9.30.2009

É Assim

Querida Telma Manor,

Nada de dentista, nada de nada. Hoje foi um dia completamente/ desses que a gente chega ao final e acaba se perguntando se vale mesmo a pena viver em Recife. Quero dizer, basta ir ao Hiper Bompreço da Caxangá. Detesto esperar, detesto filas, odeio, abomino, desprezo, tenho nojo, pavor, síndrome de gente mal-educada e feia. Não é de estética que estou falando; não é isso. É uma fealdade mais profunda, maior. Que cheira mal. Dá para perceber? Isso sem falar nas farmácias; por que há tantas delas? Nos hospitais. Nas filas de supermercado e banco. Isso não existe em lugar nenhum; é quase uma indústria. Telma, olhe a cara das pessoas na fila de um supermercado, às cinco da tarde de uma terça-feira! Tenha saudade de tudo isso quando estiver em Denver, olhando uma revista de fotografia estilizada sobre os parques de diversão no nordeste do Brasil. Viver é mais perigoso; alguém disse isso?

Tudo bem, amanhã tem a Marieza, tão simpática, sempre oferecendo o pacote mais caro. Mas a Telma sabe exatamente o que quer. Marieza detesta que não perguntem de que é feito aquele bolinho, que não caiam nas graças dela de vender o pacote mais caro. Eu também sou bastante frio nessas horas, mas costumo ser ludibriado. Ou, quando quero, manipulo o jogo ao meu favor. Mas, Telma, por favor, amanhã conte-me tudo, está bem? Prometa. Enquanto isso, hoje à noite; Lourenço vem me buscar. Não.

Lucas está doente. Coisa nenhuma. Tive de ir ao hospital hoje na hora do almoço e ouvir o que eu já sabia; Lucas não está doente. Há dezenas de crianças assim com diarréia. A médica me chama de pai e ri como quem quer passar segurança, como quem quer me acalmar. Eu lá estou nervoso?! Volta que volta; o trânsito nessa cidade é caótico. Erro o caminho. Vou ao correio. Pronto, os últimos cartões postais jurando alegria em terras tropicais. Hoje choveu o dia inteiro. Não teve/ O que é que podíamos fazer senão ir almoçar na casa de mamãe?

Ontem? Ela perguntou, e eu não recordava o que tinha feito ontem. Não sei. O que fiz ontem, senão ter ido ao dermatologista que sempre quer saber como é o sistema de saúde na Europa? Não me importo! Eu nunca preciso ir a médicos; eu nunca adoeço; tenho uma saúde! Mas, está bem, faço os tais hemogramas; eu não me importo. E vejo se conserto esse buraco no dente, o último dente da arcada superior direita, caso me encontrem desfigurado. Ontem? Eu tentei ver Oh Brother Where Art Thou? Mas não gostei, e o filme ficou inacabado. Preferia ter lido o Diário de um Sedutor?

Mas se quer saber a verdade, estou bem. Ah, isso estou. Começo a perceber o que não me faz falta. É triste, é é. Mas olha, é assim.

Beijinhos.

Camaragibe, 17 de Setembro de 2002, 18:01h

9.29.2009

Os Grilos Já Não Cantam

Querida Rejane,

Parece que os domingos estarão mesmo reservados para as reuniões em família, e dessa vez eu precisava mesmo rever a Graça. É verdade que tinha convidado, para além da mãe da Graça (Tia Lu), também as tias Nice & Dora. Tia Nice disse estar muito cansada, não viria. Tia Dora deu para ensinar catecismo. Pronto. Seria uma almoço com Tia Lu e Graça, além das irmãs de sempre: Kátia, Ilka & Iuska, e da mãe. Kildrey não tem muita paciência para eventos que tais; nunca teve. Então, depois de escutar a trilha sonora do Blanche (aquele filme do Kieslowski), como faço toda manhã, e de resolver algumas questões de ordem burocrática, fui até a casa de D. Miau buscar a trupe.

(O sábado tinha sido um sábado preguiçoso. A viagem de volta e o almoço de beira de estrada talvez tivessem nos indisposto. Já não recordo exatamente como se passou a tarde, mas já para o angelus decidimos visitar o tal terreno acidentado que Verônica quer comprar em Aldeia. É ainda mais distante! O terreno é de fato bastante irregular, mas é possível, com algum dinheiro, criar uma estrutura quase subterrânea e permanecer como que encrustados no meio de uma vegetação nativa que lembra os quadros do Albert Eckhout - aqueles que vi no Museu Nacional de Copenhague. De lá, seguimos para uma videolocadora, e então, antes dos filmes, queríamos mesmo era uma pizza.)

Tia Lu não demorou muito, mas chegou com um joelho esfolado. Graça tinha propositadamente deixado que ela caisse na calçada de concreto, porque Graça às vezes é perversa. Finge não sê-lo, com aquelas trancinhas ingênuas, mas não convence absolutamente ninguém. Ficou decidido que Tia Lu iria no lugar de honra, no banco da frente. Sharon Stone, Kátia & D. Miau não se importavam de ir no banco de trás, porque era assim mais confortável do que um Tabatinga ao meio-dia.

Por que tinha de ser feijoada, se as duas irmãs têm colesterol altíssimo e pressão arterial não menos baixa? Sugestão da Graça. Elas comiam ressabiadas, mas não vão morrer agora. Se calhar, foi mesmo por conhecer a Graça que Tia Nice não veio. Já devo ter lhe dito que tia Nice é a mais regrada de todas as irmãs; aquela que ficou mesmo de fato precisamente para tia. Chega a ser muito séria, embora ainda recorde com certa saudade o único namorado que teve, o tal que teria partido para a Guerra. Há um episódio sobre Tia Nice/ Como pude ter esquecido de Djanira? Ela teria vindo? Djanira é a irmã de criação que viveu durante muitos anos com Tia Nice. Foi Djanira quem achou D. Estefânia morta no banheiro.

É inevitável que as várias histórias da família sejam repetidas nessas ocaisiões. Eu não me importo, até mesmo incito as pessoas para que contem o que quer que se lembrem. Tia Lu, por exemplo, contou a respeito de um namorado que teve por vários anos. Clóvis. E falou acerca de um namorado de mamãe que eu jamais ouvira falar. Depois foi a vez de tentar dar conta do que faz ou fez cada um dos primos; a família é imensa. Iuska participa ativamente; Ilka não gosta, e resolve ler uma revista. Kátia uma ou outra vez lança um comentário, embora faça questão de transparecer que não está prestando atenção a nada (mentira).

Há sessões de fotografia, muitas poses e cada um que queira ver imediatamente o resultado. A tarde foi rápida, e tivemos um café muito simples, com pão doce, tapioca, bolo de rolo e pamonha. Umas velas dispostas pela mesa e todo mundo cansado. Eu percebi, embora Iuska tenha depois sugerido com a sua usual perspicácia ter sido provavelmente uma impressão minha enganosa, que umas poucas pessoas naquela reunião em família faziam comentários bastante críticos a meu respeito. O engraçado é que para mim nada disso já tem muita importância. Lembro de como os grilos me incomodavam antes de partir para Lisboa, mas agora os grilos já não cantam. As noites têm sido tranquilas.

Um beijo.

Aldeia, 16 de Setembro de 2002, 12:21

9.28.2009

O Que Havia Ficado Para Trás

Querida Reinilda,

Já estava decidido que seriam duas tatuagens naquele final-de-tarde; já estava escuro. Eu nunca tive muita coragem, mas era agora inescapável que fosse naquele dia. O lugar não podia ser pior. Uma dessas casas semi-abandonadas, umas cortinas de chita por portas, recortes de revistas e fotografias beirando o abjeto por todo o canto. Cada um que quisesse expor a pele colorida sem espaço para pele de qualquer cor (não havia/ os negros fazem tatuagem?) O homem moreno-surfista, uns cabelos curtos, uns calções pretos, chegou coçando o cotovelo. Era jovem, mas já metia medo. Era jovem, era bonito, um rapaz bonito de provavelmente/ devia ter uns vinte e oito? Trinta e dois? O sotaque de argentino; tinha de ser.

Depois era mesmo uma pizza que queríamos, naquela pizzaria italiana em que a Regina trabalha. Ela, os olhos verdes de recém-acordada, perguntou o que seria, mas já sabia que eu sempre peço margherita, porque o manjericão vem fresquinho, recém colhido da horta. E cheira!... Acredita que estavam ouvindo Madonna? O quê? Já não recordo; nunca prestei atenção ao que quer que Madonna tenha tentado cantar alguma vez. Como, por exemplo, você que descobri somente recentemente que você/ Reinilda? Você apagou as minhas mensagens todas e sequer leu/ Reinilda, você vai ler alguma vez/ Reinilda provavelmente desistiu, cheia de amores por uma possível amiga lá na Alemanha. Tudo bem. Eu até prefiro ser trocado por um siticom norte-americano. Ou será tudo/

Depois de Madonna ou pizza margherita, veio uma conta cheio do sorriso disfarçado da Regina. Eu sabia muito bem. Voltamos para a pousada, uma noite quente seria aquela, de ventilador no teto e mosquito. Mas antes/ era preciso que ao menos uns cinco capítulos do livro de Kierkegaard (Tiago precisa ler/ é o livro que/ já a segunda-vez que o leio/ mas é tão parecido que precisa ler). Quando já dormiam, calcei as percatas de couro do El Corte Inglés e parti para/ Regina sabe onde. Havia tequilla sunrise, como na Costa da Caparica. Pipa, depois da meia-noite, é muito melhor que a Costa da Caparica. Dessa vez não ouviam/ dessa vez era o inevitável Bob Marley, de quem eu gosto, gosto.

Cheguei em casa por volta das quatro e meia; não foi uma noite tão má como eu havia imaginado; a diversão é sempre tão certa quanto/ de fato, prefiro a tequilla sunrise. Eu precisava - antes do famoso café da manhã, o melhor de Pipa - eu precisava caminhar um pouco e ver agora aqueles guarda-sóis fechados e uma maré crescente. Não havia ninguém na praia; Pipa fica muito mais bonita assim, com os guarda-sóis fechados. Mas já não valia a pena ficarmos por mais um dia, como havíamos planejado. Pegamos a estrada e o caminho de volta foi relativamente tranquilo, apesar daquele incêndio, quatro horas depois, que nos deixou imobilizados por cerca de três quartos de hora. O que era? O que seria? Quem era a vítima? O carro, um suicida, uma mulher que desce e sai correndo em pânico. Eram todas imagens fragmentadas e disse-me-disse. De fato, durante todo o passeio, não tirei uma única foto que/ Como vão uma vez recordar de mim quando estive em Pipa? Apontei a máquina/ Talvez quisesse mesmo registrar o que havia ficado para trás. Um incêndio à nossa frente.

Muitos beijos.

Camaragibe, 14 de Setembro de 2002, 20:29h

9.27.2009

Boutique de Salada

Querida Regina,

Não é nada disso. Ontem não fui ao Cocota's com a Márcia coisíssima nenhuma, pois que eu havia combinado com a Raquel sem o Rui, porque o Rui é muito chato. Que me importa se a Márcia vai ficar/ Hoje, passeando pela praia, encontrei um pedaço de madeira cheio de pregos. Ocorre que os pregos estavam todos virados para cima, como que esperando uma vítima. Eu ainda pensei que talvez fosse bastante simpático pegar aquela possível armadilha e atirar o mais longe possível do caminho que se faz na praia. E se uma criança desavisada? E se eu mesmo amanhã, desatento? A culpa foi sendo aos poucos descartada, como a madeira, ali provavelmente no mesmo lugar. Portanto a Márcia que se cuide com os seus quarenta e nove anos.

A pesca é a segunda maior fonte de renda em Baía Formosa, com os seus quase 8.000 habitantes. Há pescadores por todo o canto, e o Cocota é um deles. Tem uma casa bem mesmo na beira do mar, onde mora com os filhos. A mulher morreu afogada. Os filhos praticam surf e, eventualmente, ajudam o pai no bar. Quando chegamos, não havia ninguém, porque setembro não é um mês de festa. Retifico, havia sim uma velhinha com cara de protestante, um cocó amarrado, poucos dentes. Surda. A maré enchia, o que tornava tudo ainda mais impossível de se ouvir. Quantos anos ela morava ali? Desde que nasceu. Eu então gritei que ficaria surdo se morasse ali por tanto tempo perto de uma maré tão barulhenta (já lembrando a Jandete, coitada). Ela: o quê? Gritei ainda mais um vez, e ela riu poucos dentes, dizendo não a gente se acostuma. De repente desapareceu lá dentro. Em poucos minutos voltou num vestido verde de cetim, lampeira, amarrando o cocó com ainda mais vigor. Mas Raquel tinha se posto a falar. E queríamos pedir qualquer coisa.

O que tinha o Cocota? Lagosta e camarões. Duas caipirinhas, se faz favor. Raquel me contou tudo sobre aquele dia na praia do assédio e das aulas de italiano: a mão sobre a mesa. Eu escutava distraído. Raquel gosta de falar e eu adoro dar feedback, portanto sempre estamos nessa, juntos, quando ela precisa falar sem o Rui por perto, que o Rui é um chato. Quando a lagosta chegou, já era a Lady Zu: é a vez do samba-soul. Tinha sido, como eu planejara, Violência & Paixão. Agora a Lady Zu. Raquel, uma alcaparra espetada no garfo, perguntava quem teria sido a Lady Zu, mas nem mesmo eu sei dizer. Raquel e esses todos da década de 70. Você vai conhecer.

(Raquel não tinha percebido, mas a velhinha surda voltara para casa, tirara o vestido de cetim, e agora estava de volta à cadeira na solidão da maré que possivelmente a enloquecera).

A noite foi ótima, devo confessar, mas é que já não há/ há muita curiosidade acerca do que seja Pipa, e hoje é para lá que estamos indo. Eu tenho a impressão que não vou achar assim nada de especial, mas já que estamos em Baía Formosa mesmo. O café da manhã deve estar sendo servido dentro em breve. Haverá de ser cuscuz com ovo, como ontem? Eu não me importo nadica de nádares, como diz Lucas, porque ele adora cuscuz com ovo. Depois a gente faz as malas e parte para Pipa. Eu continuo mais tarde e te informo.

Mais tarde. É verdade, estou em Pipa. Sim, a cidade é para festa. O centro tem lojinhas e creperias. Tem restaurante especializado em saladas! Uma boutique de saladas! Muitos turistas, uma mulher descarada que vende sorvete da kibon fora da tabela, pousadas muito mais caras e muito menos simpáticas. Assim por exemplo estamos pagando cinco reais a mais por uma pousada bastante inferior à que estávamos em Baía Formosa. Assim por exemplo essa pousada tem ventilador no teto. Nada de frigorífico, nada. Mas/ havia uma outra na Praia do Amor. Quarenta reais a mais. Não sei. É o jantar é o almoço. Luxo pode não compensar, e afinal só vamos mesmo dormir e a dona nos garantiu que é o melhor café da manhã de Pipa.

Primeiro houve uma discussão na areia, depois o almoço foi peixe inteiro frito. Muito óleo. Cerveja pouco gelada. Muito caro. Em seguida a mudança; tínhamos àquela altura decidido pela pousada de café da manhã first class e ventilador no teto. Agora é hora de ver os golfinhos: a maré estava baixa. Caminha que caminha e nada. Golfinho nenhum. Será que mentem em Pipa? Será que os golfinhos jamais existiram? Tudo bem, a enseada é bonitinha e são apenas quinze minutos de caminhada. Mas eu detesto mentira. Eu nunca minto! Então essa história de café da manhã/ Amanhã eu te conto.

Eu não sei se vale a pena a noite. Não, deve valer. Há muita gente bonita em Pipa, há. E tem as boutiques e os bares. Hoje é provável que queira um sanduíche, o que pensa? Naquele restaurante tão simpático com uma foto da Janis Joplin segurando um cachorrinho. É provável que Verônica/

Beijos.

Praia de Pipa, 13 de Setembro de 2002, 16:58h

9.26.2009

Está Combinado

Querida Raquel,

Se eu estou com minha garota/ gaja? Não, ainda não. Portanto, se quiser, podemos jantar juntos e, depois/ De fato, não vale a pena levar o Rui. Porque afinal ele é um chato. E tem toda a história de ser casado, e tem aquela filha adolescente que só ouve Pausini-O-Que-Quer-Que-Seja. Olha, façamos então o seguinte/

Márcia chegou, como tinha prometido, às dez e um quarto, muito sorridente, amarrando um lenço de seda branca no chapéu de palhinha muito fina, e perguntou se estávamos prontos. Corre que corre que pega umas sandálias no porta-malas que troca uns calções que grita que pega os apetrechos todos que lambuza a cara com protetor solar e sim estávamos prontos. Primeiro, como tinha prometido, íamos fazer uma city-tour. Não há muito o que conhecer em Baía Formosa, mas Márcia conhece o impossível. Há aqui uma associação de ex-tecedoras de cestos de pesca, ali adiante é a única escola estadual, aqui podem ver a baía que/ o dedo magro em riste; se queríamos uma foto? O bar, o famoso bar que pode estar fechado à noite, mas basta ligar para o dono e dizer que vamos passar a noite ali com o som da radiola de ficha. Hoje, quando tudo estiver provavelmente fechado, e a lâmpada do terraço coberta de fusquinhas, eu quero escutar aquela música de Roberto Carlos no filme de Visconti, Violência & Paixão. O bar deverá estar aberto. Senão o jantar fica para a próxima, Raquel. E detesto pensar na idéia de que o Mama's/ hoje não estou a fim de comida italiana, sabe?

O buggy ia/ íamos naquela parte do buggy em que é possível segurar o teto e ver kilômetros de areia e mar e areia. Como é imenso o município de Baía Formosa quero dizer como é majestoso o litoral deserto, o sol, a areia fina e branca que leva para a Lagoa do Vinho do Porto. É impossível não querer passar ao menos três quartos de hora na Lagoa do Vinho do Porto, Raquel. Impossível. Veja se lhe agrada. A cor, explica Márcia, é resultado de uma série de fatores: vegetação, minérios, o que mais que já não recordo. No meio de uma copa fechada, Márcia pára o buggy e vai buscar um toco de pau-rosa, porque precisávamos saber de onde a seiva o extrato que aquele perfume o channel cinco que a Monroe usava uma gota para dormir. Claro.

E segue que segue. Agora é o pneu e estávamos perdidos na praia para sempre, como naquele filme que vimos em Odense, lembra? Mas qual é a peça de Shakespeare numa praia como Baía Formosa, tão perto de Pipa? Não era o pneu, e chegamos na divisa do Rio Grande do Norte com a Paraíba. Tem um rio, e dois homens sorridentes vendendo coco por um real e cinquenta (na estrada custa vinte e cinco centavos). Todos muito queixosos: os ricos ainda um dia acabam com tudo isso. Quebraram a balsa, ficaram presos no rio, o poder, o dinheiro, os políticos... Aquela conversa, e um riso sem dentes. Nem sanidade. Para aí já estávamos ensolarados, e o próximo ponto seria o Bar do Paulista, aquele engenheiro químico que já aqui se estabeleceu há oito anos. Depois de provar uma cachaça com jurema e outra envelhecida, optei por uma caipirinha. Enquanto preparavam camarão com molho de maracujá e peixe fresco grelhado. Tudo muito bom, com cerveja. Márcia não pára de falar, e em pouco tempo Verônica já sabe metade do que eu já sabia a respeito da vida dela.

Sabe que eu descobri hoje, já depois de ter descansado e lido um pouco o Diário de um Sedutor? que Lucas começou a ficar temendo a nudez com um pânico verdadeiro. Eu desci e depois de um pouco de caminhada, tirei a roupa e quis tomar banho de mar. Nu. Havia algumas tantas pessoas na praia, ainda era final de tarde, mas não muitas pessoas. Locais, possivelmente uns pescadores. Lucas tirou a roupa mas teria ficado vermelho se não fosse o pânico. Eu entrei no mar, e ele gritava de lá por favor não nu não. Eu sem entender nada. Bom, respeitei o pânico dele, botei a roupa de volta, mas não tomei banho nenhuma outra vez. Ele agora, já escuro, veio perguntar se amanhã podíamos fazer o mesmo. Eu ri e dei um beijo: claro.

Então está combinado. Hoje às doze no Cocota's, com radiola de ficha e música do Visconti. Sem o Rui.

Beijos.

Baía Formosa, 12 de Setembro de 2002, 18:04

9.25.2009

História Tupiniquim de Rock Sentimental

Querida Odileiz,

Você já deve ter ouvido falar em Baía Formosa, no Rio Grande do Sul. Pois é exatamente onde estou agora, tipo final da tarde, um vento quase fresco, essa vida quase fácil. A pousada tem o nome/ chama-se Miranda's. Há um gosto geral pelo genitivo aqui em Baía Formosa, embora o Miranda seja velhinho e a mulher já bastante coquete. Não, é preciso que eu fale na irmã/ quero dizer... Hoje, mal chegamos no quarto, número cinco, com uma belíssima visão do mar e tudo (tem uns quinhentos coqueiros)/ A pousada custa alguns cinquenta reais, o que para o padrão europeu/ Só o que me deixa um pouco irritado é saber que servem o café da manhã às oito, quando Lucas está fazendo de um tudo desde a partir das cinco. Pois eu ia dizendo que mal chegamos, e veio essa irmã de D. Lúcia, a mulher do Miranda, perguntar se não queríamos afinal fazer um passeio de buggy. Ela se apresentou sorridente e magra: era Márcia (uma mão no cabelo branco, um pretenso ar de timidez) e ademais - sobretudo - bugueira. Descreveu o passeio, falou de uma lagoa vinho-do-porto, da diversão que podia ser a vida aos quarenta e sete anos. Se não queríamos ir? Verônica é sempre reticente, e estava mesmo a fim de comer peixada no Vandete's.

Vandete é surda, põe sempre a mão em concha ao ouvido para entender se o pirão é com côco ou à brasileira. Eu não percebi muito bem o que é um pirão à brasileira, mas aconselho que quando vier ao Miranda's e resolver comer lá no Vandete's, peça o pirão com côco. Se calhar, é melhor. Mas a cerveja estava boa. E lá em cima (fique lá em cima, pois notei que a Vandete pode eventualmente tocar sintetizadores ao lado da cozinha) tem uma vista bastante simpática da praia.

É quase crepúsculo, mas não quero ir ao centro (sim, há um centro) para comprar umas bolachas, ou o que quer que seja necessário para entreter o Lucas até a hora oficial do café da manhã. O que você aconselha que eu faça hoje à noite? Tem umas mesinhas muito simpáticas aqui, ao lado de nosso quarto, feitas em madeira tosca, por sobre uma tenda de palha de côco. Será que o Miranda sabe preparar uma boa caipirinha? Eu, no momento, estou curtindo o CD de Barão Vermelho, aquele de 1983! Podemos trazer o carro para onde estão as mesinhas toscas e a festa está feita: vem comigo, no caminho eu te explico... Vem comigo, VEM! Eu já te contei que fui apaixonado pelo Cazuza? Fui, sim. Mas nada de tietage; eu o conheci pessoalmente. Eu já te contei a história toda dos passeios com o Cazuza na época do Barão Vermelho (ou um pouco depois disso)? Eram tão divertidos... Hoje tenho cada um dos vários discos de Cazuza autografados (ele sempre me enviava os discos antes mesmo de chegarem às lojas), embora somente recentemente tenha começado a comprá-los em CD. Já não tenho como tocá-los em acetato... Cláudia, a minha prima mais achegada, insistiu que eu fizesse uma série de exames que ela julgava/ Cláudia sempre foi muito paranóica, Cláudia... Eu preciso telefonar... Eu preciso encontrar Cláudia durante as minhas férias aqui no Brasil. Ela vai estar ainda com a mesma namorada, aquela que encontrei na festa que a professora de Rejane organizou? Quando chegar, no sábado, eu telefono para Cláudia. Iuska há de saber o número.

Mas o dia escurece muito rápido aqui em Baía Formosa. Daqui a pouco só vou poder mesmo escutar o mar para ter a certeza de que ele de fato existe. Será que a D. Lúcia sabe fazer uma boa caipirinha? Verônica vai perguntar. Verônica anda tão apaixonada, e isso é tão bom, porque acho que nunca fui apaixonado por ninguém assim como sou por Verônica, depois de quase dez anos. Não vá perguntar, a Fellipa é outra história. Eu acredito em paixões diferentes, acredito. Como essa, por exemplo, renovada pelo Cazuza: apronto desapronto e não passo recibo choro ressucito dou risada e vomito! Quem há de negar, a despeito de toda a teoria e do descaso do clã dos tiagos que Cazuza foi mesmo um marco em nossa história tupiniquim de rock sentimental?

Depois, Odileiz, eu te conto da caipirinha.

Beijos.

Baía Formosa, 11 de Setembro de 2002, 18:11h

9.24.2009

O Segundo Disco

Nelson Querido,

Há uma coisa que eu não entendo muito bem: é essa de as pessoas não fazerem muita questão de responder uma mensagem, de falar, de manter o contato. Ora, então, não é verdade que em princípio é o que queremos, essa relação esporádica social, ainda que assim? Toda essa introdução é para tentar entender a razão pela qual os possíveis amigos mais velhos de Lucas escolhem não responder os cumprimentos que ele sempre insiste. Será porque são mais velhos? Ou simplesmente porque desde cedo aprendem a desprezar? Será natural assim o desprezo? Por exemplo, o fato de eu não poder ter ido no sábado passado para aquela boite que em princípio iríamos já é motivo o suficiente para que agora seja eu a programar qualquer coisa? Está bem, esse já é um outro assunto.

Quando estive em Aix-en-Provence/ Quero dizer, por que a Annelise escolheu não escrever mais uma linha sequer? É isso que vou procurar entender aqui nessa mensagem. Veja se me acompanha. Como a Annelise, na conferência sobre prosódia. É preciso que eu a introduza, Annelise, amiga da Regina, a Regininha que já conheço há tanto tempo. Era a primeira vez que eu encontrava a Regininha, mas também seria, por conseguinte, a primeira vez que eu encontrava a Annelise. Ela riu um sorriso solar, de um dia de domingo em Helsink, algo assim. A Annelise sentou do meu lado, ouvindo - ou fingindo ouvir - a apresentação daquele holandês. Ela anotava qualquer coisa num bloquinho azul, e uma ou outra vez batia com o ombro no meu braço. Palmas, e aquela multidão saindo do auditório para o almoço. Regina foi quem acabou revelando que a idéia tinha sido mesmo da Annelise, a idéia de irmos a um restaurante grego. Caminhávamos, e a Annelise me acompanhava. Veja se me acompanha agora. Regina falava em francês comigo, em português com a Annelise, mas eu sempre falei em inglês com a Annelise durante todo o tempo que eu a conheci. Será que ela deixou de me escrever justamente porque redigi uma mensagem em francês, a língua nativa dela?

Está bem, o fato é que aquele quarto de hotel, com cama de casal, era muito muito grande, e a Annelise era muito muito branca. Mas tinha sido a forma como ela sacudia as mãos com desinteresse o que me fez introduzir aquela discussão de gêneros, aquela velha conversa da obviedade que é a fidelidade. Ela ria, dizia prezar por isso, mas ao mesmo tempo sacudia as mãos, o que me deixava mais e mais curioso: como seria um quarto de hotel tão grande como aquele com a Annelise? Nunca soube a resposta, porque, apesar dos gritos que trocou com o namorado naquela manhã do meu penúltimo dia em Aix, ela nunca desceu do carro, ou subiu as escadas do hotel.

Mas houve pelo menos duas ocasiões de que me recordo com grande prazer. Uma foi a que já contei, o passeio ao restaurante grego. A outra foi a festa da caipirinha, na casa dos amigos da Annelise. Uma festa em que tudo aconteceu, mesmo tudo. Dessa festa, o que resta é a vaga lembrança de inveja e horror na cara daquela professora tão simpática, mas tão mais velha que todos nós. Embora isso não queira necessariamente significar absolutamente nada. A outra ocasião é o famoso jantar de despedida que fizemos num restaurante bem próximo do hotel em que eu estava, aquele hotel.

Nunca fui muito bom em ser guia de cadeiras de roda, acho que nunca tive muita habilidade com deficientes de nenhuma sorte. Aquela professora de Aix-en-Provence parecia ser simpática. Ela ria da cadeira de rodas um riso de quem podia andar. Mas tenho de confessar que estava achando a tarefa um tanto quanto pesada, e sorria um riso de quem não pode. Custa-me às vezes ser cavalheiro (Henriquieta tem um nome para quem abre a porta do carro). Regina sempre falando todo o tempo um francês de quem acabou de pegar um ita no norte. Tudo bem, em pouco tempo estaríamos sentados, e eu pedi um gim, puro, está claro. Annelise e as outras três pediram um vinho rosé. Havia, na mesa, um clima daqueles em que todos sabem perfeitamente o que se passa.

Estou tão feliz de ter podido hoje comprar o segundo disco do Barão Vermelho!

Um beijo.

Recife, 10 de Setembro de 2002, 20:17h

9.23.2009

Muito Cedo Para Pipa

Querida Maria Helena,

Hoje Lucas insistiu que queria uma pizza, a pizza da Lumaca. Lumaca, ele diz muito sério, é o nome do caramujo numa língua que desconhece. Agora não sabe ao certo porque uma pizzaria há de se chamar assim. Ele anda muito sério. Hoje quis me apresentar a escola, a professora, a Maria Clara (por quem nutre uma paixão secreta, embora já tenha me confessado que ela o despreza), a bicicleta nova. Mas acabamos mesmo tomando sopa de feijão, muito boa, que só a Marinalva sabe fazer. Entre uma colherada e outra: Maria Clara é da segunda série. Eu não tinha ânimo para rir, porque a pimenta que resolvemos experimentar na sopa - a pimenta em forma de bolinha de árvore de natal que cresce em nossa horta - estava muito muito forte. Amanhã, eu prometi cheio de pena, amanhã vamos à Lumaca.

Enquanto isso, o dia foi de preparativos. É que na quarta-feira vamos todos a Pipa, no Sertão de Caicó. Eu estou mesmo curioso para afinal saber a razão de termos tantos portugueses em Pipa. Por isso hoje comprei as camisas de malha de algodão - das quais já tinha falado -, protetor solar, umas sandálias havaianas e/ Tive de fazer eu mesmo a seleção de CDs que vamos levar para a viagem. Desde que cheguei, só escuto o CD que a Paulinha me emprestou, tão simpática. Claro que a repetição enerva os outros todos que me acompanham no carro. E já foram muitos, porque amigos aqui/ Ontem à noite foi a festa do reencontro, e vieram Lourenço, Nelson, Jorilda, Jussara, Gorette, Prazeres, Reinilda, Telma, Júlio, Jurema, Zé Carlos, Piedade, Ângela, Jurissélia, Rejane, Edna e Misterlene. Misterlene tinha de vir, somente pelo nome. Ficamos tomando qualquer coisa ao redor da piscina, e como não podia deixar de ser, acabamos todos molhados. Choveu. Aqui é inverno.

Eu lembro que quando acordei já sentia um cheiro de café por todo o lado. Marinalva é a melhor prima que Verônica jamais podia ter. Sempre faz um café tão bom! E faz também um doce de jaca que é quase blasfemo. Tinha a Telma dormindo numa rede e o Pedro Paulo, de quem não falei por razões que devo explicar mais adiante, dormindo na outra. No tapete, ao lado do sofá, como não podia deixar de ser, Jurema e Jussara. É preciso que se saiba: moramos no campo, em Aldeia, um lugar remoto e quase muito distante da civilização. Ademais, os que conhecem o café da Marinalva, preferem dormir aqui mesmo, ainda que seja no desconforto do tapete da sala.

Ocorre que hoje à tarde estávamos bastante cansados, e eu resolvi dormir, dessa vez na cama mesmo. É possível que hoje à noite Verônica queira ir ver a tal peça baseada livremente no conto do Rosa, A Terceira Margem do Rio. Verônica conhece os dois atores da peça. Conhece esse mundo artístico todo por conta do irmão, que além de vender saduíche natural na praia do Pina, era ator. Eu não gosto muito dessas produções locais, mas como já vimos O Casamento em Baixo de Chuva (Que Aqui Se Chama Casamento à Indiana), não nos restam muitas opções. Madalena, a coordenadora da Fundação Joaquim Nabuco, onde vai o tal filme indiano, é muitíssimo amiga de Verônica também, mas agora já tem a certeza de que eu a odeio. Eu?! Eu que só não amo mais todo o mundo porque nasci em 1969!?... O que deve pensar a Rita, então? E a Mafalda? E a Margarita?

Está tudo certo: partimos na quarta-feira muito cedo para Pipa, a praia dos portugueses que fica no Sertão de Caiocó. Acabo de ligar para a dona da Pousada e está tudo certo: partimos na quarta-feira muito cedo para Pipa. O lugar é ótimo, e o preço é razoável. Eu confesso que estou um pouco excitado com a idéia de saber o que afinal tantos portugueses/ Mas ainda é preciso comprar umas duas ou três coisas antes de partir, como por exemplo um cartão postal/ quero dizer, quase meia dúzia. Eu não gosto de enviar cartões postais, mas sempre o faço com todo o prazer. Há tantas coisas bonitas por aqui.

Um beijo.

Recife, 09 de setembro de 2002, 20:55h

9.22.2009

Um Vigésimo Saco de Cajá

Querida Maria Gomes,

O almoço foi sim bastante divertido, como havia de ser. Mamãe já tinha quase tudo pronto quando chegamos, de sorte que tivemos de ir buscar somente uns poucos complementos. Afinal viriam Rejane e Norma. Para começar: o almoço havia sido combinado para aquele primeiro domingo de minha estada/ Havíamos combinado que/ Assim seria mais fácil encontrar Kátia e Sharon, porque, como se há de saber, Kátia e Sharon só costumam visitar a mãe e a avó respectivamente e ao mesmo tempo no domingo.

Ainda bem que havia sol, porque o Recife - Paulinha não sabe - está em pleno inverno, até o dia 21, quando as lojas começam a anunciar uma possível coleção de primavera. Hoje comprei umas três camisas de malha de algodão, mas prefiro falar sobre elas em outra vida. O assunto aqui é a festa na casa de mamãe. Quando chegamos, ela enxugava uma testa salpicada de suor e virava os bifes com o fastio de quem acredita na macrobiótica. Foram beijos rápidos, porque os bifes estavam quase prontos.

Não há nada de especial no almoço em casa de mamãe, absolutamente. Quase tudo se repete, como o ritual de pegar Brasilt via Cais do Apolo para ir trabalhar na Prefeitura do Recife. Marinalva há que tempos acorda às cinco da manhã e volta toda feliz com um saco cheio de cajás. O almoço em casa de mamãe é a felicidade de um vigésimo saco de cajá. Entretanto hoje temos Rejane e Norma, de quem se falará dentro em breve.

Rejane é talvez a minha amiga de mais longa data. Eu teria uns dez anos quando a conheci? Uns doze quando começamos a sair juntos? Uns treze quando íamos à biblioteca púbica duas vezes por semana para trazer os mais variados livros? Rejane e A Maçã no Escuro. Rejane e As Boquitas Pintadas. Naquela época, meu único objetivo era ler 97 livros de Agatha Christie, e acho que quase cheguei lá. Eu preciso confessar, Maria, pela segunda vez, que era apaixonado pela Rainha do Crime quando tinha treze anos. Até mesmo li a autobiografia dela com o sabor de quem quer descobrir o mordomo no epílogo! Enfim, tenho a certeza de que fui ao carnaval com Rejane no centro da cidade, no último dia, quando tinha quinze anos. Vestia uma camiseta de estopa, eu lembro muito bem. Rejane sumiu na multidão e Rafael, aquele argentino de bigodinho, que falava sempre da mãe, apareceu como se fora Rejane. O que quero dizer é que se não fosse por Verônica ou se não fosse por Norma, se ainda não fosse por Seu Ailton, ou por Cileide & Cidclay, Rejane talvez hoje tivesse casado comigo, mas eu provavelmente não teria casado com Rejane, exceto pelo filho que ela nunca teve.

Depois do carnaval, ainda fui a muitas festas com ela, sobre as quais preciso um dia falar. Lembro-me muito bem daquela em que me apaixonei por uma professora lésbica/ Não, essa é uma história que vai merecer uma festa só pela história em si, como a festa em que fui e ela estava lá com a namorada muito dike, muito branca, muito gorda, muito dura. Sei bem a vodka que bebi e o tapete no dia seguinte; dormi num tapete ouvindo uns discos antigos de Zizi Possi. Quando acordamos, fomos à praia discutir a psicologia de primeiro semestre da FUNESO. Eu falo tudo isso porque é preciso que a felicidade de ter encontrado Rejane fique explicada aqui. Mas hoje estou muito contente que Norma tenha aparecido; acho que Norma é tão fundamental para a vida de Rejane: toda essa vida alternativa de comida e restaurante alternativos... Rejane precisava de Norma, como precisa de liberdade para ir à Índia encontrar o guru.

Enquanto Norma tentava convencer que o amigo dela era mesmo a cara do Bin Laden, Iuska ajudava Kátia no cabelo. Era preciso que ficasse muito preto que ela já tem trinta anos. O almoço tinha sido um sucesso, mas ainda vinha café com chocolate e bolo de rolo. Kátia não quer sugestões e quase sempre chora quando insinuam que Sharon precisa comer mais um pouco. Kátia sempre chorou com tudo. Passou duas semanas inteiras me detestando porque descobri nos diários que ela escrevia por quem nutria uma paixão quase mórbida. Kátia sempre foi muito sentimental, ao contrário de Iuska. Acho que é por essa razão que é Iuska a pintar os cabelos de Kátia quando aos domingos. Ilka, por sua vez, não sequer suporta o tema. Por que não gosta do cabelo, eu que o acho tão lindo? Ilka não tem muita paciência. Julga que esse papo de restaurante educativo não cola. Ilka prefere lavar os pratos, ou arrumar os legumes na geladeira.

Talvez a parte mais interessante do almoço tenha sido mesmo a venda de langerie no terraço, ao final da tarde. A discussão foi curiosa, embora Kátia não tenha ficado convencida de que uma calcinha vermelha fosse deixá-la mais sexy depois dos cabelos pretos recém-pintados. Iuska continuava achando. Kátia quis chorar uma segunda vez, e Iuska saiu aborrecida do terraço, como quem luta uma guerra perdida. Mamãe olhava tudo com o discernimento que sempre teve. Ganhou duas ou três calcinhas como prenda e ficou ainda mais contente. O almoço tinha sido um sucesso.

Beijos.

PS: Kátia fora apaixonada por Elvis Presley.

Recife, 09 de Setembro de 2002, 15:08h

9.21.2009

Num Mundo Em Que Habitam Sidclays

Querida Maria de Fátima,

Ontem assisti pela segunda-vez o tal filme indiano de Mira Nair. Já agora não tive a mesma boa impressão que/ Quero dizer, o filme tem uma fotografia muito bonita, mas é mesmo trivial. Sob uma perspectiva puramente técnica, não chega a ser inovador. Entretanto, a narrativa sempre me comove. Esses dramas humanos/ A estética colorida é estereotipada, como não devia deixar de ser. Mas se queremos mesmo é esse efeito, está bem. Já o disseram: o Altman fez coisa melhor. Não gosto desse tipo de comparação.

"No outro final de semana a gente vai tá em Pipa." Verônica no terraço com Lucas. Lucas insistindo por favor por favor por favor: juro-juro-juro, mainha eu cumpro eu cumpro. Queria poder/ Hoje vai ser almoço na casa de D. Zezé. Festa em Família é um bom filme. Eu gosto da coragem do rapaz de se levantar no meio do filme e contar tudo o que aconteceu, como uma vez fiz, por razões necessariamente diferentes. E a festa aqui continuou como continuou ali. O mundo pertence mesmo ao cinismo, e eu já estou aprendendo as regras do desporto.

Ontem passei a tarde com Reinilda, de quem gosto tanto, por razões necessariamente diferentes. Sinto-me sempre confortável na casa de Reinilda: aqueles móveis, aqueles livros na estante, aquela mesinha forrada, aquela tela de proteção no monitor do computador, as canetinhas coloridas, as revistas na cestinha de palha... Reinilda sempre falando, e eu escuto tudo com bastante atenção: agora quer um copinho de água gelada? um docinho caseiro bem especial de jaca? uma bolachinha de água e sal? Desde 1920 foi assim. Hoje está fazendo regime, mas já esteve bastante deprimida.

Afinal, não vou conseguir ter acesso à internet. Tudo bem, eu passo sem internet. Eu passo sem absolutamente qualquer coisa. Embora aquele cartãozinho que vi na revista do avião/ Um cartão com antena, que dá acesso remoto à internet anywhere! Não é o máximo? Essas tecnologias todas! Verônica já sabe o meu sonho de consumo. Por que não fica? Quero dizer, por que não fico? Devo estar chegando no dia 01 de outubro, ainda muito cedo. Tiago, que odeia motoristas de taxi, vai perguntar se quero boléia outra vez?

Sabe de que gosto mesmo? Ouvir aquela música no carro, quando estou só. Não gosto de dirigir, mas gosto de estar só no carro. Por exemplo, ouvindo Selma Reis cantando Gonzaguinha. Eu canto junto, como se ali/ Mas ontem/ Aliás, Verônica sempre dirige quando saimos juntos. E uma ou outra vez fala mais alto/ Deve ser o motor. Ontem argumentava que eu devia impor o meu posicionamento acerca de como Lucas/ acerca do que eu penso a respeito da educação, etc. Eu não sei impor nada, sou tão fraquinho. Nunca podia ser carcereiro. Não é que queira me desvencilhar da respon/ Acredito que as crianças estão sempre muito desamparadas. Tudo pode acontecer a qualquer instante. Lourenço sempre esquece e repete a história de que estava um dia na praia e, enquanto a mãe se descuidou como havia de ser, a filhinha foi tragada pelas ondas e morreu em tão pouco tempo. Ninguém/ Como podiam aceitar uma morte assim tão rápida e despropositada?

Minguilim costumava também ir para a casa de Sidiclay, mas um dia deixou de fazê-lo. Tudo é possível num mundo em que habitam sidiclays. As mães pouco percebem, em sua ingenuidade, a possível crueldade no mundo das crianças, a fragilidade no mundo das crianças, o mundo dos adultos. Minguilim não chegou a morrer na praia, porque o melhor amigo da mãe estava lá para salvá-lo, lá dentro, no fundo, para salvá-lo: é bom que segure aqui, dizia, quase rindo e preocupado, se não quiser/ aqui é muito fundo. Veja se os pés alcançam/ É bom que segure aqui se/ A vida por um fio. O silêncio de jamais poder revelar qualquer coisa: as mães jamais irão compreender o silêncio no mundo das crianças.

Um beijo.

Recife, 08 de Setembro de 2002, 9:45h

9.20.2009

Esal Alc In Chel Che 'O Disin

Querido Marcos,

Ghé quèl in quél c'a dgén? Hoje cheguei uma outra vez no Recife e achei tudo muito deprimente. Não tudo, quero dizer o aeroporto. Quando fui a Berlin, o lugar me pareceu estar em reforma. Como se estivesse nascendo de escombros, como Lisboa depois do Marquês de Pombal. A ka ndonjë gjë në atë që themi? Mas há de haver uma razão para aquele chão sem tapete, há; aquela parede de compensado branco, aquele ar de juizado de pequenas causas em camaragibe. Ba ote dago ezer gure esanetan? Há de haver.

Ghè argot en chel che disom? Eu não sei, Marcos, não me pergunte. Você já deve ter tido razão com aquele poema e o carro amarelo num sábado à tarde e uma peça infantil no sindicato dos bancários. Hag un dra bennak zo er pezh a lavaromp? Deve ter, não escrevemos poemas em vão. Mas nem sempre o que queremos ali é o que de fato/ Er der noget i det vi siger? Dez anos. Quanto tempo e depois pensar no que poderia ter valido a pena? Eu teria? Por que então/ A nobreza da recusa ou a experiência? Is er iets in wat we zeggen?

Não é tristeza, é impaciência mesmo. Você nunca/ Eu sei muito bem o que houve, como sei agora o que deve estar se passando. Tudo é mesmo muito cíclico, e eu tinha de esperar dez anos, como/ Kas on midagi selles, mida me ütleme? Hoje, depois de muitos anos, o poema está queimado, como as minhas cartas sempre paravam no lixo, e hão de ser sempre. Se talvez eu soubesse que as minhas cartas eram guardadas, que o que quer que eu quisesse dizer podia ter uma mensagem para além da mediocridade... Não tinham, e todas elas acabavam no lixo.

Eu, pelo contrário/ Onko mitään siinä mitä sanomme? Eu guardo/ Eu tenho esperança. Não devia ter? Quando chorei com o filme polonês, eu ainda/ Hoje/ Talvez precise fazer o mesmo. É que sou/ Tudo me comove. Não sabia o que era cinismo, mas ainda sei muito pouco. Não: is er iets in wat we zeggen? Para você, pelo menos. Mas não hoje. E tudo/

Querido Marcos,

Ontem cheguei ao Recife e o dia estava ensolarado: a temperatura era boa e o serviço de bordo tinha sido excelente.

Querido Marcos,

Echi canne ppràma i ccino pu 'leme? Você haverá de saber. É que hoje ainda pergunto exatamente o que quer dizer o Saramago com aquele livro que li durante o percurso Lisboa-Fortaleza. Ontem à noite, depois do forró, dormindo muito tarde, vi uma luz branca que me pareceu/ Ontem devo ter bebido muito. Isso faz me lembrar que ando bebendo demais, depois dos vinhos de Alentejo. Tudo começou com os vinhos do Alentejo e os vinhos da volta, agora.

Marcos, eu quis sempre saber, mas nunca/ Van abban valami, amit mondunk? O que acha? Ainda tenho o número da Clara, a Maria Clara na carteira como que esperando que alguém descubra alguma coisa. Ainda não sei se devo ligar para ela, como não sei ao certo o que devo fazer hoje à noite. Ah! Espere. Há algo que preciso saber: ès doe wol iet èn wao ver zègge? Já/ Todo mundo já sabe que estou por aqui, como se isso fosse mudar alguma coisa.

Querido Marcos,

Estou tão feliz.

Querido Marcos,

Logo que cheguei a Fortaleza, encontrei a Ana e fomos jantar e depois encontrei a Pia com o Marcuschi e achei tão estranho que/ Marcuschi quis saber se a Maria Helena tinha recebido a mensagem dele e eu queria saber por que ele tinha a barriga assim tão grande. Kazuê continua a mesmíssima e Ângela é aquela beleza branca de francesa recém-acordada. Marcos, müley ta zugu yin chem pin mew rume? Ma gh'è po quèl in quall ch'a giàm? Er det noe i hva vi sier?

A Ingedore sempre tomou o desjejum tropical sozinha, toda envergadinha sobre o mamão e a melancia, um vestidinho azul pastel, um brinquinho de pérola. Comia quase bicava. Ao lado da xícara, um pote branco cheio de cápsulas amarelo-enxofre. Ela seria/ Tin algu den loke nos ta bisa? A máquina de lavar roupas deve estar avariada, é preciso chamar um técnico. Tem esse telefone que toca já uma segunda vez, e Lucas está lindo lá no quarto desenhando historinhas. Quer saber porque eu tenho de voltar. Não é ninguém.

Marcos,

Gh'é quel in col ch'as dis? Hoje cheguei uma outra vez no Recife e achei tudo muito deprimente. Não tudo, quero dizer o aeroporto. Quando fui a Berlin, o lugar me pareceu estar em reforma. Como se estivesse nascendo de escombros, como Lisboa depois do Marquês de Pombal.

Olha, eu tenho umas coisinhas para te escrever, quero dizer, tenho umas coisinhas para te enviar pelo correio. Devo enviar para Brasília? Gh'é quèll dèinter a coll che dgiòm? Por favor, diga qualquer coisa. Essas pessoas passando pelo corredor escuro e uns olhares oblíquos como que julgando: é aqui que eu devia estar? U'i é unquel dint quel c'a scurem? Diga-me.

Marcos Querido,

Ligger det något i vad vi säger?

Beijos.

Recife, 07 de setembro de 2002, 11:56h

9.19.2009

Piada de Mãe Judia

Caríssimo Manuel,

É possível que hoje eu vá a Lagoinha, uma mini-Jericoacara na boca da vendedora baixinha que tinha nos chamado de jovens: olá jovens. Eu todo feliz. Parei todo atenção. Agora é assim em Fortaleza, e os motoristas de taxi andam aqui mais carrancudos que os de Lisboa. Talvez Lagoinha seja mais interessante que a praia daqui da janela desse hotel. Uma areia escura e tão pouca gente que chega a ser nada convidativa. E Pipa, a praia dos portugueses?

Agora de uma coisa eu estou certo: não quero ensinar na Universidade Federal do Ceará, se alguma vez terei que fazer o que é esperado de alguém com um doutoramento em linguística. Aquele campus ali é deprimente. Tem retropojetor, mas a lâmpada pode estar queimada. A secretária ri, uns óculos pesados, uma prótese amarela muito amarela. E imprimir? O laboratório tem teclados com as letras já desaparecidas, a monitora vasculha qualquer coisa dentro da CPU, uma chave de fenda vermelha na mão, uma caneta por trás da orelha esquerda. A impressora matricial fazia um barulho que demorou toda a minha paciência para sair dali.

Não que eu seja exigente, mas canjiquinha de caixa num hotel quatro estrelas é algo pouco admissível. Ana adora comida de avião. Ela veio e me contou a história do amigo impossível: queria sair com a secretária dela, casada (ele também) e, pasme, chegou mesmo a ligar para a casa da coitadinha, tão assediada. Não queria sair com o homem: nem forró, restaurante, cinema, porra nenhuma. Mas era de uma delicadeza lusitana e resolveu um dia passar o telefone para o marido. Ana acha ótimo. Ângela também. O marido disse-lhe qualquer desaforo e o rapaz nunca mais ligou para a secretária. Algumas coisas funcionam.

Desde que cheguei, só como peixe, mas não me pergunte qual. Ontem comi uma peixada ao almoço e um peixe grelhado ao jantar. Mas também comi camarões. Piedade gosta de centavos, tem cianose e contou uma piada sobre mãe judia que ninguém entendeu: mas nada necessariamente nessa ordem. E o hotel fica distante do restaurante, de sorte que/ Tomamos sorvete na volta. Há/ Alguns eventos são de extrema importância para os fatos que ocorrem como consequência lógica, mas como saber quais? A prima da M. Helena anota todos os sonhos que tem num caderninho, e já conseguiu observar que muitos são premonitórios. Será que eu sonho com o que vai acontecer?

O que talvez eu queira implicitar é que se hoje amanheci com dor de barriga, há uma razão muito lógica para isso. Mas talvez o que quer que eu diga soe como uma piada de mãe judia que ninguém entende. E é por isso/ Talvez seja por isso que Verônica hoje não me leva a sério. Hoje, na hora do desjejum, Verônica não me leva mais a sério. Se calhar, eu sou mesmo infantil. Adulto não pode ser impulsivo nem escrever um e-mail dizendo que desculpe mas Tiago vem me buscar. Então estou percorrendo o caminho oposto. Agora se quer saber a verdade: eu não me importo nem um pouco com isso.

Ou me importo? Ou faria um concurso para professor da universidade federal de pernambuco assim mesmo? Reinilda há de dizer que - se ainda tem as minhas cartas - não mudei muito. Não estou percorrendo caminho em direção contrária nenhum. Reinilda há de ter as minhas cartas, porque ela sempre se importou comigo, sempre. Guarda uns diários que eu tenho, guarda um romance que escrevi. Tirou tudo do fogo e esconde tudo nuns armários de madeira que fez o namorado. Saiu da casa da mãe com um filho recém-nascido e foi morar com as freiras, sem saber de quem era a criança. Teve muitos namorados, muitos, que a década da Revolução. Reinilda forrava a mesa e olhava para a toalinha bordada como quem olha para dentro de si mesma.

Mas agora é preciso arrumar as malas e voltar às pressas. Lucas está doente, como não podia deixar de ser. Não que eu quisesse ficar aqui por mais tempo: somente queria poder entender o sonho como quem anota tudo num caderninho. André estava muito, muito doente, mas não era o passado. Era como se todo esse tempo ele apenas estivesse ausente. Tudo o que eu via na expressão dele era transtorno. Pela doença? Pelo tempo ter passado sem mudanças? Eu não sabia, mas era pouca a minha curiosidade. Ele se aproximou de mim como quem não sabe ao certo onde vai pisar e confessou que, enfim, me amava. Eu o olhava calado, enquanto notava a sua angústia crescer, aquela lágrima quase caindo. Devo ter passado horas assim, mas ele enfim percebeu o que eu queria dizer, depois de tanto tempo (quase dez anos): que era tarde.

Um beijo.

Fortaleza, 06 de Setembro de 2002, 07:06h

9.18.2009

Por Trás da Tinta Branca

Querido Lourenço,

Não há hipóteses, a cama já não é. Entretanto o dia ainda está como quando o Jack saiu. Bem, ele não gosta da Gal Costa, mas não esperava que saísse tão cedo. A festa terminou antes da meia-noite e ele quis saber se podia/ Podia ter vindo, mas é que queria falar sem Summer Terminology Mix Mania 2002, que hoje não estava para música nem gim. Tive de escrever-lhe para dizer que, enfim, não preciso que venha. O Tiago faz questão de me levar ao aeroporto, e eu ao contrário do James, não sei/ tenho imensa dificuldade. Devo ligar e dizer que não precisa? Devo ligar agora, ainda seis e um quarto? É que perdeu o telefone, mas acho que já o encontrou em/ acho que estava sob uma mesa, não lembro.

O fato é que Jack apareceu e todo mundo já se tinha ido. Foi ótimo, porque me ajudou com os pratos: havia muitos, uma pilha. O que me irrita no James é sobretudo o mal-humor. Quero dizer, o silêncio às vezes. Se não lhe faço uma pergunta, pronto, parece que somos dois desconhecidos num carro indo para Figueira da Foz. Será que é assim com todo mundo? É que às vezes isso cansa um bocado. Como por exemplo quando eu sugeri essa apatia, essa falta de pergunta, e ele, no dia seguinte, começou, quase que como um exercício: o que eu fazia nos sábados à noite quando tinha dezoito anos? E eu sei lá! Já o Jack, não. O Jack é todo interesse, todo disposição. O Jack é uma pergunta. O James, uma reticência carrancuda. Se calhar, devo aceitar a proposta do Jack.

Ainda assim, custa-me imenso ter de escrever ao James e dizer que não venha, o Tiago é bastante militar nessas coisas, não aceita argumentos. James e o que quer dizer por trás daquela garrafa de água. Acho que deve ter ouvido qualquer coisa dos pais, porque eu quando quero uma ameixa que se oferece, uma ameixa que não vai fazer falta, eu meto a mão e como. James não gosta dessas coisas de meu calção de banho em sua bolsa, e desde aquele dia sempre passou a me servir água como quem diz se até água, é preciso que me peça. A permissão ainda faz parte das leis dessa casa: a água caindo no copo. Eu nunca lhe contei sobre os diários de André, está claro.

Ademais, o pudor. O pudor de quem pensa estar sendo desejado indevidamente. Eu, eihn?! Jack, por outro lado, é aquela sensualidade que não quer nada, mas sê-la. Um narcisismo bem interessante esse o de Jack. Saiu porque detesta a Gal Costa, mas nunca vai ser frontal. Eu gosto bastante de Jack. Se calhar, devo aceitar a proposta que me fez outro dia.

Cheguei em Fortaleza por volta das nove da noite, e o vôo foi como eu esperva: um tédio. Não teve Ensaio Sobre A Cegueira que me fizesse pensar noutra coisa senão o tempo. Tive três cadeiras vazias ao meu lado, e uma refeição vegetariana sintética. Os aerovelhos (eram todos muito velhinhos, coitados) não eram nada simpáticos, e tinha aquele grupo de três viados italianos à minha frente, empurrando a cadeira para trás todo o tempo. Por que viado italiano tem tanto sono? E fome. Queriam sempre: mais pão, pode ser outro prato? mais coca, café. Pode ser um uísque?

O Pedro Paulo outro dia/ Ah, preciso visitar o Pedro Paulo quando estiver no Recife. Mas é que lembrei quando me escreveu confessando que estava sempre a fazer provocações. Como se eu já não soubesse... Ocorre que com o Pedro Paulo até mesmo essa confissão é já uma espécie de provocação. Quer saber como as pessoas vão reagir aos papéis que vai assumindo. Agora aposto que vão ficar aborrecidas/entediadas/penalizadas/chocadas/desinteressadas. O leque todo aberto, e o Pedro Paulo se divertindo por trás dele como faz uma gueixa quando se quer rir. A boa gueixa, dizia outro dia o documentário na televisão ligada ao acaso, a boa gueixa não pode revelar os seus verdadeiros sentimentos. Será que Pedro Paulo é pura dissimulação ou a fragilidade se desfaz por trás da tinta branca?

Encontrei na recepção a Ana, Ana-Maria-Família. Sempre tão doce falando que gosta mesmo de turismo é com o marido. E a Verônica? Ana nunca procurou ser menos óbvia, mas também é uma doçura e sobretudo cristã. Conversamos sobre ela cá: as confusões e eu lá: as festas de aniversário. Um saduíche club-qualquer-coisa para ela. Uma salada caesar sem vinho nem cerveja à minha frente. Acho que ontem estive com dor-de-cabeça. O vinho no avião era péssimo. E tenho de ter a certeza de que não me sento perto do lavabo na viagem de volta.

Em Lisboa já são quase 11 da manhã, e aqui ainda sequer o serviço de despertador. Havia uma mulher de biquini preto e touca na cabeça nadando muito mal na piscina do hotel; esse ar-condicionado é barulhento. Ontem fiquei em pânico porque não acertava desligar a luz. Não sei de onde tiraram aquela idéia de presente. Ninguém me perguntou nada. Eu tenho grande interesse/ Eu queria poder ler. E talvez por conta disso é que/ Serei menos claro assim? Aquele que se me apresento é muito mais distante do que aquele que aqui se expõe. Não sou/ Sou esse.

Beijos.

Fortaleza, 04 de Setembro de 2002, 06:59

9.17.2009

Nada Terá Acontecido

Querida Lorna,

São as últimas horas, mas há um intervalo em que se pode considerar. Ah, chegam todos às sete, sete e um quarto, sete e meia. Tiago vem com a inocência das oito, oito e um quarto, oito e meia. Tiago está sempre atrasado, nunca percebe nada a tempo. A lentidão do comboio para Cascais. Eu e minha impossibilidade de querer tudo para daqui a pouco todos chegam e vai ter velinha, chapeuzinho, língua de sogra e discoteca. Eu francamente espero que ele/ Mas afinal acho que já percebeu alguma coisa. E como vai reagir aos relatos e às vinte e três velinhas? Nunca fiquei sabendo se gostou da música de Caetano ou de Elis, que eu prefiro não conversar/ Aliás, ontem saí com o Manuel e fomos almoçar juntos e eu comi uma pizza quatro queijos e depois passeamos para a direita do Parque das Nações. Nunca estive aí, mas ver aqueles pais todos felizes jogando bola e evidenciando uma alegria que não sei ao certo se sentem/

Era uma tarde de domingo também, e ela passeava de mãos dadas. Era uma tarde de primavera, e havia borboletas, havia pombos, um jardim imenso, uns cachos dourados caindo-lhe pelos ombros, uma fita linda linda. O pai não sabia ao certo onde estava, mas gostava tanto que fosse a ama a segurar-lhe as mãos. Eram mãos gordas e quente e macias. Não a mãozinha árida da mãe. Agora, por exemplo, podia andar aos saltos e rir com o medo dos pombos. Os pombos eram bichos tão parvos... De quem teria sido a idéia daquele passeio tão inusitado? O pai andava nos dias de irritação, enfurnado nos livros e nuns pijamas que não tirava nunca. A mãe chorando na cozinha, o tacho ardendo ao lume. Ela e a angústia no corredor. Agora, aos saltos, não quer acreditar; é a mãe? Olha com mais cuidado e sente que a mão da ama puxa para o caminho oposto dos pombos. É a mãe? E aquele homem? Aquela mão da mãe entre umas mãos que jamais vira? Aquele olhar de pânico, o desespero. Era a mãe. Puxa com toda a força que tem, desfaz-se da ama e corre. É a mãe que corre também numa direção contrária, quase como quem grita. A mãe, a mãe, a mãe! Os pombos voam todos num céu cinzento e ela deixa para trás a ama e um chão molhado. O pai: uns braços firmes para sempre e o beijo do pai, como se nada terá acontecido.

A praia da Costa da Caparica, uma areia fina e um possível ar de trópicos. Mas há quem faça topless na Costa da Caparica, sob a indiferença de quem nada dos trópicos tenha conhecimento. E há aquela rapariga muito branca, com um ar de kd lang, uns dentes quadrados, umas mãos em contraste na pele morena da possível brasileira estendida em toalha colorida. As toalhas na Costa da Caparica são sempre muito coloridas, de acordo com o Manuel há ele disse muitos brasileiros na Costa da Caparica de modo que kd lang devia ter numa toalha colorida/ Eu quero rir com a resposta da Marylin: uma gota de Channel 5. Serão essas as eternidades num Diário de Notícias?

Quase duas da madrugada. I think the party was pretty sucessful. Mas não sei ao certo. É que meus planos incluiam não dormir, por exemplo, e ficar conversando, e ver o sol que nunca se mostra. Quero dizer, vou ter tanto tempo para dormir no avião... Mas tudo bem, a Eva precisava/ Bom, lavei os pratos. A casa está quase novamente como estava antes de chegarem, exceto talvez pelos balões. E Telma, que ligou. Se eu estava apaixonado, o que queriam dizer, afinal, os relatos? Telma está sempre tão preocupada, Telma... Tiago? Felippa? Paula? O filho, Miguel, o filho. E a menina correndo, os pombos, os braços acolhedores: eu não tenho braços acolhedores.

Eu tenho a impressão que ele percebeu tudo, embora tenha ido/ Por que teria cortado o cabelo? Eu esperei tanto que/ Por que teria cortado o cabelo? Quando voltar, quero/ Mas espere! Agora é pensar nos trópicos. Não vale a pena antecipar e pensar no que não vale a pena. Tudo bem, que me importa? As insinuações, o olho de Maggie, o abraço de Rita?... Tenho ainda de fazer as malas, mas estou feliz que tenha insistido: amanhã às treze.

Lorna! O hotel em Paris, e o vinho francês e a cama e o hotel. Ah, o tempo, e os amigos!...

Um beijo.

Lisboa, 03 de Setembro de 2002, 2:09h

9.16.2009

O Amor Conjugal e a Fé

Querida Kyoung-Sook!

Eu tenho tanta pena do Beethoven... Um campo de beterrabas, como uma vez insinuou o meu amigo Manuel, descendo no Planalto Central: aquela vermelhidão cor de sangue e Sevilha. Hoje eu fui à praia e agora, enquanto tomo vinho branco do Alentejo, escuto a única ópera que Beethoven compôs. Sabe que ele mesmo regeu o Fidélio em 23 de maio de 1814, no Teatro Kärtnertor, em Viena? Sim, depois de ter de alterar radicalmente a composição original, apresentada ao público pela primeira vez em 1805. A reação dos oficiais de Napoleão não foi nada boa, de sorte que Beethoven foi convidado a reformular vários aspectos da ópera, sendo um deles o tamanho. Originalmente, a ópera era composta de três atos. Quando foi apresentada pela segunda vez em 1806, tinha apenas dois.

A ópera nunca chegou a ter o reconhecimento merecido, o que provocou em Beethoven um desapontamento profundo. Beethoven é para mim o maior compositor de todos os tempos, eu já devo ter dito isso antes. E eu acho os diálogos em Fidelio simplesmente geniais. Aquelas palavras todas sussurradas como que por detrás de uma porta... É a história de Florestan, preso injustamente por seu oponente político Pizarro. Sendo informada da morte do marido, Leonora não quer acreditar no que ouve e resolve salvá-lo. Veste-se de homem, diz ser Fidélio e pede ao cárcere da cadeia de Sevilha, onde está Florestan, para empregá-la. Ocorre que a filha do cárcere, Marzelline, se apaixona por Fidélio, o que obviamente complica ainda mais a história. Entretanto, é o amor de Marzelinne que vai fazer com que Leonora reencontre o marido. O cárcere, Rocco, aprova o amor da filha e passa a ter grande afeto pelo possível genro.

Sabendo que o ministro do rei, Don Fernando, está por visitar a cadeia pública para verificar se os boatos de que há ali pessoas encarceradas indevidamente, Pizarro procura convencer Rocco a matar Florestan. Percebendo o desespero de Fidélio, Rocco nega-se a fazê-lo. Então Pizarro resolve agir por conta própria. Tudo acontece rapidamente: quando Pizarro chega à cela com o propósito de matar Florestan, já lá estão Rocco e Fidélio. Pizarro revela a sua vil estratégia. Fidélio sai das sombras e revela-se Leonora. Ameaça Pizarro de morte, mas é finalmente escusada de levar adiante aquele projeto pouco nobre por conta da chegada de Don Fernando. Quando este descobre o amigo Florestan ali, indevidamente encarcerado, exige que tudo se esclareça. Tudo esclarecido, Leonora e Florestan são deixados a sós para que possam trocar juras de amor renovado e eterno.

A última cena da ópera é mesmo muito tocante: lá estão todos, a cidade inteira, a cantar quase que um hino em louvor ao amor conjugal e à fé.

Mas não era sobre o Fidélio que eu queria falar. Hoje acordei muito muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sono o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum. Tive receio de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. Que manhã esta mágoa!

Terá sido essa a razão que me fez tomar o ônibus na Praça de Espanha em direção à Costa da Caparica. Hoje estive a manhã na Costa da Caparica, e agora tomo vinho branco fesco do Alentejo. À noite vai ter salmão, que eu mesmo fiz, na casa da Rita e da Inês Mateus.

Vejamos, eu tinha me proposto a falar sobre Cais, uma música do Ronaldo Bastos que é cantada tão comovidamente pela Elis Regina. Mas agora já não é sobre isso que vale a pena falar.

Um beijo.

Lisboa, 30 de Agosto de 2002, 18:52h

9.15.2009

O Que Tem de Mais?

Caríssimo Júlio César Vilanova!

Como tinha prometido, acabei mesmo indo ter com a Cândida. Ela estava mal, muito, muito mal. Como é que/ Eu não sei dizer um fusca de uma kombi quando o assunto é toxicodependência. Nem sei se a palavra tem hífen. Tem? A mãe dela é sempre bastante gentil, pergunta se eu quero um cafezinho de dois em dois minutos. Esfrega as mãos gordas e secas uma na outra, estala a língua, como se não tivesse uma filha na penumbra, e pergunta se eu quero um cafezinho. Cândida fica aflita quando abrem a porta do quarto e a luz artificial do corredor/ Há um candeeiro de luz muito fraquinha, ainda por cima ofuscada por um lenço colorido, tipo imitação dos antigos Pierre Cardin. Ela faz um gesto de sofrimento e insinua que está feliz ainda assim porque eu/ Entrego a caixinha de Baci e ela avidamente abre um, ignorando os bilhetinhos de sorte chinesa. Aquele bairro onde mora a Cândida é tão deprimente, é tão vazio, é tão cheio de lixo na rua e tão parecido com aquele filme do Antonioni em que nada acontece...

Eu voltei para casa com a esperança de ter um bilhetinho da Mafalda no celular, tipo assim: o que acha de sairmos amanhã à noite? A Mafalda não escreve tanto, é mais telegráfica. Nunca me escreveu uma mensagem de e-mail. Aliás, somente o Tiago curte essa história de comunicação eletrônica aqui. Esquina amanhã onze? É o tipo de sms que a Mafalda costuma/ Eu não consigo me acostumar com a idéia de ter um telefone no meu bolso, e isso deixa a Mafalda muitíssimo angustiada, porque ela é a mulher do telefone. Ela vive em função/ Outro dia comprou um modelo tão recente que até tira fotografias, mas fica irritadíssima porque não pode enviar imagens para os amigos pré-históricos que usam uns modelinhos de tela verde e letra em san-qualquer-coisa.

Enquanto escrevo, vou saboreando uma tacinha de vinho madeira da safra especialíssima que Tiago me ofertou. Ah! A cor, o cheiro... O vinho madeira é realmente uma experiência! Quero dizer, se morremos sem tomar uma tacinha sequer de vinho madeira, a nossa existência não terá sido válida. E não há aqui nenhum exagero!

Muito a propósito, sabe se já lançaram Deus e o Diabo na Terra do Sol em DVD? Queria poder trazer uma cópia para dar de presente ao Jack quando voltasse do Brasil. Tenho a certeza de que ele adorar o filme! Aquela cena final fez com que Lucas chorasse por quase dez minutos. Tão querido! E depois, enxugando as lágimas, quis saber porque estava chorando... Quero dizer: plantei uma árvore que dá frutos saborosíssimos, fui premiado pela União Brasileira de Escritores por um livrinho de contos há quase dez anos, e ainda por cima tenho um filho que chora quando vê o sertão virando mar! O que mais eu posso pedir?

Está tudo combinado: no final de outubro deverei estar indo passar uns cinco dias em Amsterdam com o Jack. Ainda não sei se vão a Paula e a Felippa. Se forem, ótimo. O que importa mesmo é que em dezembro os planos da viagem para Instambul dêem certo. Estou louco paga pegar a estrada; vai ser divertido. Todo mundo arma o circo quando eu falo a respeito dessa viagem, mas isso não me assusta nem um pouco. O que tem de mais?

Um grande abraço.

Lisboa, Quinta-Feira, 29 de Agosto de 2002, 23:37h

9.14.2009

A Última Semana de Verão

Queria Irene,

Decidi que vou eu oferecer o jantar da sexta-feira com a Maria Helena, a filha e a namorada! E vai ser salmão ao forno com especiarias e muito, muito azeite. O que mais pode ser? Ah, para a entrada, uma saladinha de penne. O salmão vai ser servido com batata, também ao forno. A sobremesa eu peço para a Maria Helena trazer. Compro vinho branco e estamos feito. É simpático. Vale a pena ser simpático uma ou outra vez. Como por exemplo hoje, que, embora tenha teimado e prometido a mim mesmo, decidi acompanhar a minha vizinha ao cinema. Vamos ver o idiota do Brian de Palma. Tudo bem, o Brian de Palma não me convence, mas custa muito ser simpático? Não custa.

Hoje foi o ensaio lá no ILTEC da apresentação que vou fazer no GELNE, semana que vem. É tão estranho pensar que dentro de uma semana vou estar em Fortaleza! Quero dizer, essas coisas de tempo e espeço algumas vezes são um bocado complicadas de digerir. Por outra: há quanto tempo nos conhecemos?

Eu adoro esse chocolate do beijinho, Baci. São tão bons... E como se não bastasse, ainda vêm com essas mensagenszinhas tão simpáticas como se fossem biscoitinhos da sorte. Eu comi dois. Um dizia que o verdadeiro amor jamais conheceu medidas, e o outro que o amor quando quer falar, a razão que se cale. Serão todos assim sobre o amor, e ainda por cima em seis línguas diferentes? Quem deverá conhecer a língua/ Tiago amanhã faz 23 anos. Eu bem me lembro quando eu fiz/ Aliás, eu não lembro absolutamente de nada. Eu, como ele, estava fazendo mestrado, disso recordo muito bem, e também tenho a certeza de que já nos conhecíamos eu e a senhora. De resto, não me recordo.

Amanhã eu vou visitar a Cândida na casa da mãe dela e levo uma caixinha de Baci, que tal? Cândida, uns bacinhos pra você. Ela, claro, vai me olhar com um ódio sem fim, como quem diz você sabe muito bem o que eu quero. A Cândida tem uns olhos fundos, escuros. Às vezes tenho medo de olhar para/ Não foi o Friedrich Nietzsche quem disse que se olharmos para o precipício/ ou foi o Søren Kierkegaard? Já não me recordo bem. Sábado tem a Mafalda. Não, espere, devia ligar para a Clara. Acha que devo ligar para a Clara? A Clara, não sei porque razão, cheirou-me um pouco a confusões. Deve ser complicadíssima. Já a Mafalda não, tão doce a Mafalda...

Adivinha o que eu estou escutando agora, nesse exato instante? A ópera Morte em Vaneza, composta pelo ótimo Benjamin Britten. Tadinho do Britten, tão pedófilo... Eu gosto muito do Britten, como gosto também do Thomas, o pai de Tadzio.

Voltei do filme/ do tal fime... Horrível. Mas também não podia esperar outra coisa. Daqui a pouco é quinta-feira! Quinta-feira! Você não escreve? Já é quase meia-noite. Hoje foi um dia tão bonito, quente, ensolarado. Hoje a Rita contou como foi divertido o verão, como a última semana de verão é tão importante, como devemos aproveitar a última semana de verão!

Muitos beijos!

Lisboa, 28 de Agosto de 2002, 11:59h

9.13.2009

Um Sétimo Segredo

Ilka Querida,

Hoje eu descobri que a Alcilene, afinal, tem uma filha. Ia chegando ao ILTEC, e lá estavam as duas, repimpadas, nos banquinhos de cimento bem à frente da farmácia. Subi o elevador pensando se ela teria se recuperado da morte tão trágica do marido. Já imaginou o que é ver alguém estourar os miolos bem na sua cara? O desespero de correr para a porta do quarto, para a filha de cinco anos, ainda sonolenta, esfregando os olhos, quase assustada com o barulho; de correr para a filha e impedir que ela veja o espetáculo de sangue respingado por todo o canto, de tentar disfarçar o sangue na mão, no rosto, o sangue nos olhos da filha e o pânico, o grito, e a lágrima? Ainda bem que não me viu. Tenho medo agora do elevador.

O dia não foi nada de especial. Mas também, o que esperar de uma terça-feira de agosto em Lisboa? Está toda a gente na praia. Alguns ficam, e morrem. Hoje, voltando do trabalho, vi dois homens saindo de um carro com paredes de vidro, carregando um caixão todo ornamentado para dentro de um prédio. Olhei as janelas, mas não havia nenhum sinal de morte. Há sinal de morte nas janelas de um prédio? Eu julguei que sim. Mais adiante, dois homens dentro de um carro estacionado. O clima não parecia dos melhores. Um era gordo, e ocupava a cadeira do motorista. O magrinho, coitado, com cara de trabalhador de construção civil, olhava para o chão e parecia triste.

Há dois vinhos brancos de que gosto muito. Um é o Prova Régia, tão suave, e o outro é o João Pires, com um sabor acentuado à pera, mas também muito bom. Hoje resolvi que valia a pena abrir a única garrafa de João Pires que eu tenho na geladeira. Talvez tenha sido o Chet Baker, não sei. Eu gosto tanto do Chet Baker cantando The Thrill Is Gone, com aquela voz tão suave, tão gay. Depois vem o Caetano e escangalha tudo com Black & White.

Agora me diga: eu tenho culpa se não deu nada certo com a Virgínia? Tudo bem, eu entendo que ela me odeie, mas isso é um bocado infantil, não acha? Quer dizer, podia até ter rolado alguma coisa, mas não rolou, pronto. Ou, por outra: rolou, mas não com ela. Paciência! Agora vem com essa conversa de professor de história e não-sei-mais-o-quê. Olha, foda-se. Aquela borrachina? Pronto. Bye-bye, so-long, farewell.

Era uma música do Guilhermo. Guilhermo... Miguel... Frako-o-Forte! Miguel agora corta o cabelo e espera que/ Vai levar o filho para casa, Miguel, mas volta tarde demais. É a Eva. Mãezinha de todas as maçãs, impostora dos desejos de sangue. Sangue, Pinkhassov! Sangue na mão de Alcilene, no rostinho de Renata e no chão do metrô.

E o que tem se me amam? O que tem é o fardo, como o de Bernardo Soares. Embora eu tivesse prometido/ Aliás, essa foi a razão pela qual não escrevi ontem, como era esperado. Mas precisava contar a revelação: a filha de Alcilene, o caixão no prédio vazio de verão lisboeta. Amanhã, quero dizer, depois de amanhã, nas primeiras horas da terra do fado, quero ligar para o Jim com o cartãozinho de telefone público e dizer que desejo de um tudo, o melhor, etc. Dez anos depois é quando o poema/ ele foi morto. Públio Siro tinha razão.

O que resta acontecer hoje que valha a pena esperar? Não decidi ainda se aceito a proposta de Jack, preciso pensar no assunto. E, francamente, não estou a fim de sair. Portanto eu acabo por aqui. E se acontecer/ de fato acontecer alguma coisa até amanhã, eu conto. Ou será um sétimo segredo.

Muitos beijos.

Lisboa, 27 de Agosto de 2002, 20:58h

9.12.2009

Arroz Chao-Chao

Querido Frank Henno,

Ontem fui ver um filme absolutamente fantástico com as senhoras do apartamento ao lado. Chama-se Casamento Debaixo da Chuva. No Brasil acho que o título é Casamento À Indiana. Originalmente: Monsoon Wedding. Talvez tenha sido um dos melhores filmes que já vi esse ano. Mas o de Almodóvar também é muito bom. Esse, no entanto, fez-me ficar inquieto na cadeira, e acho que se um filme consegue fazer com que alguém quase grite aquando dos créditos: "excelente", é porque de fato é muito bom. Tem um rítimo, umas cores, uma fotografia, umas atuações, umas caras, uma alegria, uma dramaticidade apaixonantes. Se ainda não estreou em Amsterdam, keep your eyes wide open!

Mas falando em Amsterdam, a Gorette sempre me convida para lá ir ter com ela. Eu preciso arrumar um pretexto para visitá-la, afinal não o fiz enquanto morava em Odense. É claro, eu podia ir para a tua casa, mas é que a Gorette insiste tanto que eu seja o seu (dela) hóspede... Amsterdam deve ser uma cidade tão bonita! O Gabriel trabalhou lá quatro anos, num lugar chamado Cock's Ring. Não é o máximo? Onde você trabalha, Gabriel? No Anel do Caralho. Parece até um insulto. O fato é que a Gorette estuda uma língua indígena qualquer lá do sul de não sei onde no Brasil, cujo único falante já está quase sem memória e sem dentes. Agora se quer saber porque foi estudar a língua de um índio banguela lá no país da Rainha Perua, não sei responder. Aliás, eu sei, mas também não interessa.

Depois do filme, fomos jantar num restaurante chinês aqui perto de casa onde servem tudo em pouquíssimo tempo. Como é que conseguem ser tão rápidos? Queríamos ser ludibriados todos juntos, de sorte que pedimos sopa de barbatana de tubarão. E veio também um arroz chao-chao (que, em chinês, deve corresponder àquilo que no Brasil a gente chama comeu-morreu), frango com molho de abacaxi e camarões empanados com molho agri-doce. Os chineses são tão parecidos em qualquer parte do mundo. Só muda mesmo o cardápio. Aqui, por exemplo, não tem frango xadrez. E grafam Sopa Vam-Tam. Eu achei o máximo!

Todavia, o curioso mesmo da noite foi a conversa que tivemos sobre o tal famoso professor da Universidade de Lisboa, de como ele se apaixonou perdidamente por uma aluna, de como fez - de acordo com alguns - papel de idiota, etc. etc. O assunto aprazia-me de fato. Então a tal aluna, vinte anos mais nova, era conhecida por ser do tipo que seduz e depois avilta, essas do gênero. O mundo deve estar cheio de gente assim... As vítimas e os algozes, como diz a minha grande amiga Maria de Fátima. Lembram-se também da conferência em Cambridge, algo sobre semântica formal, e do barulho da cama no quarto ao lado. Lembram-se também de terem ido todos juntos ver o Último Tango em Paris, porque na época o filme estava proibido em Portugal. Estavam antes daquele tal Julho de 1969. Tipo assim: fui participar de uma conferência em semântica formal lá em Cambridge e aproveitei para ver o Último Tango em Paris. Não é ótimo?

