11.23.2009

Flor-de-Lis

Querida Margarita,

Ontem foi mesmo o último dia perfeitamente palíndromo que a nossa geração terá vivenciado: 22/11/2002. O próximo será apenas em 11/11/2112. Houve um hiato entre os dias 11 e 22 do ano corrente, mas vamos ver o que se passa. Na verdade, o silêncio já precedia o intervalo dos palíndromos, se há uma verdade. A M. Helena acha que não, e quer investigar a esquizofrenia.

Não há muito o que contar/ Algo aconteceu, mas até agora não entendi muito bem. A festa da Maria foi um sucesso, como as fotos poderão sugerir. Aquela alegria incerta e quase imponderável que alegra qualquer coração humano ante a dor dos outros, e o desconforto alheio, ponho-a eu no exame de minhas próprias dores, levo-a tão longe que nas ocasiões em que me sinto ridículo e mesquinho, gozo-a como se fosse outro que o estivesse sendo. Por uma estranha e fantástica transformação de sentimentos, acontece que não sinto essa alegria maldosa e humaníssima perante a dor e o ridículo alheio. Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado. Mais terrível de que qualquer muro, pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros.

Não que a Tânia, por exemplo/ Ela não deve ter ficado/ Não vai saber jamais. Enquanto isso, a Rita deitou a cabeça como quem quer ouvir o meu coração. Estamos ainda falando sobre a festa de aniversário da Maria, em que tudo aconteceu. Se eu talvez não tivesse tido aquela dor, é possível que estivéssemos lá até agora. A Celeste bateu com certa insistência e eu tive de procurar saber exatamente o que havia por trás daquela sofreguidão. Quando percebi que as horas passavam sem muitas novidades, quis descartar as possibilidades mais funestas, que eu ando um bocado assim. Mas depois, vendo ali aquele quatro cheio de vodka/ Eu não dormi muito bem até a manhã seguinte.

Acho tão bonito quando as pessoas vencem o pudor e fazem o que sentem sem se importar com o que quer que isso possa/ É verdade, para cada ação há uma reação. Essa é a terceira lei de Newton? Oh, Margarita, sabes a história por trás da flor-de-lis? É que a Lorna sonhou outro dia que eu havia escrito para ela anunciando uma tatuagem nova. O sonho teria sido tão real que ela correu na manhã seguinte para verificar em sua caixa de correio se essa tal mensagem de fato chegou a existir.

Muitos beijos.

Recife, 23 de Novembro de 2002, 11:29h

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