

É possível que hoje eu vá a Lagoinha, uma mini-Jericoacara na boca da vendedora baixinha que tinha nos chamado de jovens: olá jovens. Eu todo feliz. Parei todo atenção. Agora é assim em Fortaleza, e os motoristas de taxi andam aqui mais carrancudos que os de Lisboa. Talvez Lagoinha seja mais interessante que a praia daqui da janela desse hotel. Uma areia escura e tão pouca gente que chega a ser nada convidativa. E Pipa, a praia dos portugueses?

Agora de uma coisa eu estou certo: não quero ensinar na Universidade Federal do Ceará, se alguma vez terei que fazer o que é esperado de alguém com um doutoramento em linguística. Aquele campus ali é deprimente. Tem retropojetor, mas a lâmpada pode estar queimada. A secretária ri, uns óculos pesados, uma prótese amarela muito amarela. E imprimir? O laboratório tem teclados com as letras já desaparecidas, a monitora vasculha qualquer coisa dentro da CPU, uma chave de fenda vermelha na mão, uma caneta por trás da orelha esquerda. A impressora matricial fazia um barulho que demorou toda a minha paciência para sair dali.

Não que eu seja exigente, mas canjiquinha de caixa num hotel quatro estrelas é algo pouco admissível. Ana adora comida de avião. Ela veio e me contou a história do amigo impossível: queria sair com a secretária dela, casada (ele também) e, pasme, chegou mesmo a ligar para a casa da coitadinha, tão assediada. Não queria sair com o homem: nem forró, restaurante, cinema, porra nenhuma. Mas era de uma delicadeza lusitana e resolveu um dia passar o telefone para o marido. Ana acha ótimo. Ângela também. O marido disse-lhe qualquer desaforo e o rapaz nunca mais ligou para a secretária. Algumas coisas funcionam.

Desde que cheguei, só como peixe, mas não me pergunte qual. Ontem comi uma peixada ao almoço e um peixe grelhado ao jantar. Mas também comi camarões. Piedade gosta de centavos, tem cianose e contou uma piada sobre mãe judia que ninguém entendeu: mas nada necessariamente nessa ordem. E o hotel fica distante do restaurante, de sorte que/ Tomamos sorvete na volta. Há/ Alguns eventos são de extrema importância para os fatos que ocorrem como consequência lógica, mas como saber quais? A prima da M. Helena anota todos os sonhos que tem num caderninho, e já conseguiu observar que muitos são premonitórios. Será que eu sonho com o que vai acontecer?

O que talvez eu queira implicitar é que se hoje amanheci com dor de barriga, há uma razão muito lógica para isso. Mas talvez o que quer que eu diga soe como uma piada de mãe judia que ninguém entende. E é por isso/ Talvez seja por isso que Verônica hoje não me leva a sério. Hoje, na hora do desjejum, Verônica não me leva mais a sério. Se calhar, eu sou mesmo infantil. Adulto não pode ser impulsivo nem escrever um e-mail dizendo que desculpe mas Tiago vem me buscar. Então estou percorrendo o caminho oposto. Agora se quer saber a verdade: eu não me importo nem um pouco com isso.

Ou me importo? Ou faria um concurso para professor da universidade federal de pernambuco assim mesmo? Reinilda há de dizer que - se ainda tem as minhas cartas - não mudei muito. Não estou percorrendo caminho em direção contrária nenhum. Reinilda há de ter as minhas cartas, porque ela sempre se importou comigo, sempre. Guarda uns diários que eu tenho, guarda um romance que escrevi. Tirou tudo do fogo e esconde tudo nuns armários de madeira que fez o namorado. Saiu da casa da mãe com um filho recém-nascido e foi morar com as freiras, sem saber de quem era a criança. Teve muitos namorados, muitos, que a década da Revolução. Reinilda forrava a mesa e olhava para a toalinha bordada como quem olha para dentro de si mesma.

Mas agora é preciso arrumar as malas e voltar às pressas. Lucas está doente, como não podia deixar de ser. Não que eu quisesse ficar aqui por mais tempo: somente queria poder entender o sonho como quem anota tudo num caderninho. André estava muito, muito doente, mas não era o passado. Era como se todo esse tempo ele apenas estivesse ausente. Tudo o que eu via na expressão dele era transtorno. Pela doença? Pelo tempo ter passado sem mudanças? Eu não sabia, mas era pouca a minha curiosidade. Ele se aproximou de mim como quem não sabe ao certo onde vai pisar e confessou que, enfim, me amava. Eu o olhava calado, enquanto notava a sua angústia crescer, aquela lágrima quase caindo. Devo ter passado horas assim, mas ele enfim percebeu o que eu queria dizer, depois de tanto tempo (quase dez anos): que era tarde.

Um beijo.

Fortaleza, 06 de Setembro de 2002, 07:06h

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