Ontem ainda teve o desejo de comer pastel de nata, mas não encontrei nenhumzinho na padaria aqui do prédio. Era tipo final de sábado, e o dono brasileiro gordo e suado, com aquela cara de padeiro, estava atendendo uma senhora com cabelo pizza-hut. A imigrante ucraniana com chapeuzinho amarelo limpava o balcão, toda empenhada, na frente do gordo careca. Levantou os olhos languidamente e perguntou se eu queria de fato alguma coisa. Pois quero, sim, quero. Ela sorriu quase com prazer ao revelar que, afinal, não tinham mais pastéis de nata. O prazer da tal aluna ruiva ao dizer foda-se para lá.

Tem ainda essa viagem que estamos planejando o Jack e eu nas férias de final de ano. Uma viagem a carro. Acho que vamos para Istambul, não sei ainda ao certo. Se conseguirmos convencer a Paulinha e a Felippa, elas vêm conosco também. Se não, olha, paciência.

Então é assim. Agora já estou de volta, o dia foi ótimo, a companhia foi bastante agradável, mas agora apetece-me parar de escrever e preparar o jantar.

Muitos beijos e até logo.

Lisboa, 25 de Agosto de 2002, 17:34h

9.11.2009

Trezentos Ferrinhos Na Boca

Querida Florance,

Hoje, sexta-feira, cheguei em casa relativamente cedo, com a esperança de poder sair logo mais à noite. É que hoje me apetece sair. Mas talvez quisesse ter chegado mais cedo mesmo por conta da pizza três queijos que comprei ontem, embora tenha reservado para hoje. E cerveja Super Bock, porque a Sagres não presta. Embora a melhor seja mesmo a Coral, da Ilha da Madeira. Mas depois da pizza não sei bem ao certo aonde devo ir. Tem uns bares lá no Bairro Alto, mas acho tão esquisito chegar só num bar, embora tenha feito isso uma quantidade de vezes... Foi justamente assim que encontrei a Mafalda, sobre quem devo falar dentro em breve.

O que quero dizer mesmo é que, afinal, fui ver o que a Cândida queria. E se estivesse precisando de mim? E se estivesse numa crise de abstinência? Eu disse ontem que não tinha amigos, mas não era bem o que eu queria dizer. É assim: procuro estudar a impressão que causo nos outros, tirando conclusões. Em geral, sou uma criatura com quem os outros simpatizam, com quem simpatizam, mesmo, com um vago e curioso respeito. Mas nenhuma simpatia violenta desperto. Ninguém será nunca comovidamente meu amigo. Por isso tantos me podem respeitar. Entretanto, se não o são, por que eu os haveria de assim considerá-los?

Mas o que eu me propus mesmo foi falar sobre a Cândida, com quem fui ter hoje à tarde. Pobrezinha... Sabe o que é ver todos os amigos morrerem um a um, como morreram os meus gatos todos? Pois a Cândida já não tem amigos. Todos morreram, um a um. Há tragédias maiores que a nossa.

Para tudo há um tempo certo. Hoje, por exemplo, escuto o disco dos 25 anos de Maria Bethânia com prazer, o que jamais pensaria poder/ Enfim, é uma pena que o Zé Gabriel tenha deixado de falar comigo porque eu insinuei detestar a Maria Bethânia. Será que agora podemos fazer as pazes? Quando será que a pobrezinha da Cândida vai poder/ Se ao menos eu tivesse prazer em estar com ela, mas não tenho. Não consigo acompanhar o que quer que ela queira dizer por muito tempo, e fico pensando como seria bom se eu estivesse em casa, lendo qualquer coisa... Há gente que detesta a sinceridade. Há quem prefira a polidez. A polidez é tão bonita, é tão, tão, tão superior! Aquele é um homem puro, aquele é que é um fino! A Regina vive enfatizando essa como uma qualidade que ela não dispensa: a educação. Embora goste tanto do Hair.

Acho que há algo de curioso na televisão. No canal 1 vai uma entrevista com a mulher do Jardel, furibunda com os portugueses. A repórter ri o tempo todo. O Jardel faz falta a qualquer equipa do mundo? A Karen acha que sim. No canal dois é um telejornal. Passa um ônibus que vai para Entrecampos. Falam qualquer coisa sobre acidentes promovido pelo excesso de velocidade. Eu quase morri em Odense, no trânsito. No canal 3 fala o Paulo Taborda, do sindicato de trabalhadores do sul e dos Açores. Não quero saber. No canal 4 vai a mesma coisa, só que com uma imagem um bocadinho melhor, e o som também. A BBC World ocupa o canal 5: Putin meets Kim, até rima. Tem um rapaz de óculos falando numa planta que acumula poluentes lá no canal 6, mas a música de fundo é muito irritante. A imagem do canal 7 é muito ruim, e falam sobre militares. Jardel de novo no canal 8, dessa vez com um especialista em clínica geral, falando diretamente do Recife. Esse homem de gravata amarela e barba bem feita do canal 9, discutindo tarifas aéreas não me convence. Canal 10: telejornal sobre o mal-cheiro lá na Várzea. Todo mundo reclamando. BBC de novo. Asas da Coragem no canal 12, elogiam o filme. Uma história comovente. Falam espanhol no Canal Galícia, treze, e o assunto é o esporte. Esporte em espanhol é ainda menos interessante. BBC Prime no canal seguinte: um filme inglês com um rapaz de terno branco e gravata borboleta. O terno é provavelmente de alguém mais gordo do que ele. Há um balde cheio de peras no canal 15, também espanhol. Foda no canal dezesseis: uma brasileira, loira, carioca e um preto. Oh, ah, ui, assim, mais, vai, oh, ah, uh, assim. A imagem não é boa... FashionTV, canal 17. Jardel no canal 18, siticom no 19. CNBC next: é o canal das finanças. Números, letras e figuras em cada canto possível da tela, correndo, piscando, aparecendo e desaparecendo. Que língua é essa que falam no canal 21? People & Arts aqui também, no canal 22. Jardel no 23. Chega!

Ilka acaba de me escrever perguntando, afinal, quem é o Tiago. Será que eu nunca tinha dito que é o meu assistente de pesquisa, o tal que faz mestrado em linguística na UL? Que é sobretudo o meu grande amigo, que escreve poemas e tira fotografias e mora na Rua Barbosa du Bocage? É assim tão difícil de adivinhar? Afinal as páginas do ILTEC (www.iltec.pt) estão lá, com CV e fotografias do Tiago. Mas se calhar ela tem razão de querer saber sobre mim. Será que eu sei sobre mim mesmo para dizer qualquer coisa a meu respeito? E Tiago saberá sobre/ E eu saberei sobre o Tiago que não o que as fotos, sim, as fotos com ele podem revelar?

Que horas devo eu sair hoje à noite? Depois da meia-noite? Será que o Jack vai ligar? E se ligasse e perguntasse, eu diria que sim? É melhor ir de carro, afinal, porque o transporte público... Os motoristas de taxi aqui em Lisboa não são muito simpáticos. Bom, eles também não o são na Madeira. Nem no Recife. Eu lembro por exemplo quando um dia um motorista se recusou a nos levar eu o Lourenço e a Prazeres porque queríamos todos ir no banco de trás, numa ménage à troi. Ele disse que não era motorista de seu ninguém. Então saímos do taxi & pegamos um outro que gostava de ménage à troi & ficou olhando pelo retrovisor o tempo inteiro. Já na Madeira queríamos ir para a Boca do Lobo tomar poncha de absinto... Bom, essa história eu já devo ter contado.

Florance, eu esqueci de perguntar como você estava. Como você está, minha grande e querida amiga? Eu cá ando agora com essa mania de estar sempre falando acerca do Jack e da Felippa e da Paula... Será que hoje eu ainda vou/... Mas já são quase nove e um quarto. Eu tenho de parar e fazer qualquer outra coisa. Nem a minha vizinha, que se mandou para a casa da prima e quer ver o filme mais novo do Brian de Palma!... Eu me recuso, não vou, não quero!

Agora diga-me, Florance, você acha que eu devo aceitar a proposta do Jack e dividir o apartamento com ele? Vive com essa idéia de que podíamos morar juntos, e correr o mundo, e tirar fotografias e escrever, e... Não sei se a Felippa ia aceitar, mas talvez se aceitasse... No entanto não sei quem/ Bom, isso logo se via. Mas tenho dúvidas de que/ Entretanto, hoje, eu topava. Vale a pena pensar muito o que/ Amanhã, por exemplo, nem sei mesmo se a Cândida vai estar ainda na casa da mãe dela, como é suposto estar... Eu sei, seu sei: basta ler a contracapa de Domingo, o primeiro CD de Caetano Veloso, está tudo lá.

10:00h, dia seguinte. Eu não devia ter ido para a casa do Jack, porque afinal nunca consigo dormir naquela cama. Para mim já é pequena quando está só o Jack, pois quando também está a Paula, fica simplesmente/ Os dois parecem não se importar, dormem como vacas em pasto largo. Eu mal consigo virar de lado, tão pequeno é o espaço. E depois vem o braço de Paula, e depois a perna de Jack, e o Jack fala e ressona e levanta e volta a deitar e a Paulinha dorme o tempo todo... Obviamente que os deixei dormindo lá, abri a porta, colei um bilhetinho amarelo no espelho do banheiro e peguei um taxi. Era o que eu devia ter feito ontem, afinal.

Parece que me perseguem, foi o que eu disse ontem. Na verdade eu já estava me preparando para sair, depois daquela conversa bastante engraçada que tive com Como-É-Mesmo-O-Nome-Dela? Deixe eu ver, em algum lugar de minha carteira está um pedacinho de papel... Clara: uma letrinha muito desenhada que lembra a caligrafia de Kátia, a minha irmã. E o número de telefone. Eu devo ligar? Mas sobre a Clara eu falo depois. Estávamos saindo do Frágil, que embora ande ultimamente um tanto quanto decadente, depois que o dono vendeu o espaço a outra pessoa para abrir o Jade, é ainda um lugar interessante. Já mesmo lá fora, ouvi a buzina que conheço tão bem: era o Jack, sacudindo a mão através da janela.

Enfim, cheguei em casa, e preciso mesmo dormir um pouco. Hoje as minhas vizinhas, as senhoras do apartamento ao lado, querem fazer qualquer coisa à tarde, e, se calhar, à noite também. Tenho de ligar para a Cândida e dizer que, afinal/ Tadinha, eu tenho tanta pena da Cândida... Será que ela queria ir ao Museu do Traje amanhã?

Enfim, cheguei em casa por volta das 9:30, e antes de subir comprei o tal pão da avó na padaria aqui do prédio, ainda quente e perfumado. É tão engraçada aquela moça brasileira com trezentos ferrinhos na boca, sorrindo e entregando um pão-da-avó sem manteiga como se fosse a coisa mais estranha do mundo alguém ir à padaria comprar UM pão-da-avó aos sábados, sem manteiga. Ela sempre pergunta: "com manteiga?", e ri quando eu respondo, porque já sabe a resposta. O que quer significar aquele risinho prateado?

Eu preciso dormir. Não sei se ligo para a Clara, se aceito a proposta do Jack, se convido a Cândida para ir ao museu, se atendo o telefonema do Isidoro, se dou uma tapa na cara da brasileira que vende pão: estou com tanto sono...

Beijos.

Sábado, 24 de Agosto de 2002, 10:29h