9.01.2009

Tout Les Matins

Querido Alcidésio,

Eu bem pude saber que seria assim, depois de ter dormido tanto antes de ontem. Agora não tenho sono, mas idéias. Talvez tenha me levantado com o propósito de registrar o nascer-do-sol de minha varanda no dia 14 de agosto de 2002. Ao longe, enquanto escrevo sob a iluminação opaca da tela do computador portátil, só há um ou outro ruído de automóvel, mas através da janela, quero dizer, através da cortina diáfana, há muitas luzes. De que lado o sol vai nascer? É evidente que, estando num oitavo andar, com essa varanda imensa, tenho o privilégio de poder escolher o melhor ângulo... Mas não é sobre isso que eu quero falar agora. Acho que tinha me proposto a falar, ou melhor, a tentar compreender a razão pela qual acordei tão cedo, senão a mais óbvia dela, a que eu já mencionara: o fato de ter dormido demais no domingo passado. Ali eu precisava mesmo dormir bastante, mas agora acho que devia ter resistido um pouco mais.

Quando eu tinha - o quê? - uns catorze, quinze anos achava que dormir era/ achava que não podia haver algo mais idiota do que dormir. Enquanto havia tanto por ser escrito... Mas para quem? É verdade então que o Voloshinov sempre esteve certo? Se esteve, então um diário assim faz mais sentido. Entretanto, hoje penso que dormir é uma das coisas mais prazerosas possíveis. É uma pena que prazer e culpa sempre andem muito perto. E a propósito, vi ontem pela primeira vez o Quarto Decálogo do Kieslowski. O homem é de fato um gênio, ele e o seu parceiro, também um Kristof. Tiveram a idéia de fazer os dez filmes numa noite de chuva e bebedeira: alguém devia fazer um filme sobre os dez mandamentos! E fizeram o que é para mim a obra-prima do cinema. É o primeiro DVD que comprei em minha vida, embora ainda não tenha onde tocar. Isso talvez mereça uma explicação: como a minha vizinha está no Algarve, e tenho a chave do apartamento dela para atividades que tais/ Mas também uma ou outra vez verifico se os gatos têm comida. São dois gatos. Eu já falei dos gatos da Maria Helena? Já devo ter mencionado os treze gatos envenenados de minha infância, entre eles, minha filha, a gata que, depois de um ano, jogada fora pelo meu pai, reapareceu no portão de minha casa, chamando por mim. Morreram todos envenenados, e eu assisti a cada uma das mortes trágicas, no jardim. Depois saí e fui ver um filme do Godard, não me lembro qual.

Ontem passei o dia todo no ILTEC, fazendo atividades absolutamente pessoais. Se tivesse um pouco mais de energia e dedicação, teria escrito o conto que talvez vai ser, enfim, o mais difícil de compor da série. Mas tem a música, tem as atividades burocráticas que me dão ao mesmo tempo ódio, tédio e prazer. Preciso de organização, da sensação de completude, para poder sossegar. Entretanto, o fato de usar tantas horas do dia organizando documentos no computador faz-me pensar nas horas perdidas, ou nas experiências mais ricas, menos repetitivas que podia estar tendo. Agora, por exemplo. De que me serve estar escrevendo isso? Então, é a velha pergunta: então como viver?

Acho que a resposta, a mais superficial delas, está no livro de fotografias do Ed van der Elsken, um dos mais belos livros de fotografia que eu já vi. Chama-se Love On The Left Bank, e tem essa mulher belíssima, a Ann, que vagueia pelas ruas de Paris: linda, sedutora, livre, assim como eu queria/ não importa. Acendo a vela para poder ver algumas fotos novamente. A luz artificial me incomoda, e o sol nunca mais vai nascer.

Eu estou com fome, mas não muita. Já há algum tempo que não vou ao supermercado, de sorte que não tenho sequer café aqui. Preciso fazer umas economias, pois a viagem para a Madeira foi um bocado dispendiosa. Ademais, não quero entrar na reserva. Tenho os dólares no Brasil , mas parte deles vai ser usada para comprar uma boa máquina fotográfica. A fotografia é algo que tem despertado bastante o meu interesse ultimamente, por razões um tanto quanto óbvias, embora acredite jamais ter o talento suficiente e necessário para, por exemplo, fazer um livro como o do Elsken. Falta-me, é claro, técnica. Mas sempre fui muito superficial em tudo, e isso aos trinta-e-três já não tem volta. Tem o médico a recomendar tangos argentinos. Talvez um chá ia cair bem. Um chá de camomila, antes do sol nascer. Tem o conto da LFT, mas é o pôr-do-sol. Não tenho ninguém para chamar: venha ver o sol nascer!

Lembro-me de quando criança: vamos abraçar o sol. O tempo passa rápido, e, ao invés de ter a vida de Ann, tenho essa de escrever às 5:58 sobre um sol que não vai nascer nunca. Planos eu tenho. A maior parte involve atividades solitárias. Mas tenho a esperança do convívio social que abomino. Não, quero reformular: tenho a esperança da diversão pura, do riso gratuito, da conversa sem propósito. Tenho a esperança de poder voltar atrás e viver isso que nunca/ Eu não quis ser melancólico, mas é algo que não sei evitar. Ainda mais quando estou com fome...

Não há muito que me interesse comer aqui, senão esses biscoitos de aveia. Já está o copo no microondas: vai ser chá de camomila, enquanto o sol/ Hoje... Não, prefiro falar de ontem. Ontem nada aconteceu de especial, senão o diário de viagem sobre a Madeira. Se conseguir levar o projeto até o fim, acho que vai ser interessante. Mas o diário só aconteceu ao final do dia... O resto foi usado/ o resto foi tão desinteressante que não vale a pena mencionar. Passei-o no ILTEC, ouvindo música. É verdade que tentei iniciar o tal conto, com epígrafe e tudo, uma epígrafe linda por sinal. Mas achei que o início não estava nada bom; tenho de repensá-lo: é um conto importante.

O ruído dos carros começa a se tornar maior e mais frequente. É Lisboa, a todo vapor. A casa cheira a camomila e o céu... O céu... É preciso agora esperar que o sol desponte, porque sinto que isso está para acontecer a qualquer instante.

Passados já uns tantos minutos, volto. Não sei se desapontado. Já é dia claro lá fora, embora o sol não tenha dado o ar de sua importância. Cansei de esperar, mas estou comovido: o dia pode amanhecer de uma clareza solar sem que necessariamente o tal astro/ o dia/... É dia!

Beijos.

Lisboa, 14 de agosto de 2002, 6:43h

Sem comentários: