9.18.2009

Por Trás da Tinta Branca

Querido Lourenço,

Não há hipóteses, a cama já não é. Entretanto o dia ainda está como quando o Jack saiu. Bem, ele não gosta da Gal Costa, mas não esperava que saísse tão cedo. A festa terminou antes da meia-noite e ele quis saber se podia/ Podia ter vindo, mas é que queria falar sem Summer Terminology Mix Mania 2002, que hoje não estava para música nem gim. Tive de escrever-lhe para dizer que, enfim, não preciso que venha. O Tiago faz questão de me levar ao aeroporto, e eu ao contrário do James, não sei/ tenho imensa dificuldade. Devo ligar e dizer que não precisa? Devo ligar agora, ainda seis e um quarto? É que perdeu o telefone, mas acho que já o encontrou em/ acho que estava sob uma mesa, não lembro.

O fato é que Jack apareceu e todo mundo já se tinha ido. Foi ótimo, porque me ajudou com os pratos: havia muitos, uma pilha. O que me irrita no James é sobretudo o mal-humor. Quero dizer, o silêncio às vezes. Se não lhe faço uma pergunta, pronto, parece que somos dois desconhecidos num carro indo para Figueira da Foz. Será que é assim com todo mundo? É que às vezes isso cansa um bocado. Como por exemplo quando eu sugeri essa apatia, essa falta de pergunta, e ele, no dia seguinte, começou, quase que como um exercício: o que eu fazia nos sábados à noite quando tinha dezoito anos? E eu sei lá! Já o Jack, não. O Jack é todo interesse, todo disposição. O Jack é uma pergunta. O James, uma reticência carrancuda. Se calhar, devo aceitar a proposta do Jack.

Ainda assim, custa-me imenso ter de escrever ao James e dizer que não venha, o Tiago é bastante militar nessas coisas, não aceita argumentos. James e o que quer dizer por trás daquela garrafa de água. Acho que deve ter ouvido qualquer coisa dos pais, porque eu quando quero uma ameixa que se oferece, uma ameixa que não vai fazer falta, eu meto a mão e como. James não gosta dessas coisas de meu calção de banho em sua bolsa, e desde aquele dia sempre passou a me servir água como quem diz se até água, é preciso que me peça. A permissão ainda faz parte das leis dessa casa: a água caindo no copo. Eu nunca lhe contei sobre os diários de André, está claro.

Ademais, o pudor. O pudor de quem pensa estar sendo desejado indevidamente. Eu, eihn?! Jack, por outro lado, é aquela sensualidade que não quer nada, mas sê-la. Um narcisismo bem interessante esse o de Jack. Saiu porque detesta a Gal Costa, mas nunca vai ser frontal. Eu gosto bastante de Jack. Se calhar, devo aceitar a proposta que me fez outro dia.

Cheguei em Fortaleza por volta das nove da noite, e o vôo foi como eu esperva: um tédio. Não teve Ensaio Sobre A Cegueira que me fizesse pensar noutra coisa senão o tempo. Tive três cadeiras vazias ao meu lado, e uma refeição vegetariana sintética. Os aerovelhos (eram todos muito velhinhos, coitados) não eram nada simpáticos, e tinha aquele grupo de três viados italianos à minha frente, empurrando a cadeira para trás todo o tempo. Por que viado italiano tem tanto sono? E fome. Queriam sempre: mais pão, pode ser outro prato? mais coca, café. Pode ser um uísque?

O Pedro Paulo outro dia/ Ah, preciso visitar o Pedro Paulo quando estiver no Recife. Mas é que lembrei quando me escreveu confessando que estava sempre a fazer provocações. Como se eu já não soubesse... Ocorre que com o Pedro Paulo até mesmo essa confissão é já uma espécie de provocação. Quer saber como as pessoas vão reagir aos papéis que vai assumindo. Agora aposto que vão ficar aborrecidas/entediadas/penalizadas/chocadas/desinteressadas. O leque todo aberto, e o Pedro Paulo se divertindo por trás dele como faz uma gueixa quando se quer rir. A boa gueixa, dizia outro dia o documentário na televisão ligada ao acaso, a boa gueixa não pode revelar os seus verdadeiros sentimentos. Será que Pedro Paulo é pura dissimulação ou a fragilidade se desfaz por trás da tinta branca?

Encontrei na recepção a Ana, Ana-Maria-Família. Sempre tão doce falando que gosta mesmo de turismo é com o marido. E a Verônica? Ana nunca procurou ser menos óbvia, mas também é uma doçura e sobretudo cristã. Conversamos sobre ela cá: as confusões e eu lá: as festas de aniversário. Um saduíche club-qualquer-coisa para ela. Uma salada caesar sem vinho nem cerveja à minha frente. Acho que ontem estive com dor-de-cabeça. O vinho no avião era péssimo. E tenho de ter a certeza de que não me sento perto do lavabo na viagem de volta.

Em Lisboa já são quase 11 da manhã, e aqui ainda sequer o serviço de despertador. Havia uma mulher de biquini preto e touca na cabeça nadando muito mal na piscina do hotel; esse ar-condicionado é barulhento. Ontem fiquei em pânico porque não acertava desligar a luz. Não sei de onde tiraram aquela idéia de presente. Ninguém me perguntou nada. Eu tenho grande interesse/ Eu queria poder ler. E talvez por conta disso é que/ Serei menos claro assim? Aquele que se me apresento é muito mais distante do que aquele que aqui se expõe. Não sou/ Sou esse.

Beijos.

Fortaleza, 04 de Setembro de 2002, 06:59

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