9.13.2009

Um Sétimo Segredo

Ilka Querida,

Hoje eu descobri que a Alcilene, afinal, tem uma filha. Ia chegando ao ILTEC, e lá estavam as duas, repimpadas, nos banquinhos de cimento bem à frente da farmácia. Subi o elevador pensando se ela teria se recuperado da morte tão trágica do marido. Já imaginou o que é ver alguém estourar os miolos bem na sua cara? O desespero de correr para a porta do quarto, para a filha de cinco anos, ainda sonolenta, esfregando os olhos, quase assustada com o barulho; de correr para a filha e impedir que ela veja o espetáculo de sangue respingado por todo o canto, de tentar disfarçar o sangue na mão, no rosto, o sangue nos olhos da filha e o pânico, o grito, e a lágrima? Ainda bem que não me viu. Tenho medo agora do elevador.

O dia não foi nada de especial. Mas também, o que esperar de uma terça-feira de agosto em Lisboa? Está toda a gente na praia. Alguns ficam, e morrem. Hoje, voltando do trabalho, vi dois homens saindo de um carro com paredes de vidro, carregando um caixão todo ornamentado para dentro de um prédio. Olhei as janelas, mas não havia nenhum sinal de morte. Há sinal de morte nas janelas de um prédio? Eu julguei que sim. Mais adiante, dois homens dentro de um carro estacionado. O clima não parecia dos melhores. Um era gordo, e ocupava a cadeira do motorista. O magrinho, coitado, com cara de trabalhador de construção civil, olhava para o chão e parecia triste.

Há dois vinhos brancos de que gosto muito. Um é o Prova Régia, tão suave, e o outro é o João Pires, com um sabor acentuado à pera, mas também muito bom. Hoje resolvi que valia a pena abrir a única garrafa de João Pires que eu tenho na geladeira. Talvez tenha sido o Chet Baker, não sei. Eu gosto tanto do Chet Baker cantando The Thrill Is Gone, com aquela voz tão suave, tão gay. Depois vem o Caetano e escangalha tudo com Black & White.

Agora me diga: eu tenho culpa se não deu nada certo com a Virgínia? Tudo bem, eu entendo que ela me odeie, mas isso é um bocado infantil, não acha? Quer dizer, podia até ter rolado alguma coisa, mas não rolou, pronto. Ou, por outra: rolou, mas não com ela. Paciência! Agora vem com essa conversa de professor de história e não-sei-mais-o-quê. Olha, foda-se. Aquela borrachina? Pronto. Bye-bye, so-long, farewell.

Era uma música do Guilhermo. Guilhermo... Miguel... Frako-o-Forte! Miguel agora corta o cabelo e espera que/ Vai levar o filho para casa, Miguel, mas volta tarde demais. É a Eva. Mãezinha de todas as maçãs, impostora dos desejos de sangue. Sangue, Pinkhassov! Sangue na mão de Alcilene, no rostinho de Renata e no chão do metrô.

E o que tem se me amam? O que tem é o fardo, como o de Bernardo Soares. Embora eu tivesse prometido/ Aliás, essa foi a razão pela qual não escrevi ontem, como era esperado. Mas precisava contar a revelação: a filha de Alcilene, o caixão no prédio vazio de verão lisboeta. Amanhã, quero dizer, depois de amanhã, nas primeiras horas da terra do fado, quero ligar para o Jim com o cartãozinho de telefone público e dizer que desejo de um tudo, o melhor, etc. Dez anos depois é quando o poema/ ele foi morto. Públio Siro tinha razão.

O que resta acontecer hoje que valha a pena esperar? Não decidi ainda se aceito a proposta de Jack, preciso pensar no assunto. E, francamente, não estou a fim de sair. Portanto eu acabo por aqui. E se acontecer/ de fato acontecer alguma coisa até amanhã, eu conto. Ou será um sétimo segredo.

Muitos beijos.

Lisboa, 27 de Agosto de 2002, 20:58h

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